Exame de denúncia contra golpistas deve ser didático
O Globo
Para evitar dúvidas sobre a gravidade dos
crimes e sobre as penas aplicadas, ministros precisam se fazer entender
A partir de hoje, o Supremo Tribunal Federal (STF) começa a examinar as denúncias da Procuradoria-Geral da República (PGR) relativas à tentativa de golpe de Estado em 2022. O primeiro grupo de denunciados é inédito. Nele estão o ex-presidente da República Jair Bolsonaro, quatro ex-ministros, três ex-integrantes do Alto-Comando do Exército e um ex-comandante da Marinha. Além de Bolsonaro, fazem parte do que a PGR chama de “núcleo crucial” Walter Braga Netto, ex-ministro da Defesa e candidato a vice na chapa de Bolsonaro; Augusto Heleno, ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional; Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa; Anderson Torres, ex-ministro da Justiça; Almir Garnier, ex-comandante da Marinha; Alexandre Ramagem, deputado federal pelo Rio e ex-diretor da Abin; e Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. Até o fim de abril, outros 26 denunciados serão objeto de análise na Primeira Turma do STF. Aqueles cujas denúncias forem aceitas se tornarão réus e serão julgados.
Como o STF foi alvo de violência no passado,
fez bem a Corte ao preparar um esquema especial de segurança. O policiamento
será ampliado, o controle de acesso será mais rigoroso, e a proteção contra
ataques digitais foi reforçada. A decisão de transmitir a sessão pela TV
Justiça é bem-vinda, por dar mais transparência a um evento crítico para o
futuro da democracia brasileira.
A denúncia contra Bolsonaro e seu círculo
mais próximo é sólida. Está baseada em extenso trabalho de investigação da
Polícia Federal. Ciente disso, Bolsonaro e seus apoiadores começaram há muito
uma campanha por anistia. Ela precisa ser repudiada de forma enérgica.
Comprovada a validade da denúncia — e os elementos apresentados no inquérito
são mais que suficientes para isso —, os eventuais condenados deverão ser
punidos de forma não apenas exemplar, mas também didática.
Esse é um ponto em que o STF tem deixado a
desejar. No julgamento dos casos do 8 de Janeiro já encerrados ou em andamento,
várias sentenças têm despertado dúvidas sensatas. O último exemplo é o processo
envolvendo a cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos, responsável por pichar a
estátua A Justiça, em frente à sede do Supremo. Débora, presa desde 2023,
integrou os acampamentos em frente a quartéis e acompanhou os golpistas à Praça
dos Três Poderes. Em sua defesa, ela afirmou não saber da importância da estátua
e contou que foi chamada a concluir a pichação apenas por ter melhor
caligrafia. Os dois votos já proferidos a condenam a 14 anos de prisão. É uma
pena desproporcional à gravidade do delito. Basta lembrar que os dois golpistas
que tentaram explodir um caminhão de combustível perto do aeroporto de Brasília
em 2022 receberam punições mais brandas (um pegou cinco anos, o outro nove anos
e oito meses).
É fundamental punir aqueles que tramaram um
golpe contra a democracia, mas não pode restar dúvida sobre a proporção das
punições. Por isso os ministros devem redobrar o cuidado. As decisões precisam
ser técnicas e, ao mesmo tempo, de fácil entendimento. Partidários da narrativa
descabida segundo a qual não houve tentativa de golpe serão sempre críticos.
Mas mesmo essa minoria radical merece explicações claras sobre a gravidade dos
crimes. Não bastará transmitir as decisões pela TV Justiça para os ministros do
STF se fazerem entender.
Fim da presunção de boa-fé na venda de ouro é
avanço contra garimpo ilegal
Por unanimidade, STF invalidou trecho da lei
de 2013 que abria mercado a produto ilícito
É um alento para o meio ambiente a
decisão unânime do Supremo Tribunal Federal (STF)
que põe fim à presunção de boa-fé no comércio de ouro. Ao concluir o julgamento
de uma ação movida por PSB, PV e Rede, a Corte fechou uma porta importante para
a ilegalidade. Pela legislação em vigor desde 2013, distribuidoras de títulos e
valores mobiliários estavam autorizadas a comprar o metal com base na boa-fé
dos vendedores, sem necessidade de comprovar origem. O plenário considerou
inconstitucional esse trecho da lei. Em 2023, o STF já barrara o dispositivo,
mas agora a decisão se tornou definitiva.
