terça-feira, 25 de março de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Exame de denúncia contra golpistas deve ser didático

O Globo

Para evitar dúvidas sobre a gravidade dos crimes e sobre as penas aplicadas, ministros precisam se fazer entender

A partir de hoje, o Supremo Tribunal Federal (STF) começa a examinar as denúncias da Procuradoria-Geral da República (PGR) relativas à tentativa de golpe de Estado em 2022. O primeiro grupo de denunciados é inédito. Nele estão o ex-presidente da República Jair Bolsonaro, quatro ex-ministros, três ex-integrantes do Alto-Comando do Exército e um ex-comandante da Marinha. Além de Bolsonaro, fazem parte do que a PGR chama de “núcleo crucial” Walter Braga Netto, ex-ministro da Defesa e candidato a vice na chapa de Bolsonaro; Augusto Heleno, ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional; Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa; Anderson Torres, ex-ministro da Justiça; Almir Garnier, ex-comandante da Marinha; Alexandre Ramagem, deputado federal pelo Rio e ex-diretor da Abin; e Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. Até o fim de abril, outros 26 denunciados serão objeto de análise na Primeira Turma do STF. Aqueles cujas denúncias forem aceitas se tornarão réus e serão julgados.

Como o STF foi alvo de violência no passado, fez bem a Corte ao preparar um esquema especial de segurança. O policiamento será ampliado, o controle de acesso será mais rigoroso, e a proteção contra ataques digitais foi reforçada. A decisão de transmitir a sessão pela TV Justiça é bem-vinda, por dar mais transparência a um evento crítico para o futuro da democracia brasileira.

A denúncia contra Bolsonaro e seu círculo mais próximo é sólida. Está baseada em extenso trabalho de investigação da Polícia Federal. Ciente disso, Bolsonaro e seus apoiadores começaram há muito uma campanha por anistia. Ela precisa ser repudiada de forma enérgica. Comprovada a validade da denúncia — e os elementos apresentados no inquérito são mais que suficientes para isso —, os eventuais condenados deverão ser punidos de forma não apenas exemplar, mas também didática.

Esse é um ponto em que o STF tem deixado a desejar. No julgamento dos casos do 8 de Janeiro já encerrados ou em andamento, várias sentenças têm despertado dúvidas sensatas. O último exemplo é o processo envolvendo a cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos, responsável por pichar a estátua A Justiça, em frente à sede do Supremo. Débora, presa desde 2023, integrou os acampamentos em frente a quartéis e acompanhou os golpistas à Praça dos Três Poderes. Em sua defesa, ela afirmou não saber da importância da estátua e contou que foi chamada a concluir a pichação apenas por ter melhor caligrafia. Os dois votos já proferidos a condenam a 14 anos de prisão. É uma pena desproporcional à gravidade do delito. Basta lembrar que os dois golpistas que tentaram explodir um caminhão de combustível perto do aeroporto de Brasília em 2022 receberam punições mais brandas (um pegou cinco anos, o outro nove anos e oito meses).

É fundamental punir aqueles que tramaram um golpe contra a democracia, mas não pode restar dúvida sobre a proporção das punições. Por isso os ministros devem redobrar o cuidado. As decisões precisam ser técnicas e, ao mesmo tempo, de fácil entendimento. Partidários da narrativa descabida segundo a qual não houve tentativa de golpe serão sempre críticos. Mas mesmo essa minoria radical merece explicações claras sobre a gravidade dos crimes. Não bastará transmitir as decisões pela TV Justiça para os ministros do STF se fazerem entender.

Fim da presunção de boa-fé na venda de ouro é avanço contra garimpo ilegal

Por unanimidade, STF invalidou trecho da lei de 2013 que abria mercado a produto ilícito

É um alento para o meio ambiente a decisão unânime do Supremo Tribunal Federal (STF) que põe fim à presunção de boa-fé no comércio de ouro. Ao concluir o julgamento de uma ação movida por PSB, PV e Rede, a Corte fechou uma porta importante para a ilegalidade. Pela legislação em vigor desde 2013, distribuidoras de títulos e valores mobiliários estavam autorizadas a comprar o metal com base na boa-fé dos vendedores, sem necessidade de comprovar origem. O plenário considerou inconstitucional esse trecho da lei. Em 2023, o STF já barrara o dispositivo, mas agora a decisão se tornou definitiva.

