2 - Desde então, o eixo político dos países democráticos reflete a disputa fundamental entre democratas de todos os matizes, que defendem o regime democrático, políticas de inclusão e de redução das desigualdades sociais, o multilateralismo e a resolução pactuada dos conflitos internacionais, de um lado, e aqueles que, inseguros com as incertezas do processo de globalização, se refugiam na invocação do passado, reivindicando soluções autoritárias no plano interno e "realismo" político no plano externo, ou seja, ao invés do direito internacional, dos organismos multilaterais, das soluções pactuadas, a prevalência simples da lei do mais forte.
3 - Passamos, no Brasil, por quatro anos de governo com declaradas
intenções autoritárias, inimigo da regulação ambiental, dos direitos
individuais e coletivos, das políticas de inclusão de gênero, de equidade
racial, da proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos discrepantes dos
padrões da heterossexualidade. Corremos o risco real de destruição do regime
democrático e de toda a ordem fundada na Carta de 1988. Superamos essa situação
de risco, temporariamente, por meio da articulação de uma ampla frente
democrática em torno da candidatura do atual Presidente da República, frente
vitoriosa no pleito de 2022.
4 - Hoje, transcorridos três anos e uma eleição municipal daqueles eventos,
nos encontramos no caminho de uma nova eleição presidencial em 2026. A projeção
simples dos resultados das eleições municipais aponta, de forma clara, para o
protagonismo, nesse pleito, já conquistado pela extrema direita, em alguma de
suas feições. Esclarecedor, a esse respeito foi o caso da eleição municipal em
São Paulo, onde o candidato vitorioso, embora apoiado pelo presidente anterior,
sofreu a concorrência feroz de uma candidatura independente de extrema direita
até o fechamento das urnas do primeiro turno. Ou seja, ficou claro que não são
os candidatos já estabelecidos nesse campo que comandam e direcionam os votos
desses eleitores, mas o eleitorado de direita é quem demanda alternativas mais
radicais, mesmo que em contraposição às diretivas de suas lideranças.
5 - Continuam a operar na sociedade, portanto, mecanismos de deslegitimação
da ordem democrática, mecanismos que tem sua origem, no Brasil, nas jornadas de
2013 e alimentam até hoje as candidaturas de extrema direita com parcelas
importantes de novos eleitores. Não podemos concluir que a batalha pelo futuro
democrático do país já está vencida. Pelo contrário, na situação de hoje, o
governo se encontra na defensiva, recebendo os ataques sistemáticos da oposição
a uma série de pontos ou lacunas vulneráveis de sua agenda. O sucesso da frente
ampla democrática que apoia o atual governo depende, de um lado, da vitória de
candidatos democratas nas eleições de 2026, não apenas na eleição presidencial,
mas em todos os pleitos disputados naquele ano. De outro lado, contudo, é
preciso que que o conjunto de forças do campo democrático trabalhe desde já
para reduzir as vulnerabilidades da nossa ordem democrática, acumuladas ao
longo de quatro décadas de operação. Vou comentar aquelas que me parecem mais
urgentes.
6 – Parece claro que a mudança na situação internacional, a partir da
vitória eleitoral e da posse de Trump no seu segundo mandato, uma derrota grave
para as forças democráticas e progressistas do mundo inteiro, constitui uma
importante vulnerabilidade da democracia que devemos enfrentar. Afinal, está no
comando da nação mais rica e poderosa do mundo o candidato eleito com um
discurso autoritário, protecionista e belicista; contrário aos imigrantes, à
proteção do meio ambiente, às políticas de inclusão de mulheres e não brancos;
disposto a abandonar toda a arquitetura erguida pela ONU em décadas de
operação, em favor da aplicação simples da lei dos mais fortes. O movimento é
claro: contra os regramentos pactuados interna e externamente, contra as leis,
a Constituição e os tratados internacionais, em favor de acordos com os
poderosos locais e estrangeiros, as potências militares e as grandes empresas
multinacionais de tecnologia. Nesse quadro preocupante, o governo brasileiro
precisa alargar seu leque de diálogo, em defesa da paz, do multilateralismo e
da democracia. Trata-se, como muitos já defendem, de aprofundar os laços com os
vizinhos mais próximos e com todos os aliados possíveis, para fortalecer e
ampliar as instâncias de integração regional e, num plano maior, para reformar
o sistema de organismos internacionais, de modo a evitar o ingresso num mundo
de competição sem regras e construir um processo alternativo de globalização.
7 – Devemos reconhecer o desempenho exitoso, em geral, das políticas
econômicas do governo, desempenho alcançado num quadro internacional
desfavorável, contrariando as expectativas majoritárias do debate público sobre
o tema. Os democratas devem apoiar enfaticamente a diretriz geral dessas
políticas, vocalizadas particularmente pelos Ministérios da Fazenda e do
Planejamento. Nesse tema, contudo, todo cuidado é pouco. A opinião pública é
volátil e particularmente sensível às mudanças na conjuntura econômica e,
principalmente, à percepção das dificuldades da economia, que tendem a ser
magnificadas na consciência dos eleitores. A predominância de percepções
pessimistas, justificadas ou não, no meio dos eleitores tem enorme potencial
disruptivo, em detrimento dos governantes e benefício da oposição, mesmo a
oposição extremista e autoritária, como vimos acontecer recentemente na eleição
americana. Portanto, em que pese os bons resultados obtidos até o momento, a
economia em geral permanece como uma área fértil para a emergência de
vulnerabilidades políticas. Consideramos a ameaça inflacionária a maior
vulnerabilidade potencial nesse campo, a exigir do governo cuidado especial com
o tema do equilíbrio fiscal.