Em seu voto, o ministro Gilmar Mendes,
relator do caso, ressaltou que a presunção de boa-fé sabotava o controle de
“uma atividade inerentemente poluidora”, uma vez que “não apenas facilita, como
serve de incentivo à comercialização de ouro originário de garimpo ilegal”. A
simplificação da compra, disse ele, fortaleceu atividades como desmatamento,
contaminação de rios, violência nas regiões de garimpo, “chegando a atingir os
povos indígenas das áreas afetadas”. Sob uma legislação torta, na prática imperava
a ilegalidade. Em 2021, 52,8 toneladas de ouro vendidas no Brasil tinham
indícios de irregularidades, quantidade que correspondia a 54% da produção
nacional, segundo levantamento do Instituto Escolhas. Quase dois terços do ouro
(61%) eram retirados da Amazônia.
Nos últimos anos, têm sido tomadas medidas
para dificultar a farra no comércio do ouro. Em 2023, a Receita Federal passou
a exigir nota fiscal eletrônica para operações com ouro no Brasil. O documento
deve ser emitido na primeira compra do ouro bruto, na importação, na exportação
e em transações de instituições financeiras.
Embora essas medidas sejam bem-vindas, ainda
há muito a fazer para disciplinar o comércio ilegal. O garimpo clandestino
resiste na Amazônia, apesar das promessas em contrário feitas com estardalhaço
no início do atual governo. Não se pode dizer que Polícia Federal e órgãos
ambientais não realizem operações para reprimi-lo. Mas é um fazer e refazer
constante, porque os garimpeiros sempre voltam. As autoridades têm se mostrado
incapazes de oferecer alternativas sustentáveis de trabalho aos milhares de garimpeiros
que ocupam a região.
Exigir comprovação da origem do ouro não bastará. Acertadamente, Gilmar determinou que o governo tome providências, como medidas legislativas, regulatórias ou administrativas, para tornar inviável a compra de ouro extraído de terras indígenas ou áreas de proteção ambiental. É preciso acelerá-las. Ao mesmo tempo, há que combater o garimpo ilegal que se espalha pela Amazônia, desmatando a floresta, contaminando os rios com mercúrio e levando doenças às populações. Se os garimpeiros permanecem onde estão, é porque existe mercado seguro para o ouro ilegal.
Emendas precisam ser diligentemente
acompanhadas
Valor Econômico
Fatia do Legislativo no orçamento é francamente desproporcional na comparação com outros países e, além de outros defeitos, foge do controle dos demais Poderes
As emendas parlamentares bateram um recorde
no Orçamento de 2025. Foram R$ 50,4 bilhões de emendas individuais, de bancadas
e de comissões, mais um acerto com os líderes do Congresso para o pagamento
extra de R$ 11,2 bilhões. O total, R$ 61,6 bilhões, é um pouco menos de um
quarto de todas as despesas discricionárias no ano, orçadas em R$ 225,8
bilhões. A fatia do Legislativo é francamente desproporcional na comparação com
outros países e, além de outros defeitos, foge do controle dos demais Poderes.
O Tribunal de Contas da União (TCU) revelou que nas emendas que analisou a
partir de 2020 - ano em que elas explodiram e em que nasceu o orçamento secreto
-, só 25% são completamente rastreáveis, isto é, podem ser acompanhadas desde
sua inserção na peça orçamentária até a execução.
Coube ao ministro do Supremo Tribunal Federal
Flávio Dino exigir que os princípios constitucionais fossem cumpridos e que se
dessem transparência e publicidade totais a esse tipo de gastos com recursos
públicos. A disputa levou meses, arrastou consigo a votação do orçamento, só
feita na semana passada, e terminou em um acordo com Executivo e Legislativo
para que todo o processo fosse feito à luz do dia. Ainda assim, nos R$ 11,5
bilhões das emendas de comissão, há a suspeita de que o acordo foi descumprido
e de que não será possível distinguir o autor delas. Mas o acordo deu origem a
um sistema de registro que aperfeiçoará, e muito, o acompanhamento da origem e
das destinações das verbas. É com base nele, e aperfeiçoamentos posteriores,
que o TCU pretende no futuro publicar todos os documentos referentes a emendas
para ampla consulta pública.