Em seu voto, o ministro Gilmar Mendes, relator do caso, ressaltou que a presunção de boa-fé sabotava o controle de “uma atividade inerentemente poluidora”, uma vez que “não apenas facilita, como serve de incentivo à comercialização de ouro originário de garimpo ilegal”. A simplificação da compra, disse ele, fortaleceu atividades como desmatamento, contaminação de rios, violência nas regiões de garimpo, “chegando a atingir os povos indígenas das áreas afetadas”. Sob uma legislação torta, na prática imperava a ilegalidade. Em 2021, 52,8 toneladas de ouro vendidas no Brasil tinham indícios de irregularidades, quantidade que correspondia a 54% da produção nacional, segundo levantamento do Instituto Escolhas. Quase dois terços do ouro (61%) eram retirados da Amazônia.

Nos últimos anos, têm sido tomadas medidas para dificultar a farra no comércio do ouro. Em 2023, a Receita Federal passou a exigir nota fiscal eletrônica para operações com ouro no Brasil. O documento deve ser emitido na primeira compra do ouro bruto, na importação, na exportação e em transações de instituições financeiras.

Embora essas medidas sejam bem-vindas, ainda há muito a fazer para disciplinar o comércio ilegal. O garimpo clandestino resiste na Amazônia, apesar das promessas em contrário feitas com estardalhaço no início do atual governo. Não se pode dizer que Polícia Federal e órgãos ambientais não realizem operações para reprimi-lo. Mas é um fazer e refazer constante, porque os garimpeiros sempre voltam. As autoridades têm se mostrado incapazes de oferecer alternativas sustentáveis de trabalho aos milhares de garimpeiros que ocupam a região.

Exigir comprovação da origem do ouro não bastará. Acertadamente, Gilmar determinou que o governo tome providências, como medidas legislativas, regulatórias ou administrativas, para tornar inviável a compra de ouro extraído de terras indígenas ou áreas de proteção ambiental. É preciso acelerá-las. Ao mesmo tempo, há que combater o garimpo ilegal que se espalha pela Amazônia, desmatando a floresta, contaminando os rios com mercúrio e levando doenças às populações. Se os garimpeiros permanecem onde estão, é porque existe mercado seguro para o ouro ilegal.

Emendas precisam ser diligentemente acompanhadas

Valor Econômico

Fatia do Legislativo no orçamento é francamente desproporcional na comparação com outros países e, além de outros defeitos, foge do controle dos demais Poderes

As emendas parlamentares bateram um recorde no Orçamento de 2025. Foram R$ 50,4 bilhões de emendas individuais, de bancadas e de comissões, mais um acerto com os líderes do Congresso para o pagamento extra de R$ 11,2 bilhões. O total, R$ 61,6 bilhões, é um pouco menos de um quarto de todas as despesas discricionárias no ano, orçadas em R$ 225,8 bilhões. A fatia do Legislativo é francamente desproporcional na comparação com outros países e, além de outros defeitos, foge do controle dos demais Poderes. O Tribunal de Contas da União (TCU) revelou que nas emendas que analisou a partir de 2020 - ano em que elas explodiram e em que nasceu o orçamento secreto -, só 25% são completamente rastreáveis, isto é, podem ser acompanhadas desde sua inserção na peça orçamentária até a execução.

Coube ao ministro do Supremo Tribunal Federal Flávio Dino exigir que os princípios constitucionais fossem cumpridos e que se dessem transparência e publicidade totais a esse tipo de gastos com recursos públicos. A disputa levou meses, arrastou consigo a votação do orçamento, só feita na semana passada, e terminou em um acordo com Executivo e Legislativo para que todo o processo fosse feito à luz do dia. Ainda assim, nos R$ 11,5 bilhões das emendas de comissão, há a suspeita de que o acordo foi descumprido e de que não será possível distinguir o autor delas. Mas o acordo deu origem a um sistema de registro que aperfeiçoará, e muito, o acompanhamento da origem e das destinações das verbas. É com base nele, e aperfeiçoamentos posteriores, que o TCU pretende no futuro publicar todos os documentos referentes a emendas para ampla consulta pública.

