domingo, 14 de maio de 2023

Entrevista | Joan Martínez-Alier: Pela sociedade pós-crescimento

Catalão Joan Martínez-Alier, que ganhou prêmio norueguês por contribuições para a economia ecológica, fala sobre necessidade de desenvolvimento realmente sustentável

Por Diego Viana – Eu & Fim de Semana / Valor Econômico  

Em 1948, o economista americano Paul Samuelson representou a economia como um encanamento circular, onde se movimentam investimentos, consumo, salários, impostos, insumos e bens. Imagens como essa se tornaram habituais, cristalizando a ideia da economia como um ciclo fechado. Hoje, com crises como a mudança climática e a degradação de terras e mares, já não é mais possível pensar assim: menos de 10% do que entra na economia circula de fato. O resto é dissipado ou descartado como resíduo. É o que aponta o economista ecológico catalão Joan Martínez-Alier, professor emérito da Universidade Autônoma de Barcelona, que recebeu neste ano o Prêmio Holberg, concedido pelo governo norueguês a acadêmicos das humanidades.

Martínez-Alier é um dos fundadores do ramo da economia ecológica, junto com autores como o romeno Nicholas Georgescu-Roegen e o americano Herman Daly, este último morto no ano passado. Esses economistas começaram a estudar as implicações do fato de que a atividade econômica é um subsistema do mundo físico, integrada ao sistema ecológico do planeta e sujeita à lei da entropia. Trata-se de um “metabolismo social” em que fluem materiais e energia, não só mercadorias e preços. Por isso, Daly e demais economistas ecológicos estão entre os primeiros a defender que o crescimento deixasse de ser o maior paradigma econômico.

“Os jovens estão muito preocupados com as futuras gerações, e esses jovens acreditam no decrescimento”

O catalão também está entre os fundadores da Sociedade Internacional de Economia Ecológica, em 1989. Entre seus principais livros estão “Economia ecológica: energia, ambiente e sociedade” e “O ecologismo dos pobres”. Este último, que aproveita sua ampla convivência com movimentos ecologistas latino-americanos, critica a ideia de que a pobreza é causa de degradação ambiental. Ao contrário, argumenta, algumas das maiores iniciativas de preservação vêm de comunidades marginalizadas.

Em 2015, Martínez-Alier atuou na criação do Atlas de Justiça Ambiental, que mapeia conflitos ligados ao meio ambiente em todo o mundo. A iniciativa foi mencionada pelo comitê do Prêmio Holberg como principal motivo para entregá-lo ao economista. O comitê citou “suas contribuições para a fundação da economia ecológica, sua análise pioneira das relações entre economia e meio ambiente, sua abordagem comparativa e interdisciplinar e seu papel na promoção da justiça ambiental”. O economista também recebeu o prêmio Leontief de 2017 e o prêmio Balzan de 2020.

Valor: O sr. afirma que os economistas acreditam que a economia é um processo circular, mas na verdade a circularidade é extremamente baixa. É possível constituir uma economia mais circular?

Joan Martínez-Alier: De fato, há um grande vão na circularidade. Cerca de um terço dos materiais que entram em uma economia industrial típica são combustíveis fósseis. Eles são queimados e esse é o fim da história, não há reciclagem. Outros materiais, como a areia e o cascalho da construção civil e da infraestrutura, se mantêm fixos por décadas. O cimento, em geral, não é reciclado. Depois, vem a biomassa, que pode voltar a crescer graças à energia solar. Mas boa parte desaparece como madeira queimada ou alimento de animais. Enfim, temos os metais, como o cobre ou o minério de ferro, do qual, aliás, 400 milhões de toneladas são exportadas anualmente pelo Brasil. A maior parte não é reciclada, os metais se tornam resíduo. Por causa desse vão da circularidade, a economia global procura constantemente por novos materiais e fontes de energia nas fronteiras de extração de commodities, muitas vezes matando populações indígenas. Para usar termos brasileiros, podemos dizer que é uma economia de bandeirantes em larga escala, uma economia política de grileiros.

Valor: O sr. dedica parte de sua obra às críticas ecológicas feitas à economia antes mesmo que se começasse a falar em ecologia. A exclusão da base física do pensamento econômico foi um movimento intencional na constituição dessa disciplina?

