terça-feira, 25 de março de 2025

Em jogo no Supremo, a democracia de todos os manés - Maria Cristina Fernandes

Valor Econômico

Não está claro se o ineditismo de uma tentativa de golpe no banco de réus será suficiente para blindá-lo do açodamento. Resta torcer para que a presunção de inocência, a ampla defesa e o contraditório se imponham como pressupostos da ordem democrática que se dá por garantida

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva bateu asas no sábado à noite, levando consigo a cúpula do Congresso, de hoje e de ontem, e deixou a capital federal dominada pelo Supremo Tribunal Federal que inicia, nesta terça, a análise da denúncia do procurador-geral da República, Paulo Gonet, contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e mais sete. Receberá o resultado do futuro, vez que estará sob um fuso de 12 horas à frente do Brasil.

Se a aceitação da denúncia é um resultado previsível, o futuro não o é. A comitiva de Lula sugere que o presidente pretenda voltar da Ásia com o jogo montado para tentar manter ao seu lado aqueles que, até outro dia, cerravam fileiras com o bolsonarismo. Muito do que restará do outro lado depende do julgamento que agora se inicia no Supremo. O tamanho da direita - e de seus extremistas - em 2026 será inversamente proporcional às garantias conferidas aos réus.

A apresentação da minuta do golpe aos comandantes militares em 7/12 e o plano (Punhal Verde Amarelo) para matar Lula, o vice Geraldo Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes, impresso no Palácio do Planalto em 9/11 e levado ao Alvorada para ser mostrado ao ex-presidente (com registro de entrada do seu autor), são, até aqui, os fatos mais graves relatados pelo PGR e que melhor delimitam a vinculação da tentativa de golpe a Bolsonaro.

O vínculo do ex-presidente com o 8/1 é o maior desafio da acusação. A defesa deve se valer da inviabilidade de um golpe se concretizar sem a adesão das Forças Armadas - brasileiras e americanas, uma vez que Joe Biden ainda estava no poder.

Na denúncia austera e sem espetacularização de Gonet, a evidência mais eloquente é uma mensagem recebida por Bolsonaro em 2/1, quando ele já estava na Flórida, de major da Aeronáutica que lhe dá conta das tratativas: “O plano foi complementado com as contribuições da sua equipe (...) aguardamos na esperança de que será implementado (...) a minha tropa continua com sangue nos olhos.” Não há registro de uma resposta a esta mensagem.

Há ainda uma mensagem enviada ao ajudante de ordens, Mauro Cid, em 8/12, em que o general da operação Punhal Verde e Amarelo relata ter estado com Bolsonaro e debatido o momento ideal para deflagrar a ação golpista. Antes disso, por ocasião da divulgação da “Carta ao Comandante do Exército de Oficiais Superiores da Ativa do Exército”, que conclamava a adesão do comando do Exército ao golpe, um coronel recebe uma resposta positiva ao perguntar a Mauro Cid: “01 sabe disso”?

A exploração que a defesa fará dos vínculos entre Bolsonaro e os atos golpistas de 8/1 coloca ainda mais holofotes sobre as penas aplicadas à raia miúda que saiu às ruas naquele dia. Sim, daqui até o fim do ano, haverá tantos especialistas em “dosimetria das penas” quanto técnicos da seleção brasileira.

Aquelas aplicadas a Aécio Lúcio Pereira e a Débora Santos demonstram a dramaticidade envolvida no julgamento. O técnico da Sabesp com 25 anos de empresa, terraplanista e réu primário gravou um vídeo da mesa diretora do Senado se vangloriando pelo sucesso da invasão e conclamando seus colegas de trabalho a sair às ruas. Pegou 17 anos de prisão.

Já há dois votos (Alexandre de Moraes e Flávio Dino) para condenar a 14 anos de cana a cabeleireira, mãe de duas crianças, que subiu à estátua da deusa de olhos vendados a representar a Justiça, de Alfredo Ceschiatti, para nela reproduzir, com um batom, a frase que notabilizou a resposta do ministro Luís Roberto Barroso a um provocador em Nova York (“Perdeu, mané”).

Como Bolsonaro tem dificuldade de convencer seu próprio eleitor de que é vítima, resta-lhe colar no infortúnio dos réus mais desprotegidos. A severidade aplicada a Aécio e Débora, porém, atestada por criminalistas a rodo, sugere que há vítimas e há, também, as armas da política. A imputação de penas duras parece confiar na indiferença da opinião pública, vide o fiasco de Copacabana, às vítimas - reais e de mentirinha.

O julgamento de Débora foi paralisado por um pedido de vista de Luiz Fux, ministro da Segunda Turma indicado pela ex-presidente Dilma Rousseff. O recurso dá alento à hipótese de que, estivesse no plenário, este julgamento se arrastaria até 2026, embolando o meio de campo - ainda que a Corte tenha imposto limite à devolução das vistas e a hermenêutica não comporte considerações sobre o calendário eleitoral.

O julgamento que agora se inicia se dará na Primeira Turma porque, depois do infindável mensalão, no plenário se concentraram as ações de controle de constitucionalidade. Ações penais vão para as Turmas salvo se os réus forem presidentes de Poderes e ministros do STF. Como os atos imputados a Bolsonaro se deram no exercício da Presidência, o foro é o STF, mas, se este é o caso, não parece claro por que é a Turma e não o Plenário a fazê-lo. A questão está vencida, ainda que não pacificada (vide a entrevista de Davi Tangerino ao podcast “Sem Precedentes”).

A fuga de um filho de Bolsonaro, que nem acusado é, demonstra a tensão deste julgamento. A mobilização pode dar algum respiro a um Executivo em busca de uma pauta em 2026 que supere a defesa da democracia de sua eleição. Não está claro se o ineditismo de uma tentativa de golpe no banco de réus será suficiente para blindá-lo do açodamento. Resta torcer para que a presunção de inocência, a ampla defesa e o contraditório se imponham como pressupostos da ordem democrática que se dá por garantida.

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