O aumento dos recursos das emendas em poder do Legislativo retira verbas do Executivo para realização dos projetos de interesse nacional ou regional, em favor de projetos de interesses de deputados e senadores com fins eleitorais, e abre enorme brecha para malversação de fundos. Nem mesmo a finalidade das emendas está hoje assegurada. Estudo da Comissão de Orçamento e Fiscalização Financeira, a pedido da deputada Adriana Ventura, revelou que só 20% dos R$ 14,3 bilhões das emendas de bancadas estaduais foram destinadas a obras propriamente ditas. A maior parte do dinheiro será usada em custeio dos serviços ou compra de máquinas e equipamentos (Folha de S. Paulo, 16 de março). Longe de se acoplarem a projetos estruturantes, elas são divididas entre os parlamentares e pulverizadas a seu bel prazer.

A destinação e o uso dos recursos, como revelou o TCU, não são inteiramente conhecidos, o que era claramente o caso da aberração das emendas Pix, em que transferências diretas para municípios e Estados davam ao receptor da verba o direito de usar os recursos à sua escolha.

À medida que a impositividade da execução avançou, a transparência das emendas deu marcha a ré. Antes, conta o consultor de Orçamento aposentado da Câmara Hélio Tollini, as emendas eram “totalmente específicas”. “Ao longo dos anos, os parlamentares perceberam que não precisavam ser tão específicos, já que isso dava margem para, em um segundo momento, redirecionar o destino dos recursos” (Valor, ontem). Mais de R$ 150 bilhões em emendas foram transferidas desde 2020 pelos parlamentares, mas, segundo Marina Atoji, diretora da Transparência Brasil, “não dá nem para saber se elas de fato contribuem para garantir a entrega de serviços públicos ou reduzir desigualdades”.

Para políticos que querem se perpetuar na carreira, seria praxe e do máximo interesse a publicidade de que apadrinhou verbas e garantiu obras nos seus círculos eleitorais. Curiosamente, mas não estranho, algumas das principais batalhas pela transparência das emendas se dão em torno da ocultação dos nomes dos benfeitores. Uma explicação para isso está nas mais de 40 investigações conduzidas pela Polícia Federal para apurar desvios, mau uso, licitações fraudulentas, apropriação indébita e uma série de crimes cometidos em todas as fases do processo.

Algumas das mais recentes investigações dão ideia do desperdício de recursos. Agindo como se fossem donos do dinheiro - ideia que a repartição per capita das emendas individuais possibilita -, surgiu a figura do corretor de emendas, o próprio parlamentar, e de atravessadores. Três deputados do PL são réus no Supremo por exigir do prefeito de São José Ribamar (MA) que, dos R$ 6 milhões que seriam enviados por emendas, R$ 1,6 milhão lhe fosse devolvido pelo benefício conseguido.

Casos diferentes, mas não menos graves, ocorrerem com frequência na Codevasf, feudo dos partidos do Centrão, onde investigações concluíram que houve irregularidades em R$ 3,5 bilhões para projetos, em que uma empresa ganhou uma dezena de licitações viciadas, e houve indicação por parlamentares das empresas que fariam o serviço e o preço que cobrariam. Enriquecimento ilícito e desvio de recursos são apenas consequências da falta ou impossibilidade de fiscalização. As emendas giram uma enormidade de recursos e urge que sejam diligentemente acompanhadas. É o mínimo que já deveria ter sido feito.

Supremo deve autorizar ação penal contra Bolsonaro

Folha de S. Paulo

Iniciado o processo, ampla defesa será crucial para desfecho irreprochável de julgamento inédito na história brasileira

A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STFcomeça a decidir nesta terça (25) se o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) deve ser julgado por tramar contra a democracia.

