terça-feira, 25 de março de 2025

Democracia hoje no Brasil: riscos e vulnerabilidades – Caetano Araújo*

1 - A expansão e consolidação das redes sociais como instrumento de comunicação ao alcance dos cidadãos, a partir do início do século, e o consequente aumento do fluxo de informação e desinformação política e cultural alteraram profundamente a dinâmica do mundo da política, principalmente nos países democráticos. Num primeiro momento, parecia que os ganhos em tecnologia justificariam as previsões otimistas de incremento necessário do teor de democracia em todos os sistemas políticos. Diversos movimentos, combinando ruas e redes, emergiram em poucos anos, em diferentes países, demandando mais e melhor democracia. No entanto, a partir da vitória dos isolacionistas britânicos, no referendo de 2016, e da eleição de Trump para seu primeiro mandato, ficou claro que a dianteira no uso político eficaz das novas tecnologias estava nas mãos de uma nova direita, chauvinista, belicista, autoritária e conservadora em matéria de costumes.

2 - Desde então, o eixo político dos países democráticos reflete a disputa fundamental entre democratas de todos os matizes, que defendem o regime democrático, políticas de inclusão e de redução das desigualdades sociais, o multilateralismo e a resolução pactuada dos conflitos internacionais, de um lado, e aqueles que, inseguros com as incertezas do processo de globalização, se refugiam na invocação do passado, reivindicando soluções autoritárias no plano interno e "realismo" político no plano externo, ou seja, ao invés do direito internacional, dos organismos multilaterais, das soluções pactuadas, a prevalência simples da lei do mais forte.

3 - Passamos, no Brasil, por quatro anos de governo com declaradas intenções autoritárias, inimigo da regulação ambiental, dos direitos individuais e coletivos, das políticas de inclusão de gênero, de equidade racial, da proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos discrepantes dos padrões da heterossexualidade. Corremos o risco real de destruição do regime democrático e de toda a ordem fundada na Carta de 1988. Superamos essa situação de risco, temporariamente, por meio da articulação de uma ampla frente democrática em torno da candidatura do atual Presidente da República, frente vitoriosa no pleito de 2022.

4 - Hoje, transcorridos três anos e uma eleição municipal daqueles eventos, nos encontramos no caminho de uma nova eleição presidencial em 2026. A projeção simples dos resultados das eleições municipais aponta, de forma clara, para o protagonismo, nesse pleito, já conquistado pela extrema direita, em alguma de suas feições. Esclarecedor, a esse respeito foi o caso da eleição municipal em São Paulo, onde o candidato vitorioso, embora apoiado pelo presidente anterior, sofreu a concorrência feroz de uma candidatura independente de extrema direita até o fechamento das urnas do primeiro turno. Ou seja, ficou claro que não são os candidatos já estabelecidos nesse campo que comandam e direcionam os votos desses eleitores, mas o eleitorado de direita é quem demanda alternativas mais radicais, mesmo que em contraposição às diretivas de suas lideranças.

5 - Continuam a operar na sociedade, portanto, mecanismos de deslegitimação da ordem democrática, mecanismos que tem sua origem, no Brasil, nas jornadas de 2013 e alimentam até hoje as candidaturas de extrema direita com parcelas importantes de novos eleitores. Não podemos concluir que a batalha pelo futuro democrático do país já está vencida. Pelo contrário, na situação de hoje, o governo se encontra na defensiva, recebendo os ataques sistemáticos da oposição a uma série de pontos ou lacunas vulneráveis de sua agenda. O sucesso da frente ampla democrática que apoia o atual governo depende, de um lado, da vitória de candidatos democratas nas eleições de 2026, não apenas na eleição presidencial, mas em todos os pleitos disputados naquele ano. De outro lado, contudo, é preciso que que o conjunto de forças do campo democrático trabalhe desde já para reduzir as vulnerabilidades da nossa ordem democrática, acumuladas ao longo de quatro décadas de operação. Vou comentar aquelas que me parecem mais urgentes.

6 – Parece claro que a mudança na situação internacional, a partir da vitória eleitoral e da posse de Trump no seu segundo mandato, uma derrota grave para as forças democráticas e progressistas do mundo inteiro, constitui uma importante vulnerabilidade da democracia que devemos enfrentar. Afinal, está no comando da nação mais rica e poderosa do mundo o candidato eleito com um discurso autoritário, protecionista e belicista; contrário aos imigrantes, à proteção do meio ambiente, às políticas de inclusão de mulheres e não brancos; disposto a abandonar toda a arquitetura erguida pela ONU em décadas de operação, em favor da aplicação simples da lei dos mais fortes. O movimento é claro: contra os regramentos pactuados interna e externamente, contra as leis, a Constituição e os tratados internacionais, em favor de acordos com os poderosos locais e estrangeiros, as potências militares e as grandes empresas multinacionais de tecnologia. Nesse quadro preocupante, o governo brasileiro precisa alargar seu leque de diálogo, em defesa da paz, do multilateralismo e da democracia. Trata-se, como muitos já defendem, de aprofundar os laços com os vizinhos mais próximos e com todos os aliados possíveis, para fortalecer e ampliar as instâncias de integração regional e, num plano maior, para reformar o sistema de organismos internacionais, de modo a evitar o ingresso num mundo de competição sem regras e construir um processo alternativo de globalização.