O aumento dos recursos das emendas em poder
do Legislativo retira verbas do Executivo para realização dos projetos de
interesse nacional ou regional, em favor de projetos de interesses de deputados
e senadores com fins eleitorais, e abre enorme brecha para malversação de
fundos. Nem mesmo a finalidade das emendas está hoje assegurada. Estudo da
Comissão de Orçamento e Fiscalização Financeira, a pedido da deputada Adriana
Ventura, revelou que só 20% dos R$ 14,3 bilhões das emendas de bancadas
estaduais foram destinadas a obras propriamente ditas. A maior parte do
dinheiro será usada em custeio dos serviços ou compra de máquinas e
equipamentos (Folha de S. Paulo, 16 de março). Longe de se acoplarem a projetos
estruturantes, elas são divididas entre os parlamentares e pulverizadas a seu
bel prazer.
A destinação e o uso dos recursos, como
revelou o TCU, não são inteiramente conhecidos, o que era claramente o caso da
aberração das emendas Pix, em que transferências diretas para municípios e
Estados davam ao receptor da verba o direito de usar os recursos à sua escolha.
À medida que a impositividade da execução
avançou, a transparência das emendas deu marcha a ré. Antes, conta o consultor
de Orçamento aposentado da Câmara Hélio Tollini, as emendas eram “totalmente
específicas”. “Ao longo dos anos, os parlamentares perceberam que não
precisavam ser tão específicos, já que isso dava margem para, em um segundo
momento, redirecionar o destino dos recursos” (Valor, ontem). Mais de R$ 150 bilhões em emendas
foram transferidas desde 2020 pelos parlamentares, mas, segundo Marina Atoji,
diretora da Transparência Brasil, “não dá nem para saber se elas de fato
contribuem para garantir a entrega de serviços públicos ou reduzir
desigualdades”.
Para políticos que querem se perpetuar na
carreira, seria praxe e do máximo interesse a publicidade de que apadrinhou
verbas e garantiu obras nos seus círculos eleitorais. Curiosamente, mas não
estranho, algumas das principais batalhas pela transparência das emendas se dão
em torno da ocultação dos nomes dos benfeitores. Uma explicação para isso está
nas mais de 40 investigações conduzidas pela Polícia Federal para apurar
desvios, mau uso, licitações fraudulentas, apropriação indébita e uma série de
crimes cometidos em todas as fases do processo.
Algumas das mais recentes investigações dão
ideia do desperdício de recursos. Agindo como se fossem donos do dinheiro -
ideia que a repartição per capita das emendas individuais possibilita -, surgiu
a figura do corretor de emendas, o próprio parlamentar, e de atravessadores.
Três deputados do PL são réus no Supremo por exigir do prefeito de São José
Ribamar (MA) que, dos R$ 6 milhões que seriam enviados por emendas, R$ 1,6
milhão lhe fosse devolvido pelo benefício conseguido.
Casos diferentes, mas não menos graves,
ocorrerem com frequência na Codevasf, feudo dos partidos do Centrão, onde
investigações concluíram que houve irregularidades em R$ 3,5 bilhões para
projetos, em que uma empresa ganhou uma dezena de licitações viciadas, e houve
indicação por parlamentares das empresas que fariam o serviço e o preço que
cobrariam. Enriquecimento ilícito e desvio de recursos são apenas consequências
da falta ou impossibilidade de fiscalização. As emendas giram uma enormidade de
recursos e urge que sejam diligentemente acompanhadas. É o mínimo que já
deveria ter sido feito.
Supremo deve autorizar ação penal contra
Bolsonaro
Folha de S. Paulo
Iniciado o processo, ampla defesa será
crucial para desfecho irreprochável de julgamento inédito na história
brasileira
A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal
(STF) começa
a decidir nesta terça (25) se o ex-presidente Jair
Bolsonaro (PL)
deve ser julgado por tramar contra a democracia.
A opção de tratar o tema no plenário, que
seria a mais indicada para o país, foi pelo visto abortada em nome de evitar
protelações, que poderiam advir de pedidos de vista e recursos e empurrar o
resultado para o ano eleitoral de 2026 ou até além dele.