A opção de tratar o tema no plenário, que seria a mais indicada para o país, foi pelo visto abortada em nome de evitar protelações, que poderiam advir de pedidos de vista e recursos e empurrar o resultado para o ano eleitoral de 2026 ou até além dele.

Não há precedente na história brasileira de processo com essas características. A lei que fixou os dispositivos de defesa do Estado democrático de Direito é recente. Foi aprovada no Congresso Nacional e sancionada há três anos e meio.

Ironicamente, quatro das cinco autoridades que assinaram a sanção em setembro de 2021 figuram entre os denunciados pelo procurador-geral da República: Bolsonaro, presidente, Braga Netto, ministro da Defesa, Anderson Torres, da Justiça, e Augusto Heleno, da Segurança Institucional.

Paulo Sérgio Nogueira, que assumiu a Defesa quando Braga Netto saiu para candidatar-se a vice, Almir Garnier, que chefiou a Marinha, Alexandre Ramagem, da Abin, e Mauro Cid, o ajudante de ordens cuja delação vertebra a acusação, completam o rol de denunciados pela Procuradoria-Geral da República (PGR).

O elevado status dos ex-agentes públicos que Paulo Gonet quer tornar réus completa a novidade histórica. Nunca o Judiciário brasileiro apreciou um caso em que pessoas investidas de tanto poder são apontadas como golpistas.

Esses fatos atestam a fortaleza do regime democrático no Brasil. Legisladores não se intimidaram e aprovaram uma lei de defesa da democracia em pleno mandato de um presidente de pendor autoritário. Ele se viu obrigado a chancelar o diploma, mas não entendeu o que estava implícito.

Continuou a radicalizar em atos e discursos. Negou-se a reconhecer a derrota eleitoral e se reuniu com militares acalentando uma virada de mesa. Incentivou a baderna diante dos quartéis e os bloqueios de rodovias.

Já seus comandantes do Exército, Freire Gomes, e da Aeronáutica, Baptista Júnior, perceberam que o Brasil das quarteladas ficou para trás e se recusaram a embarcar na aventura. Por isso não se sentarão no banco dos réus.

O juízo acerca da denúncia conferirá se os requisitos básicos para a ação penal estão presentes. Uma descrição coerente dos fatos e tipicidades criminais e da conexão com os acusados basta para que seja autorizada a instalação do processo propriamente dito.

Como o libelo de Gonet atende às exigências, espera-se dos cinco ministros que o apreciarão a chancela para iniciar o processo. A partir daí, as defesas deverão ter ampla latitude para exercer o contraditório e explorar incoerências e lacunas da acusação.

Pelo entrechoque civilizado entre quem acusa e quem se defende produz-se justiça na democracia. Os adversários de Bolsonaro não teriam essa possibilidade se os delírios cesaristas do ex-mandatário pudessem prevalecer

O impacto bilionário do álcool no Brasil

Folha de S. Paulo

Pesquisa revela perda de R$ 18,8 bi pelo consumo da bebida, que pode ser reduzido com impostos e restrição à publicidade

O consumo de substâncias psicoativas, por óbvio, contém riscos que impactam a saúde e a economia.
Quando tais drogas são legalizadas, contudo, o Estado pode instituir políticas para conter os problemas —o mercado negro cria um ponto cego para os gestores e funciona pela violência.

No caso do álcool, um levantamento da Fiocruz divulgado em novembro estimou que, em 2019, o consumo desse tipo de bebida gerou perdas no valor de R$ 18,8 bilhões no Brasil.

Do total, R$ 1,1 bilhão refere-se a custos diretos com hospitalizações e procedimentos ambulatoriais no SUS, que incluem doenças do fígado, do pâncreas e cardiovasculares, além de diversos tipos de câncer, transtornos mentais, acidentes de trânsito e violências interpessoais.

Os outros R$ 17,7 bilhões são custos indiretos relacionados a queda de produtividade por mortalidade prematura, licenças e aposentadorias precoces e absenteísmo por internação hospitalar ou licença médica.

O resultado pode ser conservador, dado que a pesquisa se baseia em dados públicos no nível federal. Assim, estão excluídos os gastos da rede privada e os complementos de estados e municípios.