7 – Devemos reconhecer o desempenho exitoso, em geral, das políticas econômicas do governo, desempenho alcançado num quadro internacional desfavorável, contrariando as expectativas majoritárias do debate público sobre o tema. Os democratas devem apoiar enfaticamente a diretriz geral dessas políticas, vocalizadas particularmente pelos Ministérios da Fazenda e do Planejamento. Nesse tema, contudo, todo cuidado é pouco. A opinião pública é volátil e particularmente sensível às mudanças na conjuntura econômica e, principalmente, à percepção das dificuldades da economia, que tendem a ser magnificadas na consciência dos eleitores. A predominância de percepções pessimistas, justificadas ou não, no meio dos eleitores tem enorme potencial disruptivo, em detrimento dos governantes e benefício da oposição, mesmo a oposição extremista e autoritária, como vimos acontecer recentemente na eleição americana. Portanto, em que pese os bons resultados obtidos até o momento, a economia em geral permanece como uma área fértil para a emergência de vulnerabilidades políticas. Consideramos a ameaça inflacionária a maior vulnerabilidade potencial nesse campo, a exigir do governo cuidado especial com o tema do equilíbrio fiscal.

8 – Segurança pública é outra matéria que ocupa, com razão, protagonismo nas mentes e corações dos cidadãos. O campo progressista, no Brasil e no mundo, tem encontrado dificuldade em formular políticas eficientes de segurança pública que atendam, simultaneamente, à maximização da segurança coletiva e ao resguardo dos direitos e garantias fundamentais do cidadão. Na batalha das ideias, não tem conseguido enfrentar as propostas da direita, calcadas na “guerra” contra o crime, ou seja, no uso da violência sem controle ou limitações. Essa alternativa, embora de fácil entendimento e aceitação por parte das vítimas potenciais dos criminosos, resvala necessariamente para a prática de novos crimes, de responsabilidade das forças de segurança, e é, mesmo no curto prazo, contraproducente. No Brasil, o enquadramento do problema e sua solução progressiva dependem, inicialmente, do fim da política de encarceramento em massa que vigora hoje, constituindo, na prática, uma política de recrutamento eficaz para o crime organizado. Urge apontar de imediato um caminho viável para dar solução a esse problema, sob pena de vermos o agravamento da insegurança carrear votos dos incautos para os candidatos do autoritarismo.

9 - As condições da governabilidade que nosso sistema político propicia constituem, claramente, outro foco permanente de instabilidade política, com reflexos cotidianos no humor dos eleitores. Não se trata apenas de as eleições gerais no Brasil resultarem, frequentemente, em governos eleitos com minoria nas duas Casas do Congresso Nacional, com a necessidade imperiosa, por conseguinte, de alargar sua base parlamentar logo após a divulgação dos resultados eleitorais. O problema de fundo é que o sistema eleitoral por nós utilizado nas eleições proporcionais produz Casas Legislativas voltadas majoritariamente para o atendimento dos interesses eleitorais dos parlamentares que as integram. O interesse eleitoral nesse caso não passa, como nas demais democracias do mundo, pelo filtro de alguma ideia de interesse geral, expressa nas plataformas partidárias, que fornece fundamento para tratativas e negociações no sentido da formação de governos de coalizão. Entre nós, os interesses eleitorais de cada legislador preponderam, com a consequente precariedade e insuficiência dos acordos alcançados. Nesse quadro, perante boa parte da opinião pública, o Executivo aparece como refém permanente de um Congresso interessado fundamentalmente na reprodução dos mandatos de seus integrantes. Consideramos que esse estado de coisas contribui significativamente para o processo em curso de deslegitimação da democracia e deve ser equacionado por meio do debate aberto sobre alternativas de reforma do sistema eleitoral vigente e, até mesmo, do sistema de governo, como preconizam diversas correntes de opinião.

10 – Finalmente, parece claro que o sistema político brasileiro sofre, ainda hoje, de uma crise profunda de legitimidade, crise que se manifesta na predileção de parte considerável dos eleitores por candidatos ditos “outsiders”, sem histórico de vida partidária, supostamente não contaminados pelas mazelas e picuinhas das disputas travadas na institucionalidade democrática. Essa crise tem sua origem nas jornadas de 2013, quando sucessivas manifestações de massa demandaram dos governos nacionais, estaduais e municipais, com toda justiça, eficácia, honestidade e transparência. Cumpre dizer que as manifestações não exigiam dos governantes nada além do cumprimento de suas obrigações constitucionais e legais. Infelizmente, essa demanda legítima foi respondida pelas instâncias competentes do Judiciário, no que se convencionou denominar “Operação Lava-Jato”, de uma forma irresponsável, com evidente descuido das salvaguardas legais mais elementares, o que veio a motivar, em pouco tempo, a reação corretora salutar do Supremo Tribunal Federal. Deve ser lembrado, contudo, que os problemas que se encontravam na raiz desse processo eram e continuam a ser reais. Esses problemas devem ser enfrentados de forma aberta e sincera por todas as forças comprometidas com a democracia do país, sob pena da perda de credibilidade dessas forças perante grande parte dos cidadãos. Defendemos, por conseguinte, a retomada do debate sobre a regra eleitoral, particularmente nas eleições proporcionais, e da relação entre a política e seu financiamento na democracia brasileira, com as consequências previsíveis em termos de mudanças nas regras eleitorais e partidárias vigentes.

*Caetano Ernesto Pereira de Araújo, consultor legislativo do Senado Federal, doutor em sociologia pela Universidade de Brasília.


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