Não há precedente na história brasileira de
processo com essas características. A lei que fixou os dispositivos de defesa
do Estado democrático de Direito é recente. Foi aprovada no Congresso Nacional
e sancionada há três anos e meio.
Ironicamente, quatro das cinco autoridades
que assinaram a sanção em setembro de 2021 figuram entre os denunciados pelo
procurador-geral da República: Bolsonaro, presidente, Braga Netto, ministro da
Defesa, Anderson
Torres, da Justiça, e Augusto Heleno, da Segurança Institucional.
Paulo Sérgio Nogueira, que assumiu a Defesa
quando Braga Netto saiu para candidatar-se a vice, Almir Garnier, que chefiou a
Marinha, Alexandre
Ramagem, da Abin, e Mauro Cid, o
ajudante de ordens cuja delação vertebra a acusação, completam o
rol de denunciados pela Procuradoria-Geral da República (PGR).
O elevado status dos ex-agentes públicos
que Paulo
Gonet quer tornar réus completa a novidade histórica. Nunca o
Judiciário brasileiro apreciou um caso em que pessoas investidas de tanto poder
são apontadas como golpistas.
Esses fatos atestam a fortaleza do regime
democrático no Brasil. Legisladores não se intimidaram e aprovaram uma lei de
defesa da democracia em pleno mandato de um presidente de pendor autoritário.
Ele se viu obrigado a chancelar o diploma, mas não entendeu o que estava
implícito.
Continuou a radicalizar em atos e discursos.
Negou-se a reconhecer a derrota eleitoral e se reuniu com militares acalentando
uma virada de mesa. Incentivou a baderna diante dos quartéis e os bloqueios de
rodovias.
Já seus comandantes do Exército, Freire
Gomes, e da Aeronáutica, Baptista Júnior, perceberam que o Brasil das
quarteladas ficou para trás e se recusaram a embarcar na aventura. Por isso não
se sentarão no banco dos réus.
O juízo acerca da denúncia conferirá se os
requisitos básicos para a ação penal estão presentes. Uma descrição coerente
dos fatos e tipicidades criminais e da conexão com os acusados basta para que
seja autorizada a instalação do processo propriamente dito.
Como o libelo de Gonet atende às exigências,
espera-se dos cinco ministros que o apreciarão a chancela para iniciar o
processo. A partir daí, as defesas deverão ter ampla latitude para exercer o
contraditório e explorar incoerências e lacunas da acusação.
Pelo entrechoque civilizado entre quem acusa
e quem se defende produz-se justiça na democracia. Os adversários de Bolsonaro
não teriam essa possibilidade se os delírios cesaristas do ex-mandatário
pudessem prevalecer
O impacto bilionário do álcool no Brasil
Folha de S. Paulo
Pesquisa revela perda de R$ 18,8 bi pelo
consumo da bebida, que pode ser reduzido com impostos e restrição à publicidade
O consumo de substâncias psicoativas, por
óbvio, contém riscos que impactam a saúde e a
economia.
Quando tais drogas são
legalizadas, contudo, o Estado pode instituir políticas para conter os
problemas —o mercado negro cria um ponto cego para os gestores e funciona
pela violência.
No caso do álcool, um levantamento da Fiocruz divulgado
em novembro estimou que, em 2019, o consumo desse tipo de bebida gerou
perdas no valor de R$ 18,8 bilhões no Brasil.
Do total, R$ 1,1 bilhão refere-se a custos
diretos com hospitalizações e procedimentos ambulatoriais no SUS, que incluem
doenças do fígado, do pâncreas e cardiovasculares, além de diversos tipos
de câncer,
transtornos mentais, acidentes de trânsito e violências interpessoais.
Os outros R$ 17,7 bilhões são custos
indiretos relacionados a queda de produtividade por mortalidade prematura,
licenças e aposentadorias precoces e absenteísmo por internação hospitalar ou
licença médica.
O resultado pode ser conservador, dado que a
pesquisa se baseia em dados públicos no nível federal. Assim, estão excluídos
os gastos da rede privada e os complementos de estados e municípios.
