Catalão Joan Martínez-Alier, que ganhou prêmio norueguês por contribuições para a economia ecológica, fala sobre necessidade de desenvolvimento realmente sustentável
Por Diego Viana – Eu & Fim de Semana /
Valor Econômico
Em 1948, o economista americano Paul
Samuelson representou a economia como um encanamento circular, onde se
movimentam investimentos, consumo, salários, impostos, insumos e bens. Imagens
como essa se tornaram habituais, cristalizando a ideia da economia como um
ciclo fechado. Hoje, com crises como a mudança climática e a degradação de
terras e mares, já não é mais possível pensar assim: menos de 10% do que entra
na economia circula de fato. O resto é dissipado ou descartado como resíduo. É
o que aponta o economista ecológico catalão Joan Martínez-Alier, professor
emérito da Universidade Autônoma de Barcelona, que recebeu neste ano o Prêmio
Holberg, concedido pelo governo norueguês a acadêmicos das humanidades.
Martínez-Alier é um dos fundadores do ramo
da economia ecológica, junto com autores como o romeno Nicholas
Georgescu-Roegen e o americano Herman Daly, este último morto no ano passado.
Esses economistas começaram a estudar as implicações do fato de que a atividade
econômica é um subsistema do mundo físico, integrada ao sistema ecológico do
planeta e sujeita à lei da entropia. Trata-se de um “metabolismo social” em que
fluem materiais e energia, não só mercadorias e preços. Por isso, Daly e demais
economistas ecológicos estão entre os primeiros a defender que o crescimento
deixasse de ser o maior paradigma econômico.
“Os jovens estão muito preocupados com as
futuras gerações, e esses jovens acreditam no decrescimento”
O catalão também está entre os fundadores
da Sociedade Internacional de Economia Ecológica, em 1989. Entre seus
principais livros estão “Economia ecológica: energia, ambiente e sociedade” e
“O ecologismo dos pobres”. Este último, que aproveita sua ampla convivência com
movimentos ecologistas latino-americanos, critica a ideia de que a pobreza é
causa de degradação ambiental. Ao contrário, argumenta, algumas das maiores
iniciativas de preservação vêm de comunidades marginalizadas.
Em 2015, Martínez-Alier atuou na criação do Atlas de Justiça Ambiental, que mapeia conflitos ligados ao meio ambiente em todo o mundo. A iniciativa foi mencionada pelo comitê do Prêmio Holberg como principal motivo para entregá-lo ao economista. O comitê citou “suas contribuições para a fundação da economia ecológica, sua análise pioneira das relações entre economia e meio ambiente, sua abordagem comparativa e interdisciplinar e seu papel na promoção da justiça ambiental”. O economista também recebeu o prêmio Leontief de 2017 e o prêmio Balzan de 2020.
Valor: O sr. afirma que os economistas
acreditam que a economia é um processo circular, mas na verdade a circularidade
é extremamente baixa. É possível constituir uma economia mais circular?
Joan Martínez-Alier: De fato, há um
grande vão na circularidade. Cerca de um terço dos materiais que entram em uma
economia industrial típica são combustíveis fósseis. Eles são queimados e esse
é o fim da história, não há reciclagem. Outros materiais, como a areia e o
cascalho da construção civil e da infraestrutura, se mantêm fixos por décadas.
O cimento, em geral, não é reciclado. Depois, vem a biomassa, que pode voltar a
crescer graças à energia solar. Mas boa parte desaparece como madeira queimada
ou alimento de animais. Enfim, temos os metais, como o cobre ou o minério de
ferro, do qual, aliás, 400 milhões de toneladas são exportadas anualmente pelo
Brasil. A maior parte não é reciclada, os metais se tornam resíduo. Por causa
desse vão da circularidade, a economia global procura constantemente por novos
materiais e fontes de energia nas fronteiras de extração de commodities, muitas
vezes matando populações indígenas. Para usar termos brasileiros, podemos dizer
que é uma economia de bandeirantes em larga escala, uma economia política de
grileiros.
Valor: O sr. dedica parte de sua obra
às críticas ecológicas feitas à economia antes mesmo que se começasse a falar
em ecologia. A exclusão da base física do pensamento econômico foi um movimento
intencional na constituição dessa disciplina?