Segundo o Vigitel do Ministério da Saúde, que realiza sondagens por telefone, entre 2006 e 2023, a taxa de consumo abusivo de álcool (quatro ou mais doses para mulheres e cinco ou mais doses para homens) no estrato acima dos 18 anos subiu de 15,7% para 20,8%.

A alta foi puxada pelas mulheres, cuja taxa saltou de 7,8% para 15,2%, enquanto a dos homens aumentou apenas 2,3 pontos percentuais, chegando a 27,3%.

Em 2021, a pasta da Saúde estabeleceu a meta de reduzir a ingestão abusiva em 10% até 2030 —depois alterada para 20%. Se seguir protocolos e se respaldar em evidências para criar políticas e alocar recursos, o Brasil é capaz de melhorar seus indicadores. Foi assim com o tabaco, com queda de 15,7% para 9,3% na taxa de fumantes entre 2006 e 2023.

Além de fiscalizar e punir motoristas que dirigem sob efeito do álcool, expandir campanhas de conscientização e fortalecer o sistema de saúde, a OMS recomenda duas ações do tipo "best buys" (as que são mais econômicas para os governos e geram um retorno significativo rápido).

São elas a restrição severa de publicidade e patrocínio de bebidas alcoólicas e a cobrança de altos impostos para esses produtos —o Brasil já conta com tributação especial, mantida na reforma tributária por meio do Imposto Seletivo (IS), que incidirá sobre itens nocivos à saúde.

O ‘empréstimo do Lula’

O Estado de S. Paulo

Melhor do que associar a figura do presidente à de uma financeira a quem os desesperados recorrem seria facilitar o acesso do trabalhador a um dinheiro que já é dele para aliviar dívidas

Em apenas três dias, 40,1 milhões de trabalhadores com carteira assinada realizaram simulações sobre a nova modalidade de crédito lançada pelo governo. Desse total, 4,5 milhões efetivamente solicitaram o empréstimo consignado e 11 mil contratos já foram formalizados, segundo o Ministério do Trabalho. Os números evidenciam o interesse dos brasileiros e o filão que o governo deverá explorar na campanha eleitoral.

O público-alvo da medida são trabalhadores do setor privado com carteira assinada, empregados domésticos, trabalhadores rurais, assalariados e microempreendedores individuais (MEIs), que pagam, de fato, taxas bem mais altas do que as cobradas de aposentados, pensionistas e funcionários públicos em empréstimos consignados. A nova linha permitirá usar como garantia até 10% do saldo do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e 100% da multa rescisória em caso de demissão.

Para quem está em apuros, e há muitos brasileiros nessa situação, trocar uma dívida cara por outra mais barata é um alívio e tanto, e é esse o mote do governo ao defender a medida. Mas a possibilidade de migrar o empréstimo e ter acesso a essas condições só estará disponível em um mês, ou seja, ao menos até agora, quem tomou o novo crédito consignado privado não o fez por essas razões.

A ministra da Secretaria de Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, deixou claro o espírito da coisa ao publicar em suas redes sociais um vídeo especialmente didático – não sobre a medida em si, mas sobre sua escandalosa finalidade eleitoreira. “Apertou o orçamento? O juro tá alto? Pega o empréstimo do Lula”, disse a ministra, como se o presidente fosse uma financeira a quem devedores desesperados recorrem.

Melhor do que defender o “empréstimo do Lula” seria garantir que o trabalhador tivesse acesso ao FGTS, um dinheiro que é dele, para amortizar ou quitar seus débitos. Mas a preocupação do governo, neste momento, é criar programas chamativos que possam ser utilizados na campanha à reeleição do presidente, e não ampliar as possibilidades de uso dos recursos do FGTS.

O novo empréstimo consignado tem potencial de atingir 47 milhões de trabalhadores e é mais um agrado do governo para tentar conquistar a classe média, como a isenção do Imposto de Renda para quem recebe até R$ 5 mil mensais e a criação de uma faixa estendida no Minha Casa Minha Vida para alcançar quem ganha entre R$ 8 mil e R$ 12 mil.