Segundo o Vigitel do Ministério
da Saúde, que realiza sondagens por telefone, entre 2006 e 2023, a taxa de
consumo abusivo de álcool (quatro ou mais doses para mulheres e cinco ou mais
doses para homens) no estrato acima dos 18 anos subiu de 15,7% para 20,8%.
A alta foi puxada pelas mulheres, cuja taxa
saltou de 7,8% para 15,2%, enquanto a dos homens aumentou apenas 2,3 pontos
percentuais, chegando a 27,3%.
Em 2021, a pasta da Saúde estabeleceu a meta
de reduzir a ingestão abusiva em 10% até 2030 —depois alterada para 20%. Se
seguir protocolos e se respaldar em evidências para criar políticas e alocar
recursos, o Brasil é capaz de melhorar seus indicadores. Foi
assim com o tabaco, com queda de 15,7% para 9,3% na taxa de fumantes entre
2006 e 2023.
Além de fiscalizar e punir motoristas que
dirigem sob efeito do álcool, expandir campanhas de conscientização e
fortalecer o sistema de saúde, a OMS recomenda
duas ações do tipo "best buys" (as que são mais econômicas para os
governos e geram um retorno significativo rápido).
São elas a restrição severa de publicidade e patrocínio de bebidas alcoólicas e a cobrança de altos impostos para esses produtos —o Brasil já conta com tributação especial, mantida na reforma tributária por meio do Imposto Seletivo (IS), que incidirá sobre itens nocivos à saúde.
O ‘empréstimo do Lula’
O Estado de S. Paulo
Melhor do que associar a figura do presidente
à de uma financeira a quem os desesperados recorrem seria facilitar o acesso do
trabalhador a um dinheiro que já é dele para aliviar dívidas
Em apenas três dias, 40,1 milhões de
trabalhadores com carteira assinada realizaram simulações sobre a nova
modalidade de crédito lançada pelo governo. Desse total, 4,5 milhões
efetivamente solicitaram o empréstimo consignado e 11 mil contratos já foram formalizados,
segundo o Ministério do Trabalho. Os números evidenciam o interesse dos
brasileiros e o filão que o governo deverá explorar na campanha eleitoral.
O público-alvo da medida são trabalhadores do
setor privado com carteira assinada, empregados domésticos, trabalhadores
rurais, assalariados e microempreendedores individuais (MEIs), que pagam, de
fato, taxas bem mais altas do que as cobradas de aposentados, pensionistas e
funcionários públicos em empréstimos consignados. A nova linha permitirá usar
como garantia até 10% do saldo do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS)
e 100% da multa rescisória em caso de demissão.
Para quem está em apuros, e há muitos
brasileiros nessa situação, trocar uma dívida cara por outra mais barata é um
alívio e tanto, e é esse o mote do governo ao defender a medida. Mas a
possibilidade de migrar o empréstimo e ter acesso a essas condições só estará
disponível em um mês, ou seja, ao menos até agora, quem tomou o novo crédito
consignado privado não o fez por essas razões.
A ministra da Secretaria de Relações
Institucionais, Gleisi Hoffmann, deixou claro o espírito da coisa ao publicar
em suas redes sociais um vídeo especialmente didático – não sobre a medida em
si, mas sobre sua escandalosa finalidade eleitoreira. “Apertou o orçamento? O
juro tá alto? Pega o empréstimo do Lula”, disse a ministra, como se o
presidente fosse uma financeira a quem devedores desesperados recorrem.
Melhor do que defender o “empréstimo do Lula”
seria garantir que o trabalhador tivesse acesso ao FGTS, um dinheiro que é
dele, para amortizar ou quitar seus débitos. Mas a preocupação do governo,
neste momento, é criar programas chamativos que possam ser utilizados na
campanha à reeleição do presidente, e não ampliar as possibilidades de uso dos
recursos do FGTS.
O novo empréstimo consignado tem potencial de
atingir 47 milhões de trabalhadores e é mais um agrado do governo para tentar
conquistar a classe média, como a isenção do Imposto de Renda para quem recebe
até R$ 5 mil mensais e a criação de uma faixa estendida no Minha Casa Minha
Vida para alcançar quem ganha entre R$ 8 mil e R$ 12 mil.