Martínez-Alier: Foi. Não estou dizendo
que houve uma conspiração. O que ocorreu foi consequência da separação entre as
ciências naturais, e também a engenharia, das ciências sociais. Vale lembrar
que autores como Frederick Soddy, Prêmio Nobel de Química de 1921, criticaram
os economistas nos anos 1920 e 1930 por falar da economia, mas não da
disponibilidade energética. Soddy explicitou que a economia não é circular, mas
entrópica: não se pode queimar carvão ou petróleo duas vezes. Esses materiais
não são “produzidos”, mas extraídos de depósitos que se formaram a partir da
fotossíntese de milhões de anos atrás. Soddy ainda não falava sobre a intensificação
do efeito estufa, mas o que disse foi o suficiente para que a economia
hegemônica o boicotasse.
Valor: O conceito de “retorno
energético sobre a energia investida”, central no seu trabalho, é
contraintuitivo: a ideia de que a agricultura industrial não é necessariamente
produtora, mas pode ser consumidora de energia. Seria possível chegar à
agricultura circular, capaz de alimentar uma população que deve chegar a cerca
de 9,5 bilhões em 2045?
Martínez-Alier: Há dois pontos
importantes nessa questão. A população mundial está deixando de crescer. Vejo
isso com bons olhos. Como disse a escritora Maria Lacerda de Moura em 1932:
“amai e... não vos multipliqueis”. O segundo ponto é o retorno energético da
agricultura, que pode ser vista como um sistema de transformação de energia. No
etanol do Brasil, se removermos a energia solar da equação, o cultivo da cana
para produzir álcool gera um ganho líquido de energia. Mas, no caso da cultura
de milho americano, provavelmente está sendo injetada mais energia de fertilizantes,
tratores e transporte do que se obtém como milho. Consideremos a exportação de
carne da Amazônia: primeiro se destrói a floresta, em seguida se cultiva o
pasto, colocando um boi por hectare, e então se exporta a carne. Nesse caso,
podemos dizer que há um ganho de proteínas. Por outro lado, há uma grande perda
de calorias.
Valor: Outro conceito importante é o
decrescimento. Poderia esboçar como um mundo do decrescimento seria
implementado?
Martínez-Alier: É preciso reconhecer
que a obsessão pelo crescimento econômico segue firme. Em 1987, a comissão
Brundtland propôs a expressão “desenvolvimento sustentável”. Os economistas
ecológicos responderam que se o desenvolvimento significar crescimento, não é
sustentável. Hoje, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU insistem
no crescimento, proposto explicitamente no número 8. Economistas ecológicos
alertam que precisamos de uma economia do “estado estacionário”, como afirmou
Daly em 1977, a “prosperidade sem crescimento”, na expressão de Tim Jackson, ou
uma “economia do decrescimento”, como dizem Giorgos Kallis e Jason Hickel. Uma
vez convencidos de que devemos rumar para o “pós-crescimento”, então podemos
falar das políticas. Temos que decidir que indicadores físicos e sociais vamos
usar no lugar do PIB. Uma alternativa como o Índice de Desenvolvimento Humano,
por exemplo, é melhor do que o PIB, mas está muito correlacionado a ele e deixa
indicadores ambientais de lado. Como a energia não é reciclada e os materiais o
são em pequena medida, mesmo uma economia industrial sem crescimento teria de
ir às fronteiras de extração de commodities, e também do descarte de resíduos.
Onde colocar a produção excessiva de CO2? Nessas fronteiras extrativas, como um
brasileiro sabe, por causa do desmatamento na Amazônia, há humanos que
reclamam. E também outras espécies. As lutas contra a mineração, as
hidrelétricas, o desmatamento, são o que chamo de “decrescimento na prática”.
Essas pessoas querem viver bem, mas se opõem a esse tipo de desenvolvimento.
Valor: O sr. trabalha com ativistas há
décadas. Como avalia o estágio atual do ativismo ecológico? Já se tornou uma
força política global?
Martínez-Alier: Há um movimento
mundial crescente pela justiça ambiental, sobretudo no Sul Global, mas também
no Norte. Os jovens estão muito preocupados com as futuras gerações, e esses
jovens acreditam no decrescimento. No Sul, são muitos os movimentos locais que
se opõem à mineração, à extração de óleo e gás. Isto está ocorrendo ao redor do
mundo.
