Para Isabella Weber
No segunda-feira, dia 22 de agosto de 2022, o
candidato do PL à Presidência da República abriu a série de entrevistas – que
ainda teria Ciro Gomes (PDT), na terça (23); Lula, na quinta (25); e Simone
Tebet, na sexta (26), todas ao vivo, na bancada do Jornal Nacional (JN),
conduzidas por William Bonner e Renata Vasconcellos. Na última pergunta houve
uma querela histórica envolvendo o Grupo Globo e o golpe de Estado de 31 de
março de 1964. Basicamente o então candidato do PL citou Roberto Marinho do dia
7 de outubro de 1984 que havia dito: “Participamos da revolução democrática de
1964, identificados com os anseios nacionais de preservação das instituições
democráticas, ameaçadas pela radicalização ideológica, distúrbios sociais,
greves e corrupção generalizada”.
Na sequência o JN fez o seguinte
esclarecimento: O Jornal Nacional volta a se referir à entrevista com o
candidato Jair Bolsonaro. Ele fez menção a 1964. O Grupo Globo emitiu a
seguinte nota a respeito: “O candidato Jair Bolsonaro disse há pouco que Roberto
Marinho, identificado com os anseios nacionais de preservação das instituições
democráticas, apoiou editorialmente o que chamava, então, de revolução de 1964.
É fato. Não somente O Globo, mas todos os grandes jornais da época. O candidato
Bolsonaro esqueceu-se, porém, de dizer que, em 30 de agosto de 2013, O Globo
publicou editorial em que reconheceu que o apoio editorial ao golpe de 1964 foi
um erro. Nele, o jornal diz não ter dúvidas de que o apoio pareceu aos que
dirigiam o jornal e viveram aquele momento a atitude certa, visando ao bem do
país. E finaliza com essas palavras: ‘À luz da história, contudo, não há por
que não reconhecer, hoje, explicitamente, que o apoio foi um erro, assim como
equivocadas foram outras decisões editoriais do período que decorreram desse
desacerto original. A democracia é um valor absoluto. E, quando em risco, ela
só pode ser salva por si mesma.'”
Esse breve episódio é ilustrativo da
importância da publicação pela Globo Livros nos 100 anos de Globo de Fascismo
e populismo: Manifesto por um novo antifascismo, de Antonio Scurati.
Scurati parte de um diagnostico que o candidato do PL na entrevista incentivou que é a perda do sentido da História. A causa de uma das grandes deficiências espirituais da nossa época. Este evento dá origem à sensação de desorientação vivida hoje. O vencedor do Prêmio Strega, após esse diagnostico preliminar sobre o conceito de História, analisa o fenômeno histórico do fascismo e a relação entre este e a democracia.
Scurati descreve a História como um épico,
uma saga coletiva que atravessa o tempo, transmitindo ideias, significados e
razões para lutar de uma geração para outra. Nessa perspectiva, as sociedades
perderam o sentido da História quando deixaram de se perceber atravessadas “por
um tempo grandioso, que vem de longe e vai longe”. (Scurati, 2025, p. 13).
Essa abertura da obra leva o leitor a
redescobrir a capacidade de conectar presente e passado por meio de uma
dimensão que une as ações dos contemporâneos com as dos antepassados e
descendentes. Quando essa conexão entre gerações é quebrada, abre-se um eterno
presente em que tudo é relativo e em que tudo pode se repetir, mesmo que de
formas e modos diferentes. É justamente dessa ferida, argumenta Scurati, que
nasce o rio subterrâneo do populismo contemporâneo, que encontra na biologia do
fascismo como disse José Carlos Mariátegui (1894-1930), o princípio do seu
renascimento.
O livro nasceu das sugestões do discurso
proferido por Scurati durante os Encontros Internacionais de Genebra em 2022. A
obra é apresentada na forma de um fino folheto com o qual Scurati analisa de
forma simples e direta as razões profundas que ligam o populismo atual ao
fascismo.
A partir do pós-guerra, recorda Scurati, a
nova identidade institucional é forjada na identificação entre antifascismo e
democracia no culto à resistência. Nas últimas décadas, contudo, o
enfraquecimento desses princípios está levando a um perigoso enfraquecimento
dos pilares culturais do nosso sistema democrático. Segundo Scurati, a solução
para esse problema está no desejo de desenvolver uma consciência coletiva
madura, com a qual se possa recuperar a capacidade de contar a História
reconhecendo-se como parte dela.