8 – Segurança pública é outra matéria que ocupa, com razão, protagonismo
nas mentes e corações dos cidadãos. O campo progressista, no Brasil e no mundo,
tem encontrado dificuldade em formular políticas eficientes de segurança
pública que atendam, simultaneamente, à maximização da segurança coletiva e ao
resguardo dos direitos e garantias fundamentais do cidadão. Na batalha das
ideias, não tem conseguido enfrentar as propostas da direita, calcadas na
“guerra” contra o crime, ou seja, no uso da violência sem controle ou
limitações. Essa alternativa, embora de fácil entendimento e aceitação por
parte das vítimas potenciais dos criminosos, resvala necessariamente para a
prática de novos crimes, de responsabilidade das forças de segurança, e é,
mesmo no curto prazo, contraproducente. No Brasil, o enquadramento do problema
e sua solução progressiva dependem, inicialmente, do fim da política de
encarceramento em massa que vigora hoje, constituindo, na prática, uma política
de recrutamento eficaz para o crime organizado. Urge apontar de imediato um
caminho viável para dar solução a esse problema, sob pena de vermos o
agravamento da insegurança carrear votos dos incautos para os candidatos do
autoritarismo.
9 - As condições da governabilidade que nosso sistema político propicia
constituem, claramente, outro foco permanente de instabilidade política, com
reflexos cotidianos no humor dos eleitores. Não se trata apenas de as eleições
gerais no Brasil resultarem, frequentemente, em governos eleitos com minoria
nas duas Casas do Congresso Nacional, com a necessidade imperiosa, por
conseguinte, de alargar sua base parlamentar logo após a divulgação dos
resultados eleitorais. O problema de fundo é que o sistema eleitoral por nós
utilizado nas eleições proporcionais produz Casas Legislativas voltadas
majoritariamente para o atendimento dos interesses eleitorais dos parlamentares
que as integram. O interesse eleitoral nesse caso não passa, como nas demais
democracias do mundo, pelo filtro de alguma ideia de interesse geral, expressa
nas plataformas partidárias, que fornece fundamento para tratativas e
negociações no sentido da formação de governos de coalizão. Entre nós, os
interesses eleitorais de cada legislador preponderam, com a consequente
precariedade e insuficiência dos acordos alcançados. Nesse quadro, perante boa
parte da opinião pública, o Executivo aparece como refém permanente de um
Congresso interessado fundamentalmente na reprodução dos mandatos de seus integrantes.
Consideramos que esse estado de coisas contribui significativamente para o
processo em curso de deslegitimação da democracia e deve ser equacionado por
meio do debate aberto sobre alternativas de reforma do sistema eleitoral
vigente e, até mesmo, do sistema de governo, como preconizam diversas correntes
de opinião.
10 – Finalmente, parece claro que o sistema político brasileiro sofre,
ainda hoje, de uma crise profunda de legitimidade, crise que se manifesta na
predileção de parte considerável dos eleitores por candidatos ditos
“outsiders”, sem histórico de vida partidária, supostamente não contaminados
pelas mazelas e picuinhas das disputas travadas na institucionalidade
democrática. Essa crise tem sua origem nas jornadas de 2013, quando sucessivas
manifestações de massa demandaram dos governos nacionais, estaduais e municipais,
com toda justiça, eficácia, honestidade e transparência. Cumpre dizer que as
manifestações não exigiam dos governantes nada além do cumprimento de suas
obrigações constitucionais e legais. Infelizmente, essa demanda legítima foi
respondida pelas instâncias competentes do Judiciário, no que se convencionou
denominar “Operação Lava-Jato”, de uma forma irresponsável, com evidente
descuido das salvaguardas legais mais elementares, o que veio a motivar, em
pouco tempo, a reação corretora salutar do Supremo Tribunal Federal. Deve ser
lembrado, contudo, que os problemas que se encontravam na raiz desse processo
eram e continuam a ser reais. Esses problemas devem ser enfrentados de forma
aberta e sincera por todas as forças comprometidas com a democracia do país,
sob pena da perda de credibilidade dessas forças perante grande parte dos
cidadãos. Defendemos, por conseguinte, a retomada do debate sobre a regra
eleitoral, particularmente nas eleições proporcionais, e da relação entre a
política e seu financiamento na democracia brasileira, com as consequências
previsíveis em termos de mudanças nas regras eleitorais e partidárias vigentes.
*Caetano Ernesto Pereira de Araújo,
consultor legislativo do Senado Federal, doutor em sociologia pela Universidade
de Brasília.
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