As medidas, em conjunto, devem aumentar a
disponibilidade de recursos na economia, ampliar o consumo e pressionar a
inflação. Para o governo, esse é o meio de manter o crescimento econômico
aquecido até a disputa eleitoral, objetivo que vai de encontro à estratégia
adotada pelo Banco Central para conter o avanço dos preços na economia.
Ideias que reduzam o custo do crédito no País
são sempre desejáveis. Mas isso se faz por meio de medidas que ampliem a
segurança do sistema, estimulem a criação de novos produtos financeiros,
facilitem o ressarcimento em caso de fraudes, acelerem o processo de falências
e reduzam a judicialização, como defendeu o secretário de Reformas Econômicas
do Ministério da Fazenda, Marcos Barbosa Pinto, em entrevista ao Estadão.
A aprovação de tais medidas pelo Congresso tenderia a produzir efeitos
duradouros, embora não imediatos. O problema é que colocar essa agenda em
prática requer tempo e uma base de apoio sólida, e o governo não tem nenhum dos
dois.
Ampliar o acesso a empréstimos no contexto
atual é uma medida que, ademais, retroalimenta a inflação e os juros, reduz a
potência da política monetária e contribui para manter a Selic elevada por mais
tempo. Seria algo defensável se o crédito estivesse em queda, mas não é o caso
– pelo contrário, há indícios de que ele esteja crescendo de maneira excessiva
há pelo menos dois anos.
Mas Lula prefere menosprezar todos esses
riscos de olho somente na reeleição, sem pensar no fato de que pode ser ele
mesmo, caso permaneça no poder, quem tenha de lidar com os custos de suas
próprias decisões equivocadas.
O sindicato dos magistrados
O Estado de S. Paulo
A título de moralizar a farra dos
penduricalhos, CNJ a legitimou, criando um ‘teto’ obsceno. A magistratura
seguirá abusando de sua autonomia se o Legislativo não impuser limites
Há poucos dias, numa sessão do Supremo
Tribunal Federal (STF), o ministro Flávio Dino se queixou dos “saltos
ornamentais hermenêuticos” de juízes e outros servidores de carreiras jurídicas
para engordar seus contracheques. “Vemos uma criatividade administrativa,
sobretudo em temas remuneratórios, que é algo que constrange o Poder
Judiciário, porque temos uma moldura constitucional e o Estatuto da
Magistratura, na Lei Orgânica da Magistratura, que, a cada dia, em ziguezagues
hermenêuticos, é infelizmente driblada”. A ministra Cármen Lúcia fez coro,
afirmando que aqueles que empregam essas manobras afrontam as normas
constitucionais e o direito do cidadão. Só faltou subirem num caixote para
exigir providências da Corte constitucional.
Como o STF não as toma, o Conselho Nacional
de Justiça (CNJ) aparentemente vestiu a carapuça e decidiu botar ordem na casa
– mas com moderação. Em decisão monocrática, o corregedor nacional de Justiça,
Mauro Campbell, determinou que os penduricalhos para magistrados não poderão
exceder R$ 46,3 mil mensais, o mesmo valor do teto do funcionalismo público. Ou
seja, todos os servidores têm de viver sob esse teto, mas, acima dele, os
magistrados podem construir uma espaçosa cobertura. Claro que tudo tem limite, e
o limite do CNJ para a violação do teto constitucional é de 100%.
Mas mesmo esse limite é gelatinoso. Primeiro,
porque, como os penduricalhos não são tributados, um juiz que receber o
montante de R$ 46,3 mil ganhará em termos líquidos muito mais do que o dobro do
teto. Depois, porque a decisão vale, a rigor, só para um caso específico de um
tribunal de Sergipe, que foi levado ao STF. Para os outros ela não tem “efeitos
vinculantes” e deve apenas “inspirar a adoção de providências idênticas”. Como
é improvável que outros tribunais e corporações – sempre ávidos na hora de invocar
o princípio da “isonomia” para equiparar privilégios dados a colegas – se
sintam, digamos, “inspirados”, os juízes e procuradores de outros Estados, que
estão sempre a se queixar da penúria e sacrifícios impostos à profissão, podem
ficar tranquilos: o limite para os salários dos magistrados não é nem a lei nem
a moral, mas apenas a “inspiração”.