As medidas, em conjunto, devem aumentar a disponibilidade de recursos na economia, ampliar o consumo e pressionar a inflação. Para o governo, esse é o meio de manter o crescimento econômico aquecido até a disputa eleitoral, objetivo que vai de encontro à estratégia adotada pelo Banco Central para conter o avanço dos preços na economia.

Ideias que reduzam o custo do crédito no País são sempre desejáveis. Mas isso se faz por meio de medidas que ampliem a segurança do sistema, estimulem a criação de novos produtos financeiros, facilitem o ressarcimento em caso de fraudes, acelerem o processo de falências e reduzam a judicialização, como defendeu o secretário de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda, Marcos Barbosa Pinto, em entrevista ao Estadão. A aprovação de tais medidas pelo Congresso tenderia a produzir efeitos duradouros, embora não imediatos. O problema é que colocar essa agenda em prática requer tempo e uma base de apoio sólida, e o governo não tem nenhum dos dois.

Ampliar o acesso a empréstimos no contexto atual é uma medida que, ademais, retroalimenta a inflação e os juros, reduz a potência da política monetária e contribui para manter a Selic elevada por mais tempo. Seria algo defensável se o crédito estivesse em queda, mas não é o caso – pelo contrário, há indícios de que ele esteja crescendo de maneira excessiva há pelo menos dois anos.

Mas Lula prefere menosprezar todos esses riscos de olho somente na reeleição, sem pensar no fato de que pode ser ele mesmo, caso permaneça no poder, quem tenha de lidar com os custos de suas próprias decisões equivocadas.

O sindicato dos magistrados

O Estado de S. Paulo

A título de moralizar a farra dos penduricalhos, CNJ a legitimou, criando um ‘teto’ obsceno. A magistratura seguirá abusando de sua autonomia se o Legislativo não impuser limites

Há poucos dias, numa sessão do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Flávio Dino se queixou dos “saltos ornamentais hermenêuticos” de juízes e outros servidores de carreiras jurídicas para engordar seus contracheques. “Vemos uma criatividade administrativa, sobretudo em temas remuneratórios, que é algo que constrange o Poder Judiciário, porque temos uma moldura constitucional e o Estatuto da Magistratura, na Lei Orgânica da Magistratura, que, a cada dia, em ziguezagues hermenêuticos, é infelizmente driblada”. A ministra Cármen Lúcia fez coro, afirmando que aqueles que empregam essas manobras afrontam as normas constitucionais e o direito do cidadão. Só faltou subirem num caixote para exigir providências da Corte constitucional.

Como o STF não as toma, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aparentemente vestiu a carapuça e decidiu botar ordem na casa – mas com moderação. Em decisão monocrática, o corregedor nacional de Justiça, Mauro Campbell, determinou que os penduricalhos para magistrados não poderão exceder R$ 46,3 mil mensais, o mesmo valor do teto do funcionalismo público. Ou seja, todos os servidores têm de viver sob esse teto, mas, acima dele, os magistrados podem construir uma espaçosa cobertura. Claro que tudo tem limite, e o limite do CNJ para a violação do teto constitucional é de 100%.

Mas mesmo esse limite é gelatinoso. Primeiro, porque, como os penduricalhos não são tributados, um juiz que receber o montante de R$ 46,3 mil ganhará em termos líquidos muito mais do que o dobro do teto. Depois, porque a decisão vale, a rigor, só para um caso específico de um tribunal de Sergipe, que foi levado ao STF. Para os outros ela não tem “efeitos vinculantes” e deve apenas “inspirar a adoção de providências idênticas”. Como é improvável que outros tribunais e corporações – sempre ávidos na hora de invocar o princípio da “isonomia” para equiparar privilégios dados a colegas – se sintam, digamos, “inspirados”, os juízes e procuradores de outros Estados, que estão sempre a se queixar da penúria e sacrifícios impostos à profissão, podem ficar tranquilos: o limite para os salários dos magistrados não é nem a lei nem a moral, mas apenas a “inspiração”.

