domingo, 14 de maio de 2023

Janaína Figueiredo - A hora do voto enfurecido na América Latina

O Globo

Nova onda rosa era apenas expressão de desejo de alguns nostálgicos

Nos últimos tempos, muitos tiveram a expectativa de uma nova onda rosa na América Latina. As vitórias de Alberto Fernández na ArgentinaGabriel Boric no ChileGustavo Petro na Colômbia e Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil entusiasmaram setores que, precipitadamente, comemoraram o fim da onda direitista na região. O recente resultado da eleição para formar o novo Conselho Constitucional no Chile, somado ao fortalecimento da candidatura de Javier Milei na campanha presidencial na Argentina e ao bom desempenho do candidato de extrema direita Paraguayo Cubas no Paraguai — lá considerado um anarquista —, confirmou que a nova onda rosa era apenas expressão de desejo de alguns nostálgicos.

A América Latina vive um novo ciclo, mas ele nada tem a ver com experiências do passado recente. Em tempos de auge das redes sociais — que na região operam quase sem restrições —, a política tradicional está desconectada da sociedade e de suas demandas prioritárias, em momentos de deterioração da economia. Com governos que não entregam bons resultados, a extrema direita tem um terreno fértil para crescer. Com propostas em muitos casos delirantes, seus representantes — sempre habilidosos usuários das redes — estão conectados com uma rede global de extrema direita e aplicam ao pé da letra um manual de operações que inclui questionamento ao sistema eleitoral e aos partidos no poder. O discurso de Milei contra a “casta política” virou mantra entre setores de classe baixa, média e alta na Argentina.

No Chile, diz um alto representante do governo de Boric, os que votaram no Partido Republicano de José Antonio Kast são cidadãos enfurecidas com a política tradicional e com um governo enfraquecido. O que os enfurece? Essencialmente, o aumento da violência, os problemas econômicos e o crescimento da imigração de vizinhos latino-americanos — sobretudo venezuelanos. Existem claras semelhanças com elementos que fortalecem a extrema direita na Europa e nos Estados Unidos.

Uma das figuras que se destacaram na eleição chilena foi Luis Silva Irarrázaval, de 45 anos, que concentrou sua campanha nas redes e, numa estratégia para facilitar a penetração de suas ideias entre os setores populares, se apresentou apenas como “profe Silva”. Embora não tenha longa carreira como professor — passou por algumas universidades de Santiago —, buscou mostrar-se próximo do dia a dia das classes mais baixas. O sobrenome Irarrázaval, comum entre famílias da aristocracia chilena, saiu de cena. Candidato mais votado na Região Metropolitana da capital, é fiel militante do Opus Dei, integra grupos contrários a métodos anticoncepcionais e educação sexual integral, que pregam a criminalização da diversidade sexual de gênero. Silva representa o que existe de mais retrógrado na sociedade.

Depois da onda de protestos de 2019, da aprovação de um primeiro plebiscito para que o país tenha uma nova Constituição, da eleição do esquerdista — cada dia mais moderado — Boric como presidente, da derrota do plebiscito sobre a primeira proposta de reforma constitucional, o maior grupo dentro do Conselho que elaborará a segunda proposta de Carta será ultraconservador. Se a ideia era uma guinada de 180 graus em relação ao texto herdado da ditadura de Augusto Pinochet, hoje o Chile vive um momento de enormes desafios para a centro-esquerda e a esquerda.

Na vizinha Argentina, todas as pesquisas sugerem que Milei será o candidato mais votado nas Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (Paso), de 13 de agosto. Embora seu partido não tenha conseguido bons resultados em eleições regionais recentes, o fundador do partido Avança Liberdade está firme na liderança, com propostas como dolarizar a economia, permitir a venda de órgãos e revisar o sistema de educação pública.

A extrema direita avança diante de uma esquerda que não consegue estabelecer a mesma conexão com a sociedade. No segundo semestre do ano passado, o presidente Lula pediu a representantes do governo argentino informações sobre Milei. Em campanha eleitoral, ele queria entender o fenômeno que, naquele momento, ninguém acreditava ter chance nas eleições presidenciais de 2023. Numa dinâmica vertiginosa, a economia argentina degringolou, e Milei foi o único que, até agora, capitalizou o fracasso do governo peronista.

Não houve nova onda rosa, e o que vem por aí é tão incerto como assustador.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Assustador mesmo!