- O Estado de S.Paulo
A ligação entre medicina e economia se estende pela história do pensamento econômico
“A economia é uma disciplina afinada com a ideia e a produção de fetiches e taras. Então, por que não dizê-los? Uma tara do momento é aquela pela busca dos “cenários pós-covid”. Fala-se em recuperação em V, em L, em U, em W. Mas o que significa “pós-covid”? Ao mesmo tempo, no Brasil, o fetiche fiscal não se desgarra de muitos economistas. Mas e a dívida? Mas e o déficit? Mas e a dívida e o déficit? Mas e a dívida, e o déficit, e a inflação? A situação atual, que é de transição para algo que não sabemos o que é, não permite enxergar com clareza. É também verdade que, confrontadas com a incerteza, as pessoas muitas vezes se agarram àquilo que conhecem, projetando no futuro o passado. Contudo, é importante algum esforço e desprendimento para julgar o que do nosso passado econômico importa – se é que alguma coisa – para imaginarmos o que vamos enfrentar nos próximos meses e anos.
Antes, contudo, vou repetir algo que já escrevi algumas vezes neste espaço e já disse outras tantas mais no meu canal do YouTube. De nada adianta pensar nas letrinhas da retomada se não há um entendimento subjacente da epidemia e algum acompanhamento dos estudos científicos publicados sobre ela. Muitos economistas preferem pensar que nada precisam entender do assunto para traçar seus diagnósticos e suas previsões. É curiosa essa crença de economistas na autonomia da razão econômica em relação não só às Humanidades, mas a outras ciências. Afinal, na sua formação, a economia como disciplina sofreu a influência de grandes médicos, como John Locke (1632-1704) e François Quesnay (1694-1774), apenas para citar esses dois, cuja obra e pensamento influenciaram Adam Smith (1723-1790). Portanto, a ligação entre a medicina e a economia se estende pela história do pensamento econômico, retornando às suas origens. E, embora pareça divagar aqui, o desvio se justifica porque ignorar as origens da crise econômica para formular políticas públicas e previsões de crescimento é não apenas profundamente equivocado, mas dissonante da própria história da economia como ciência social.
O fetiche fiscalista é outra manifestação do mesmo mal. É claro que temos de nos preocupar com o tamanho do déficit público e com a trajetória da dívida. Mas o que isso significa? Vamos propor o que em termos de medidas econômicas para responder a essas preocupações?
Que o governo retome a defunta agenda de reformas, que nada faria neste momento para sustentar a economia? Que o Estado brasileiro não cumpra o seu papel constitucional de atender aos mais atingidos pela crise, seja por meio de programas de transferência de renda, seja por meio de repasses para a saúde, seja por meio de recursos destinados à educação, sobretudo para permitir que crianças sem acesso às escolas e sem acesso digital possam dispor de algum meio para o aprendizado? Vamos insistir que parte importante de nossos males vêm do sistema Simples, que as empresas sofrem muito com a carga tributária, que é preciso rever todas as políticas públicas para melhorar a eficácia? Nada disso é compatível com a urgência da falta de recursos hospitalares, das filas de quem não consegue receber o auxílio emergencial. É ainda menos compatível com uma ideia que tem de estar clara: a inação do governo é fator determinante da forma de recuperação da economia e do que venha a acontecer com o déficit e com a dívida pública.
Governo que não age à altura da crise atira o país contra a parede. Não à toa, o FMI revisou a projeção para o encolhimento do PIB brasileiro de 5,3% esse ano para 9,1%, chegando bem perto do quadro de depressão econômica sobre o qual venho falando há meses. Quedas do PIB dessa magnitude não precisam de nada mais para fazer um estrago considerável nas contas públicas. A arrecadação salta do precipício, elevando o déficit de forma abrupta. O encolhimento da renda decorrente da redução do PIB diminui o denominador da razão dívida/PIB, elevando-a. Ainda que seja impossível quantificar o estrago da inação, é possível dizer que a falta de medidas adequadas, ou a insuficiência delas, gera precisamente a deterioração tão temida pelos fiscalistas. Por que eles apontam, então, em outras direções, como se essa não fosse determinante de suas ideias fixas?
Por fim, o fetiche do teto. Escrevi sobre ele na semana passada, em modo catabólico – o artigo chamava-se “A Bioquímica do Teto”. Retomo-o agora em modo anabólico: a síntese do teto metaboliza produtos com alto grau de toxicidade para a economia brasileira, impedindo que as ações necessárias de combate à crise aguda e à crise crônica que dela sobrevirá sejam articuladas. Francamente? É duro ter de repetir isso quase toda semana.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
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