O caso expõe a urgência de uma legislação que regule a concessão de benefícios e ponha fim à farra dos supersalários, mas que também reforme o CNJ. Esse conselho e seu irmão gêmeo, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), foram concebidos no início da redemocratização e criados em 2004, na esteira de escândalos de corrupção envolvendo a Justiça. Como outros conselhos similares ao redor do mundo, eles têm uma dupla função: de um lado, garantir a autonomia de sua corporação ante os demais Poderes, e, de outro, fiscalizar a sua atuação, discipliná-la e prestar contas à sociedade. O problema é que a primeira função foi hipertrofiada na mesma proporção em que a segunda foi atrofiada.

Em que pesem alguns avanços institucionais referentes à racionalização dos serviços, esses conselhos padecem de um vício de origem: dos 15 conselheiros do CNJ e 14 do CNMP, apenas quatro são externos às carreiras. Ao longo dos anos estabeleceu-se uma simbiose entre os controladores (os conselhos) e os controlados (magistratura e Ministério Público), transformando os conselhos em um veículo de expansão do poder de juízes e procuradores e arena de reivindicação de vantagens corporativas, não se furtando para tanto a todo tipo de extrapolação das funções conferidas a eles pela Constituição. O aparelhamento por associações de classe é sistemático. Desde a sua criação, o CNMP, por exemplo, foi presidido por membros da Associação Nacional de Procuradores da República.

Os conselhos, que deveriam ser um meio para a sociedade exercer um controle sobre o Judiciário e o Ministério Público, se transformaram em sindicatos especializados em institucionalizar privilégios para juízes e procuradores. Eles continuarão criando benefícios e arbitrando sua legalidade, a menos que os representantes do povo no Congresso cumpram sua função e estabeleçam uma regulação decente sobre as verbas do funcionalismo e uma reforma saneadora na governança dos conselhos.

Armas fora de controle

O Estado de S. Paulo

É absurdo que o governo não tenha ideia de onde foram parar milhares de armas de uso restrito

O controle das armas de fogo no País – sobretudo o armamento de uso restrito – deixou de ser prioridade para o governo Lula da Silva.

No início do mandato, o presidente agiu corretamente ao determinar que o Ministério da Justiça recadastrasse todas as armas de fogo adquiridas por civis, em particular por Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs). Foi a forma encontrada para acabar com a expansão desenfreada desse arsenal, estimulada irresponsavelmente por Jair Bolsonaro. Passados quase dois anos, porém, permanece obscuro o destino de uma parte importante dessas armas, que obviamente deveria ter sido mais bem controlado pelas forças públicas a serviço da legalidade.

Com base na Lei de Acesso à Informação, o Estadão apurou que, das 50.432 armas de uso restrito cadastradas no Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma), do Exército, só 44.264 foram apresentadas à Polícia Federal (PF) por seus donos durante a campanha de recadastramento. Ou seja, nem o governo Lula da Silva nem a PF nem o Exército fazem a menor ideia de onde foram parar 6.128 fuzis, metralhadoras, pistolas e outras armas de grosso calibre classificadas como de uso restrito.

Ora, não é preciso sobrecarregar os neurônios para chegar à conclusão de que, no mínimo, bem-intencionados não estão os proprietários que não atenderam ao chamado do governo para recadastrar suas armas de fogo. No pior cenário, uma parte dessas armas de uso restrito foi parar nas mãos do crime organizado. Este jornal já publicou uma série de reportagens revelando como as facções criminosas mais poderosas do País passaram a usar os CACs como “laranjas” para ter acesso a fuzis e pistolas a preços muito mais baixos do que os cobrados no mercado ilegal. Sem falar na nefasta consequência lógica que o aumento da circulação de armas de fogo ao abrigo do controle estatal acarreta para a sociedade: a propensão ao aumento da ocorrência de crimes de sangue.