Martínez-Alier: Foi. Não estou dizendo que houve uma conspiração. O que ocorreu foi consequência da separação entre as ciências naturais, e também a engenharia, das ciências sociais. Vale lembrar que autores como Frederick Soddy, Prêmio Nobel de Química de 1921, criticaram os economistas nos anos 1920 e 1930 por falar da economia, mas não da disponibilidade energética. Soddy explicitou que a economia não é circular, mas entrópica: não se pode queimar carvão ou petróleo duas vezes. Esses materiais não são “produzidos”, mas extraídos de depósitos que se formaram a partir da fotossíntese de milhões de anos atrás. Soddy ainda não falava sobre a intensificação do efeito estufa, mas o que disse foi o suficiente para que a economia hegemônica o boicotasse.

Valor: O conceito de “retorno energético sobre a energia investida”, central no seu trabalho, é contraintuitivo: a ideia de que a agricultura industrial não é necessariamente produtora, mas pode ser consumidora de energia. Seria possível chegar à agricultura circular, capaz de alimentar uma população que deve chegar a cerca de 9,5 bilhões em 2045?

Martínez-Alier: Há dois pontos importantes nessa questão. A população mundial está deixando de crescer. Vejo isso com bons olhos. Como disse a escritora Maria Lacerda de Moura em 1932: “amai e... não vos multipliqueis”. O segundo ponto é o retorno energético da agricultura, que pode ser vista como um sistema de transformação de energia. No etanol do Brasil, se removermos a energia solar da equação, o cultivo da cana para produzir álcool gera um ganho líquido de energia. Mas, no caso da cultura de milho americano, provavelmente está sendo injetada mais energia de fertilizantes, tratores e transporte do que se obtém como milho. Consideremos a exportação de carne da Amazônia: primeiro se destrói a floresta, em seguida se cultiva o pasto, colocando um boi por hectare, e então se exporta a carne. Nesse caso, podemos dizer que há um ganho de proteínas. Por outro lado, há uma grande perda de calorias.

Valor: Outro conceito importante é o decrescimento. Poderia esboçar como um mundo do decrescimento seria implementado?

Martínez-Alier: É preciso reconhecer que a obsessão pelo crescimento econômico segue firme. Em 1987, a comissão Brundtland propôs a expressão “desenvolvimento sustentável”. Os economistas ecológicos responderam que se o desenvolvimento significar crescimento, não é sustentável. Hoje, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU insistem no crescimento, proposto explicitamente no número 8. Economistas ecológicos alertam que precisamos de uma economia do “estado estacionário”, como afirmou Daly em 1977, a “prosperidade sem crescimento”, na expressão de Tim Jackson, ou uma “economia do decrescimento”, como dizem Giorgos Kallis e Jason Hickel. Uma vez convencidos de que devemos rumar para o “pós-crescimento”, então podemos falar das políticas. Temos que decidir que indicadores físicos e sociais vamos usar no lugar do PIB. Uma alternativa como o Índice de Desenvolvimento Humano, por exemplo, é melhor do que o PIB, mas está muito correlacionado a ele e deixa indicadores ambientais de lado. Como a energia não é reciclada e os materiais o são em pequena medida, mesmo uma economia industrial sem crescimento teria de ir às fronteiras de extração de commodities, e também do descarte de resíduos. Onde colocar a produção excessiva de CO2? Nessas fronteiras extrativas, como um brasileiro sabe, por causa do desmatamento na Amazônia, há humanos que reclamam. E também outras espécies. As lutas contra a mineração, as hidrelétricas, o desmatamento, são o que chamo de “decrescimento na prática”. Essas pessoas querem viver bem, mas se opõem a esse tipo de desenvolvimento.

Valor: O sr. trabalha com ativistas há décadas. Como avalia o estágio atual do ativismo ecológico? Já se tornou uma força política global?

Martínez-Alier: Há um movimento mundial crescente pela justiça ambiental, sobretudo no Sul Global, mas também no Norte. Os jovens estão muito preocupados com as futuras gerações, e esses jovens acreditam no decrescimento. No Sul, são muitos os movimentos locais que se opõem à mineração, à extração de óleo e gás. Isto está ocorrendo ao redor do mundo.

