Correio Braziliense
O negaciosismo serve para esconder que
anistias tiveram como efeito, ao longo da história, deixar livre o caminho para
que golpistas voltassem a atentar contra a democracia
Há poucos dias, este jornal publicou artigo
em que um general do Exército defendia a anistia como um instrumento político e
jurídico fundamental na história brasileira. A partir de exemplos históricos
que demonstrariam como as sucessivas anistias teriam aberto caminho para uma
solução pacífica dos conflitos, o general defendeu, então, a anistia aos
acusados pelo 8 de Janeiro.
O texto não surpreende. Afinal, anistias
foram instrumentos historicamente usados por oficiais militares para garantir a
própria impunidade. Também produziram o esquecimento coletivo e a própria
naturalização de seus crimes. Aliás, o mesmo general, ministro da Saúde de
Bolsonaro, até hoje não foi responsabilizado pela tragédia que vivemos naqueles
anos, a despeito de ter sido indiciado pela CPI da Covid do Senado Federal.
O mantra da caserna de um Duque de Caxias "pacificador" ignora uma folha corrida de massacres, da Guerra do Paraguai às rebeliões regenciais. O espírito de "reconciliação" de Caxias talvez só tenha existido frente aos escravocratas que lideraram a Farroupilha, destinando aos Lanceiros Negros o Massacre de Porongos. Ali, sua ação contrastou com a resposta dada pelo militar às revoltas populares como a Cabanagem e a Balaiada, que resultou em dezenas de milhares de mortos.
A ideia de que a repressão à
"Intentona" Comunista de 1935 foi a forma de "evitar um maior
esgarçamento do tecido social" chega a ser inacreditável. Em 1937, uma
grande fake news produzida por um tal capitão Mourão (não o amigo do general,
mas Olímpio Mourão Filho) fomentou o anticomunismo do Exército para legitimar o
golpe e a ditadura do Estado Novo, com brutal repressão. A anistia veio quase
uma década depois, não sem antes deixar um enorme saldo de torturados e mortos.
O exemplo também ignora que o Partido Comunista ficou proscrito por quase todo
o século 20. Será que o general aceitaria igual destino para seu atual partido,
em nome da "reconciliação nacional"?
Por fim, a ideia de que a anistia de 1979 foi
ampla, geral e irrestrita é uma falsificação histórica das mais grosseiras.
Essa foi a palavra de ordem construída pela sociedade civil a partir de meados
dos anos 1970, por meio da qual os Comitês Brasileiros pela Anistia demandavam
não apenas a volta dos exilados e a liberdade dos presos políticos, mas também
memória, verdade, reparação e, principalmente, justiça em relação aos mortos e
desaparecidos. Figueiredo, o último dos generais ditadores, veio à público
repetidas vezes afirmar que os militares jamais aceitariam uma anistia ampla,
geral e irrestrita. Mas, ao notar que a luta crescia na sociedade, a ditadura
mudou de estratégia. Ao invés de recusar a demanda, ela impôs os próprios
termos para a anistia, invertendo completamente os sentidos daquela bandeira
popular.
A anistia ampla, geral e irrestrita, que
deveria ser sinônimo de memória e justiça, passou a ser a anistia do
"esquecimento" e da "reconciliação", que eram, na verdade,
sinônimos de impunidade. De fato, esse é o sentido fundamental da lei imposta
pelo regime em 1979, por meio de um Congresso ainda sob seu estrito controle:
garantir que os torturadores e assassinos de Rubens Paiva e de milhares de
outros brasileiros saíssem impunes pelos crimes que cometeram, ao mesmo tempo
em que mantinha excluídos dos benefícios diversos militantes ainda presos.
O negacionismo que já conhecíamos em relação
às vacinas transforma-se em negacionismo histórico. E reforça o diagnóstico de
que nas escolas militares se ensina mitologia ao invés de historiografia. Em
verdade, esse negacionismo serve para esconder que anistias tiveram como
efeito, ao longo da história, deixar livre o caminho para que golpistas
voltassem a atentar contra a democracia. Caso militares golpistas tivessem sido
responsabilizados na primeira metade do século 20, possivelmente não teríamos
vivido uma ditadura de mais de 20 anos.
E caso os responsáveis por essa ditadura não
tivessem sido anistiados em 1979, o deputado federal cujo ídolo é um torturador
dificilmente teria chegado à Presidência da República. Assim, poderíamos ter
evitado muitos episódios que, ao longo dos últimos anos, demonstraram que a
farda tem sido vista, pelos próprios militares, como uma garantia de não
responsabilização.
Estamos, portanto, diante de uma encruzilhada
histórica. Ou rompemos com o ciclo de impunidade que marca nossa história ou
estaremos permanentemente ameaçados pelo risco do retorno ao autoritarismo, com
a ascensão de torturadores e negacionistas ao poder.
*Lucas Pedretti — historiador,
doutor em sociologia e coordenador da Coalizão por Memória, Verdade, Justiça,
Reparação e Democracia; Rodrigo Lentz — Advogado, doutor em
ciência política, pesquisador do Instituto Tricontinental e Conselheiro da
Comissão Nacional de Anistia Política (MDHC).
Nenhum comentário:
Postar um comentário