Hoje, há um vácuo administrativo que só opera a favor dos criminosos. O Exército é responsável pela emissão e controle dos certificados CAC e pelo registro das armas de fogo no Sigma. Mas esses serviços nunca foram realizados a contento pela Força Terrestre, seja por falta de mão de obra, por leniência de alguns militares e, eventualmente, até por cooptação pelo crime organizado. Tanto é assim que o governo Lula da Silva decidiu transferir para a PF a emissão dos certificados CAC e o controle da posse e porte de armas de fogo no País. Mas isso só ocorrerá a partir de 1.º de julho deste ano. Até lá, ninguém sabe o que fazer para encontrar as armas não recadastradas, que, muito provavelmente, estão em poder de criminosos.

Para o pacífico cidadão que todo dia sai de casa para ganhar a vida atormentado pelo medo de ser mais uma vítima da violência urbana, pouco importa quem realiza esse controle; importa que ele seja bem-feito pelo Estado. Lula da Silva, porém, parece ter esquecido o assunto.

Bullying, uma armadilha real

Correio Braziliense

Atribuir apenas às escolas a responsabilidade pelo combate ao bullying é um caso perdido — ou o crime perfeito

"Pai, você não está avançando porque não está entendendo", alerta o adolescente Adam ao policial Luke Bascombe, que tenta encaixar "as últimas peças" do assassinato de Katie Leonard cometido por Jamie Miller, estudantes da mesma escola secundária. A cena da série britânica Adolescência — atual fenômeno dos streamings — resume a crise do enfrentamento ao bullying na vida real. Adultos parecem patinar no combate a uma prática cada vez mais comum entre os jovens e que pode ter efeitos devastadores.

O debate sobre o bullying é antigo — da década de 1990, quando a internet dava os primeiros passos, inclusive —, mas a prática violenta virou crime no Brasil apenas em janeiro do ano passado, pela Lei 14.811. Há, portanto, um novo cenário para análise do fenômeno. O aumento do número de casos pode estar ligado à nova conjuntura — no Distrito Federal, por exemplo, o crescimento de denúncias nas escolas foi de 243% em um ano, de 2023 a 2024, conforme mostrou o Correio nesta segunda-feira —, mas é certo de que se trata de uma realidade que faz parte da vivência escolar há bastante tempo e tem sido impulsionada pela sensação de impunidade que povoa as redes sociais.

O crime da ficção britânica se dá nas proximidades de uma escola evidentemente caótica, com alunos que se atacam sem pudor na frente de professores sobrecarregados. Mas a peça-chave do esfaqueamento que tirou a vida de Katie está na internet: emojis, aparentemente inofensivos para pais e professores, que codificam uma rede de misoginia e de outros extremismos compartilhados pelos estudantes em seus dispositivos eletrônicos. E essa é uma armadilha real.

Enquanto pais e educadores se ajustam à nova regra de proibição do uso de celular nas escolas — sob o principal argumento de preservar a aprendizagem, o que, cabe ressaltar, é imprescindível —, há uma trama virtual de violência que tem corroído as relações da juventude. Não são poucos os "coaches mirins", influencers  e criminosos que, em redes sociais e aplicativos, atacam o feminismo e as universidades, disseminam a pornografia e o nazifascismo, entre outros retrocessos. Trata-se da violência acessada em qualquer lugar e a qualquer tempo por usuários de todas as idades.

 Atribuir apenas às escolas a responsabilidade pelo combate ao bullying é, dessa forma, um caso perdido — ou o crime perfeito. Ao Correio, Caroline Resende, chefe do Grupo de Apoio à Segurança Escolar (Gase) do Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT), adverte que as medidas de enfrentamento precisam ser integradas e não intuitivas. Devem incluir a capacitação de todos os profissionais de educação para a implementação de uma cultura de paz nas instituições de ensino, com a participação de pais e responsáveis.

Compreender a complexidade do bullying passa ainda por um exercício de autoanálise. "Como pretendemos ter escolas sem bullying se não temos a mínima condição de nos transformar (esculpir a nós mesmos) e de nos colocar no lugar do outro? Se não podemos mostrar para os nossos filhos o que é ser empático?", provoca o psicólogo Francisco Rengifo Herrera. Em tempos de ódio e intolerância explícitos, ensinar respeito e fraternidade se tornou um desafio. Um quebra-cabeça que, definitivamente, extrapola as atribuições pedagógicas e policiais. 

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