Valor: Em 2012, o sr. comentou que a economia ecológica precisava se tornar “mainstream”. Hoje, como o sr. avalia a influência da economia ecológica?

Martínez-Alier: Há livros-texto de economia ecológica em várias línguas, mas essas publicações não são “mainstream”. Uma dificuldade para a ampla aceitação da economia ecológica, que vale também para outras ciências sociais ambientais, é a divisão que persiste, no ensino escolar e universitário, entre as ciências naturais e as sociais. Até os geógrafos cultivam a divisão absurda entre geografia humana e física. Os estudantes de economia deveriam passar o primeiro semestre estudando a energia solar, os ciclos do carbono e da água, a evolução da vida e a fotossíntese, a descoberta da agricultura e assim por diante. Em vez disso, começam com o estudo dos mercados e os preços das mercadorias. Não aprendem sobre “a lei da entropia e o processo econômico”, título do livro de 1971 de Georgescu-Roegen. Atualmente, estamos desenvolvendo também uma “economia ecológica dos negócios”, porque os estudantes de administração não aprendem sobre os passivos ambientais das empresas. Em 2021, por exemplo, a economista brasileira Beatriz Saes [da Universidade Federal de São Paulo] e outros autores publicaram um artigo sobre a realidade ambiental desastrosa da Vale, quando comparada com sua boa posição nos índices de comportamento social e ambiental voltados para investidores. Este ano, na próxima conferência internacional de economia ecológica, várias sessões serão dedicadas à economia ecológica dos negócios.

Valor: O escopo dos conhecimentos necessários para ser um economista ecológico parece bastante amplo. Envolve saberes ligados à natureza, à sociedade, à política. O que entra na formação do economista ecológico?

Martínez-Alier: Deve haver um fundamento no estudo do metabolismo social, o que significa estudar o uso da energia e dos materiais. O crescimento econômico implica a constante ampliação desse uso. A economia ecológica se sobrepõe à ecologia industrial, à ecologia urbana e à agroecologia. Economistas ecológicos devem estudar as instituições da sociedade, que determinam os usos da natureza. Devem estudar os direitos de propriedade, o que significa, em um país como o Brasil, conhecer a escravidão, a agricultura em sistema de “plantation”, as tentativas posteriores de reforma agrária. E também têm que estudar os mercados. Contudo, as pessoas que ainda não nasceram e as outras espécies não podem ir aos mercados. Assim, economistas ecológicos têm que estudar a valoração dos bens e serviços ambientais nos mercados e fora deles. Não apenas se um valor monetário lhes é atribuído, mas levando em consideração outros valores relevantes na sociedade: valores ligados ao modo de vida, valores ecológicos, valores culturais... Tais valores não podem ser todos medidos com a mesma unidade. Portanto, economistas ecológicos devem estudar a avaliação multicritério.

Valor: O sr. se refere a um dilema entre resgatar pessoas da pobreza e cuidar da natureza. Hoje, no Brasil, existe a ambição de fazer as duas coisas ao mesmo tempo. É possível conciliar esses valores?

Martínez-Alier: É possível. Na América Latina há um movimento forte contra as exportações baratas de matérias-primas. O continente exporta muito mais toneladas de material do que importa, mas exporta barato, e essas exportações destroem o meio ambiente, além de prejudicar populações locais. De tempos em tempos, surge um político em alta posição que se coloca a favor de uma política econômica ecológica, pelo menos por alguns meses. Hoje é Gustavo Petro, presidente da Colômbia. Sou otimista. Lentamente, apesar da pressão externa, agora sobretudo da China, os movimentos sociais e até mesmo a política eleitoral vão pondo os temas ambientais no centro da pauta. Percebo que até agora os ministros que são pró-ambiente duraram pouco. Aconteceu com Marina Silva, Alberto Acosta no Equador, Víctor Toledo no México, Pablo Solón na Bolívia. A Colômbia, com Petro, vai aumentar as exportações de carvão e petróleo ou vai reduzi-las e cobrar impostos pesados? Veremos.

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