O caso expõe a urgência de uma legislação que
regule a concessão de benefícios e ponha fim à farra dos supersalários, mas que
também reforme o CNJ. Esse conselho e seu irmão gêmeo, o Conselho Nacional do
Ministério Público (CNMP), foram concebidos no início da redemocratização e
criados em 2004, na esteira de escândalos de corrupção envolvendo a Justiça.
Como outros conselhos similares ao redor do mundo, eles têm uma dupla função:
de um lado, garantir a autonomia de sua corporação ante os demais Poderes, e,
de outro, fiscalizar a sua atuação, discipliná-la e prestar contas à sociedade.
O problema é que a primeira função foi hipertrofiada na mesma proporção em que
a segunda foi atrofiada.
Em que pesem alguns avanços institucionais
referentes à racionalização dos serviços, esses conselhos padecem de um vício
de origem: dos 15 conselheiros do CNJ e 14 do CNMP, apenas quatro são externos
às carreiras. Ao longo dos anos estabeleceu-se uma simbiose entre os
controladores (os conselhos) e os controlados (magistratura e Ministério
Público), transformando os conselhos em um veículo de expansão do poder de
juízes e procuradores e arena de reivindicação de vantagens corporativas, não
se furtando para tanto a todo tipo de extrapolação das funções conferidas a
eles pela Constituição. O aparelhamento por associações de classe é
sistemático. Desde a sua criação, o CNMP, por exemplo, foi presidido por
membros da Associação Nacional de Procuradores da República.
Os conselhos, que deveriam ser um meio para a
sociedade exercer um controle sobre o Judiciário e o Ministério Público, se
transformaram em sindicatos especializados em institucionalizar privilégios
para juízes e procuradores. Eles continuarão criando benefícios e arbitrando
sua legalidade, a menos que os representantes do povo no Congresso cumpram sua
função e estabeleçam uma regulação decente sobre as verbas do funcionalismo e
uma reforma saneadora na governança dos conselhos.
Armas fora de controle
O Estado de S. Paulo
É absurdo que o governo não tenha ideia de
onde foram parar milhares de armas de uso restrito
O controle das armas de fogo no País –
sobretudo o armamento de uso restrito – deixou de ser prioridade para o governo
Lula da Silva.
No início do mandato, o presidente agiu
corretamente ao determinar que o Ministério da Justiça recadastrasse todas as
armas de fogo adquiridas por civis, em particular por Caçadores, Atiradores e
Colecionadores (CACs). Foi a forma encontrada para acabar com a expansão
desenfreada desse arsenal, estimulada irresponsavelmente por Jair Bolsonaro.
Passados quase dois anos, porém, permanece obscuro o destino de uma parte
importante dessas armas, que obviamente deveria ter sido mais bem controlado
pelas forças públicas a serviço da legalidade.
Com base na Lei de Acesso à Informação,
o Estadão apurou que, das 50.432 armas de uso restrito cadastradas no
Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma), do Exército, só 44.264 foram
apresentadas à Polícia Federal (PF) por seus donos durante a campanha de
recadastramento. Ou seja, nem o governo Lula da Silva nem a PF nem o Exército
fazem a menor ideia de onde foram parar 6.128 fuzis, metralhadoras, pistolas e
outras armas de grosso calibre classificadas como de uso restrito.
Ora, não é preciso sobrecarregar os neurônios
para chegar à conclusão de que, no mínimo, bem-intencionados não estão os
proprietários que não atenderam ao chamado do governo para recadastrar suas
armas de fogo. No pior cenário, uma parte dessas armas de uso restrito foi
parar nas mãos do crime organizado. Este jornal já publicou uma série de
reportagens revelando como as facções criminosas mais poderosas do País
passaram a usar os CACs como “laranjas” para ter acesso a fuzis e pistolas a
preços muito mais baixos do que os cobrados no mercado ilegal. Sem falar na
nefasta consequência lógica que o aumento da circulação de armas de fogo ao
abrigo do controle estatal acarreta para a sociedade: a propensão ao aumento da
ocorrência de crimes de sangue.