Scurati, de fato, ressalta que ao ter narrado
o fascismo por meio do antifascismo clássico isso impediu a necessária assunção
de responsabilidade essencial para lidar com o passado. Lembrar que os
italianos, eram fascistas, alerta Scurati, que o fascismo foi uma invenção do
povo italiano, é o ponto de partida essencial para alcançar o debate de
consciência que o povo alemão enfrenta e que se resume na suposta superação do
passado. Como exemplarmente romanceada na Trilogia M, Scurati explica que o
fascismo nasceu de uma era tumultuada. Após a Primeira Guerra Mundial, o
colapso de três impérios e das dinastias que governaram o Velho Continente
durante séculos, inaugura-se uma fase em que o crepúsculo e o amanhecer
coexistem. Scurati estabelece assim o ponto de origem do fascismo: a violência
como o alfa e o ômega do fascismo, forjada no fenômeno antropológico da guerra
– isto é, o vínculo que unia os combatentes numa irmandade de armas dentro das
trincheiras.
Com esta reflexão, Scurati quer esclarecer um
aspecto: se a violência é a origem do fascismo, esta não pode reaparecer com as
mesmas formas que a caracterizaram no passado. Ao mesmo tempo, Scurati sugere
uma continuidade entre o fascismo histórico e populismo contemporâneo.
Mussolini foi de fato o criador daquela forma de comunicação e liderança que
chamamos de populismo reacionário. Scurati argumenta ainda que o fascismo se
apresentou às massas sem uma identidade claramente definida e por isso representa
um fenômeno que pode ser exportado de diversas formas, deixando claro que a
linhagem do populista Mussolini não precisa ser necessariamente direta e
consciente.
“Eu sou o povo.” (Scurati, 2025, p. 60).
E não o Estado como se atribui um dito do século XVII. Esta é a verdadeira
inovação que, segundo Scurati, foi introduzida pelo fascismo no cenário
político do período pós-Primeira Guerra. Daí vem a primeira regra do populismo
de Mussolini: a redução violenta de uma pluralidade muito numerosa à
singularidade no corpo do líder carismático. Se eu sou o povo, quem não está
comigo é contra o povo – esclarece Scurati – é assim que posições políticas
diferentes das do líder são apresentadas como contrárias aos interesses
nacionais e à comunidade nacional.
O trabalho de Scurati tem o mérito de ser
capaz de traçar as diferenças e as linhas de contato entre o populismo
contemporâneo e o fascismo. No contexto desta análise, o vencedor do Prêmio
Strega esclarece um aspecto importante: o desafio à democracia lançado pelos
populismos de hoje não ameaça preliminarmente sua sobrevivência, mas sim sua
qualidade. Um perigo que vem de uma vasta gama de partidos hoje definidos sob o
rótulo da soberania, populistas e/ou neofascistas. Scurati reitera, no entanto,
que existe uma linhagem entre esses fenômenos. É uma descida tortuosa. Uma
linhagem que nem sempre faz uma referência explícita e clara a Mussolini como
pai, mas que vê no populismo de Mussolini seu arquétipo. Os fascistas e/ou
neofascistas que lutam para deturpar nossa ideia de democracia não descendem do
fascista Mussolini, mas do populista Mussolini.
Assim, os populistas de ontem e de hoje
diferem no uso da violência física, mas estão unidos no fato de representarem
uma ameaça à qualidade e à plenitude da vida democrática (inclusa a liberal e
/ou a conservadora), uma ameaça resumida no fulcro autoritário do “líder”.
A obra de Scurati representa uma ferramenta
útil por meio da qual o leitor pode identificar os fenômenos reais que ameaçam
a democracia, um passo fundamental para combatê-los com sucesso.
O legado de Benito Mussolini ainda existe
hoje em todas aquelas formações que reduzem a política a estados de espírito,
apelando sempre aos medos do povo e nunca às suas esperanças. Depois de semear
o medo, eles operam uma comutação do medo para o ódio. A política “… populista
convidava a passar de um sentimento passivo, retraído e depressivo como o medo
para um sentimento ativo, expansivo e eufórico como o ódio.” (Scurati, 2025, p.
82). Através desta reconstrução, Scurati oferece uma radiografia detalhada do
mal do século XXI.
Assim como aconteceu há cem anos, a violência
e o medo estão novamente desempenhando um papel político em nossas sociedades
e, assim como aconteceu há cem anos, alguém está observando as massas para
satisfazer seu medo e direcioná-lo para seus inimigos. Assim como aconteceu no
século passado, também hoje representantes de instituições e políticos realizam
uma obra de descrédito e de lenta erosão dos fundamentos da política.
A obra de Antonio Scurati nos ajuda a
entender quem são os verdadeiros usurpadores da democracia e a iniciar esse
processo de conscientização coletiva para relegar o fascismo às páginas mais
obscuras da História.
Os anos vinte do século XXI são iluminados
pela mesma luz do crepúsculo e do amanhecer coexistindo que pairava há um
século e, nesta fase, a herança do antifascismo precisa se reinventar longe das
ideologias, mas bem próxima da cultura da democracia.
(Resenha de: Scurati, Antonio. Fascismo
e populismo: Manifesto por um novo antifascismo. Tradução de Francesca
Cricelli. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2025. 104 págs.)
*Ricardo Marinho é Presidente do Conselho
Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE,
da Teia de Saberes e do Instituto Devecchi.
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