Valor: Em 2012, o sr. comentou que a
economia ecológica precisava se tornar “mainstream”. Hoje, como o sr. avalia a
influência da economia ecológica?
Martínez-Alier: Há livros-texto de
economia ecológica em várias línguas, mas essas publicações não são
“mainstream”. Uma dificuldade para a ampla aceitação da economia ecológica, que
vale também para outras ciências sociais ambientais, é a divisão que persiste,
no ensino escolar e universitário, entre as ciências naturais e as sociais. Até
os geógrafos cultivam a divisão absurda entre geografia humana e física. Os
estudantes de economia deveriam passar o primeiro semestre estudando a energia
solar, os ciclos do carbono e da água, a evolução da vida e a fotossíntese, a
descoberta da agricultura e assim por diante. Em vez disso, começam com o
estudo dos mercados e os preços das mercadorias. Não aprendem sobre “a lei da
entropia e o processo econômico”, título do livro de 1971 de Georgescu-Roegen.
Atualmente, estamos desenvolvendo também uma “economia ecológica dos negócios”,
porque os estudantes de administração não aprendem sobre os passivos ambientais
das empresas. Em 2021, por exemplo, a economista brasileira Beatriz Saes [da
Universidade Federal de São Paulo] e outros autores publicaram um artigo sobre
a realidade ambiental desastrosa da Vale, quando comparada com sua boa posição
nos índices de comportamento social e ambiental voltados para investidores.
Este ano, na próxima conferência internacional de economia ecológica, várias
sessões serão dedicadas à economia ecológica dos negócios.
Valor: O escopo dos conhecimentos
necessários para ser um economista ecológico parece bastante amplo. Envolve
saberes ligados à natureza, à sociedade, à política. O que entra na formação do
economista ecológico?
Martínez-Alier: Deve haver um
fundamento no estudo do metabolismo social, o que significa estudar o uso da
energia e dos materiais. O crescimento econômico implica a constante ampliação
desse uso. A economia ecológica se sobrepõe à ecologia industrial, à ecologia
urbana e à agroecologia. Economistas ecológicos devem estudar as instituições
da sociedade, que determinam os usos da natureza. Devem estudar os direitos de
propriedade, o que significa, em um país como o Brasil, conhecer a escravidão,
a agricultura em sistema de “plantation”, as tentativas posteriores de reforma
agrária. E também têm que estudar os mercados. Contudo, as pessoas que ainda
não nasceram e as outras espécies não podem ir aos mercados. Assim, economistas
ecológicos têm que estudar a valoração dos bens e serviços ambientais nos
mercados e fora deles. Não apenas se um valor monetário lhes é atribuído, mas
levando em consideração outros valores relevantes na sociedade: valores ligados
ao modo de vida, valores ecológicos, valores culturais... Tais valores não
podem ser todos medidos com a mesma unidade. Portanto, economistas ecológicos
devem estudar a avaliação multicritério.
Valor: O sr. se refere a um dilema
entre resgatar pessoas da pobreza e cuidar da natureza. Hoje, no Brasil, existe
a ambição de fazer as duas coisas ao mesmo tempo. É possível conciliar esses
valores?
Martínez-Alier: É possível. Na América Latina há um movimento forte contra as exportações baratas de matérias-primas. O continente exporta muito mais toneladas de material do que importa, mas exporta barato, e essas exportações destroem o meio ambiente, além de prejudicar populações locais. De tempos em tempos, surge um político em alta posição que se coloca a favor de uma política econômica ecológica, pelo menos por alguns meses. Hoje é Gustavo Petro, presidente da Colômbia. Sou otimista. Lentamente, apesar da pressão externa, agora sobretudo da China, os movimentos sociais e até mesmo a política eleitoral vão pondo os temas ambientais no centro da pauta. Percebo que até agora os ministros que são pró-ambiente duraram pouco. Aconteceu com Marina Silva, Alberto Acosta no Equador, Víctor Toledo no México, Pablo Solón na Bolívia. A Colômbia, com Petro, vai aumentar as exportações de carvão e petróleo ou vai reduzi-las e cobrar impostos pesados? Veremos.
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