Hoje, há um vácuo administrativo que só opera
a favor dos criminosos. O Exército é responsável pela emissão e controle dos
certificados CAC e pelo registro das armas de fogo no Sigma. Mas esses serviços
nunca foram realizados a contento pela Força Terrestre, seja por falta de mão
de obra, por leniência de alguns militares e, eventualmente, até por cooptação
pelo crime organizado. Tanto é assim que o governo Lula da Silva decidiu
transferir para a PF a emissão dos certificados CAC e o controle da posse e porte
de armas de fogo no País. Mas isso só ocorrerá a partir de 1.º de julho deste
ano. Até lá, ninguém sabe o que fazer para encontrar as armas não
recadastradas, que, muito provavelmente, estão em poder de criminosos.
Para o pacífico cidadão que todo dia sai de casa para ganhar a vida atormentado pelo medo de ser mais uma vítima da violência urbana, pouco importa quem realiza esse controle; importa que ele seja bem-feito pelo Estado. Lula da Silva, porém, parece ter esquecido o assunto.
Bullying, uma armadilha real
Correio Braziliense
Atribuir apenas às escolas a responsabilidade
pelo combate ao bullying é um caso perdido — ou o crime perfeito
"Pai, você não está avançando porque não
está entendendo", alerta o adolescente Adam ao policial Luke Bascombe, que
tenta encaixar "as últimas peças" do assassinato de Katie Leonard
cometido por Jamie Miller, estudantes da mesma escola secundária. A cena da
série britânica Adolescência — atual fenômeno dos streamings — resume a crise
do enfrentamento ao bullying na vida real. Adultos parecem patinar no combate a
uma prática cada vez mais comum entre os jovens e que pode ter efeitos devastadores.
O debate sobre o bullying é antigo — da
década de 1990, quando a internet dava os primeiros passos, inclusive —, mas a
prática violenta virou crime no Brasil apenas em janeiro do ano passado, pela
Lei 14.811. Há, portanto, um novo cenário para análise do fenômeno. O aumento
do número de casos pode estar ligado à nova conjuntura — no Distrito Federal,
por exemplo, o crescimento de denúncias nas escolas foi de 243% em um ano, de
2023 a 2024, conforme mostrou o Correio nesta segunda-feira —, mas é certo de
que se trata de uma realidade que faz parte da vivência escolar há bastante
tempo e tem sido impulsionada pela sensação de impunidade que povoa as redes
sociais.
O crime da ficção britânica se dá nas
proximidades de uma escola evidentemente caótica, com alunos que se atacam sem
pudor na frente de professores sobrecarregados. Mas a peça-chave do
esfaqueamento que tirou a vida de Katie está na internet: emojis, aparentemente
inofensivos para pais e professores, que codificam uma rede de misoginia e de
outros extremismos compartilhados pelos estudantes em seus dispositivos
eletrônicos. E essa é uma armadilha real.
Enquanto pais e educadores se ajustam à nova
regra de proibição do uso de celular nas escolas — sob o principal argumento de
preservar a aprendizagem, o que, cabe ressaltar, é imprescindível —, há uma
trama virtual de violência que tem corroído as relações da juventude. Não são
poucos os "coaches mirins", influencers e criminosos que, em
redes sociais e aplicativos, atacam o feminismo e as universidades, disseminam
a pornografia e o nazifascismo, entre outros retrocessos. Trata-se da violência
acessada em qualquer lugar e a qualquer tempo por usuários de todas as idades.
Atribuir apenas às escolas a
responsabilidade pelo combate ao bullying é, dessa forma, um caso perdido — ou
o crime perfeito. Ao Correio, Caroline Resende, chefe do Grupo de Apoio à
Segurança Escolar (Gase) do Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT),
adverte que as medidas de enfrentamento precisam ser integradas e não
intuitivas. Devem incluir a capacitação de todos os profissionais de educação
para a implementação de uma cultura de paz nas instituições de ensino, com a
participação de pais e responsáveis.
Compreender a complexidade do bullying passa ainda por um exercício de autoanálise. "Como pretendemos ter escolas sem bullying se não temos a mínima condição de nos transformar (esculpir a nós mesmos) e de nos colocar no lugar do outro? Se não podemos mostrar para os nossos filhos o que é ser empático?", provoca o psicólogo Francisco Rengifo Herrera. Em tempos de ódio e intolerância explícitos, ensinar respeito e fraternidade se tornou um desafio. Um quebra-cabeça que, definitivamente, extrapola as atribuições pedagógicas e policiais.
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