O Estado de S. Paulo
Empenhado em buscar a paz entre Rússia e Ucrânia, Lula também tenta mandar nos juros e rever decisões do Congresso, mas cuida pouco da obrigação de administrar seu país
Lula quer mandar, muito mais do que
governar, como tem demonstrado em quase cinco meses de mandato. Quer mandar nos
juros, na Eletrobras, na política de pessoal das estatais, no Orçamento e nos
serviços de utilidade pública. Seu desejo pode conflitar com alguma lei
sancionada, mas isso pouco importa. De forma desaforada, tentou mudar com dois
decretos o marco legal do saneamento, atropelando uma legislação aprovada em
2020. De forma grosseira e indigna, tem atacado pessoalmente o presidente do
Banco Central (BC), acusando-o de trabalhar sem compromisso com o Brasil. O
ministro da Fazenda, Fernando Haddad, também tem criticado os juros, mas sem as
baixarias presidenciais. De forma civilizada, já apontou dois nomes para vagas
na diretoria do BC. Pode ser uma forma de introduzir a opinião do Executivo nas
discussões de crédito e juros. Mas o risco de intervenção permanece, mesmo com
as boas maneiras de um ministro conciliador.
Também conciliador e discreto, o economista Gabriel Galípolo, indicado para a Diretoria de Política Monetária do BC, já é visto como possível sucessor do presidente da instituição, Roberto Campos Neto. Por enquanto, Galípolo permanece como secretário executivo do Ministério da Fazenda, posto equivalente ao de viceministro. Sua transferência para a nova função, disse Galípolo, poderá facilitar a harmonização das políticas monetária e fiscal. O discurso parece atraente, mas a palavra “harmonização” é um tanto estranha.
Banco Central e Ministério da Fazenda têm
funções diferentes. Se a Fazenda, isto é, o Executivo, administrar com
prudência as finanças públicas, a autoridade monetária terá maior facilidade
para reduzir os juros, favorecendo o consumo, o investimento e a produção e
barateando, talvez, o financiamento do Tesouro. Mas o componente básico desse
jogo é a política fiscal seguida pelo governo. Além disso, o crescimento da
atividade produtiva depende mais da política econômica, no longo prazo, do que
de estímulos monetários. Com a política monetária mais frouxa deste século, o
mandato da presidente Dilma Rousseff terminou com o País atolado em recessão e
inflação.
Mas política econômica é ação de governo, e
governar tem ocupado pouco espaço na agenda do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva. Mostrandose pouco propenso a administrar, o presidente cuidou, até
agora, muito mais da imagem externa do Brasil do que da retomada do
crescimento. Será difícil, no entanto, manter alguma importância externa com
uma economia estagnada por longo tempo. Mesmo na América do Sul o País perderá
relevância, se passar a ser visto como um grandalhão incompetente e fracassado.
De fato, alguma perda já tem ocorrido, como
efeito da crescente presença chinesa nos mercados sul-americanos, incluído o
Mercosul. Recompor
um quadro mais favorável ao Brasil
dependerá basicamente do aumento da competitividade, uma questão ligada a
produtividade, qualidade e financiamento. Diplomacia pode ajudar, mas, sem os
dados prosaicos dos preços, da qualidade e das condições de pagamento, o
trabalho de persuasão pode ser menos eficaz em portunhol do que em qualquer
língua com sotaque chinês.
Detalhes como esse poderiam ser pouco
importantes no mundo bolsonariano. São familiares e relevantes, no entanto,
para o pessoal em torno do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Os ministros
da Fazenda, do Planejamento, do Desenvolvimento e da Agricultura estão
preparados para pensar questões ligadas à modernização e à expansão do sistema
produtivo. Mas essa capacidade faria pouca diferença, se o chefe do governo
fosse incapaz de pensar os problemas do desenvolvimento. Não é o caso do
presidente Lula.
Também ele já se mostrou capaz de entender
condições essenciais para a promoção de grandes mudanças, como a educação, a
pesquisa, a infraestrutura e a capacidade produtiva das empresas. Mais que
isso, ele parece perceber com clareza os vínculos entre a prosperidade
econômica e a busca da equidade social. Mas avanços concretos envolvem – é
preciso insistir no óbvio – fixação de prioridades, avaliação de custos,
estratégias de financiamento, definição de rumos e de etapas e um esforço de
articulação de tarefas.
Tem faltado, no entanto, o trabalho de
liderança e de articulação. O presidente Lula tem-se declarado disposto a ouvir
sugestões de empresários, sindicalistas, dirigentes de organizações civis e
quaisquer fontes capazes de colaborar com ideias. Para mostrar sua disposição
de contato com a sociedade, mandou remover as cercas do Palácio do Planalto.
Mas falta ir além do simbolismo.
Em termos simples, falta meter a mão na
massa e cuidar de questões concretas e próximas. O presidente brasileiro tem-se
empenhado mais na promoção da paz entre Rússia e Ucrânia do que na
revitalização econômica de seu país. Lula pouco pode fazer por ucranianos e
russos, mas pode fazer muito por milhões de brasileiros, e até por seus
vizinhos, se voltar à realidade e cuidar de sua obrigação principal, governar o
Brasil. Isso é muito diferente de simplesmente mandar.
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