terça-feira, 25 de março de 2025

O antifascismo hoje - Ricardo Marinho

Para Isabella Weber

No segunda-feira, dia 22 de agosto de 2022, o candidato do PL à Presidência da República abriu a série de entrevistas – que ainda teria Ciro Gomes (PDT), na terça (23); Lula, na quinta (25); e Simone Tebet, na sexta (26), todas ao vivo, na bancada do Jornal Nacional (JN), conduzidas por William Bonner e Renata Vasconcellos. Na última pergunta houve uma querela histórica envolvendo o Grupo Globo e o golpe de Estado de 31 de março de 1964. Basicamente o então candidato do PL citou Roberto Marinho do dia 7 de outubro de 1984 que havia dito: “Participamos da revolução democrática de 1964, identificados com os anseios nacionais de preservação das instituições democráticas, ameaçadas pela radicalização ideológica, distúrbios sociais, greves e corrupção generalizada”.

Na sequência o JN fez o seguinte esclarecimento: O Jornal Nacional volta a se referir à entrevista com o candidato Jair Bolsonaro. Ele fez menção a 1964. O Grupo Globo emitiu a seguinte nota a respeito: “O candidato Jair Bolsonaro disse há pouco que Roberto Marinho, identificado com os anseios nacionais de preservação das instituições democráticas, apoiou editorialmente o que chamava, então, de revolução de 1964. É fato. Não somente O Globo, mas todos os grandes jornais da época. O candidato Bolsonaro esqueceu-se, porém, de dizer que, em 30 de agosto de 2013, O Globo publicou editorial em que reconheceu que o apoio editorial ao golpe de 1964 foi um erro. Nele, o jornal diz não ter dúvidas de que o apoio pareceu aos que dirigiam o jornal e viveram aquele momento a atitude certa, visando ao bem do país. E finaliza com essas palavras: ‘À luz da história, contudo, não há por que não reconhecer, hoje, explicitamente, que o apoio foi um erro, assim como equivocadas foram outras decisões editoriais do período que decorreram desse desacerto original. A democracia é um valor absoluto. E, quando em risco, ela só pode ser salva por si mesma.'”

Esse breve episódio é ilustrativo da importância da publicação pela Globo Livros nos 100 anos de Globo de Fascismo e populismo: Manifesto por um novo antifascismo, de Antonio Scurati.

Scurati parte de um diagnostico que o candidato do PL na entrevista incentivou que é a perda do sentido da História. A causa de uma das grandes deficiências espirituais da nossa época. Este evento dá origem à sensação de desorientação vivida hoje. O vencedor do Prêmio Strega, após esse diagnostico preliminar sobre o conceito de História, analisa o fenômeno histórico do fascismo e a relação entre este e a democracia.

Scurati descreve a História como um épico, uma saga coletiva que atravessa o tempo, transmitindo ideias, significados e razões para lutar de uma geração para outra. Nessa perspectiva, as sociedades perderam o sentido da História quando deixaram de se perceber atravessadas “por um tempo grandioso, que vem de longe e vai longe”. (Scurati, 2025, p. 13).

Essa abertura da obra leva o leitor a redescobrir a capacidade de conectar presente e passado por meio de uma dimensão que une as ações dos contemporâneos com as dos antepassados e descendentes. Quando essa conexão entre gerações é quebrada, abre-se um eterno presente em que tudo é relativo e em que tudo pode se repetir, mesmo que de formas e modos diferentes. É justamente dessa ferida, argumenta Scurati, que nasce o rio subterrâneo do populismo contemporâneo, que encontra na biologia do fascismo como disse José Carlos Mariátegui (1894-1930), o princípio do seu renascimento.

O livro nasceu das sugestões do discurso proferido por Scurati durante os Encontros Internacionais de Genebra em 2022. A obra é apresentada na forma de um fino folheto com o qual Scurati analisa de forma simples e direta as razões profundas que ligam o populismo atual ao fascismo.

A partir do pós-guerra, recorda Scurati, a nova identidade institucional é forjada na identificação entre antifascismo e democracia no culto à resistência. Nas últimas décadas, contudo, o enfraquecimento desses princípios está levando a um perigoso enfraquecimento dos pilares culturais do nosso sistema democrático. Segundo Scurati, a solução para esse problema está no desejo de desenvolver uma consciência coletiva madura, com a qual se possa recuperar a capacidade de contar a História reconhecendo-se como parte dela.

Scurati, de fato, ressalta que ao ter narrado o fascismo por meio do antifascismo clássico isso impediu a necessária assunção de responsabilidade essencial para lidar com o passado. Lembrar que os italianos, eram fascistas, alerta Scurati, que o fascismo foi uma invenção do povo italiano, é o ponto de partida essencial para alcançar o debate de consciência que o povo alemão enfrenta e que se resume na suposta superação do passado. Como exemplarmente romanceada na Trilogia M, Scurati explica que o fascismo nasceu de uma era tumultuada. Após a Primeira Guerra Mundial, o colapso de três impérios e das dinastias que governaram o Velho Continente durante séculos, inaugura-se uma fase em que o crepúsculo e o amanhecer coexistem. Scurati estabelece assim o ponto de origem do fascismo: a violência como o alfa e o ômega do fascismo, forjada no fenômeno antropológico da guerra – isto é, o vínculo que unia os combatentes numa irmandade de armas dentro das trincheiras.

Com esta reflexão, Scurati quer esclarecer um aspecto: se a violência é a origem do fascismo, esta não pode reaparecer com as mesmas formas que a caracterizaram no passado. Ao mesmo tempo, Scurati sugere uma continuidade entre o fascismo histórico e populismo contemporâneo. Mussolini foi de fato o criador daquela forma de comunicação e liderança que chamamos de populismo reacionário. Scurati argumenta ainda que o fascismo se apresentou às massas sem uma identidade claramente definida e por isso representa um fenômeno que pode ser exportado de diversas formas, deixando claro que a linhagem do populista Mussolini não precisa ser necessariamente direta e consciente.

“Eu sou o povo.” (Scurati, 2025, p. 60). E não o Estado como se atribui um dito do século XVII. Esta é a verdadeira inovação que, segundo Scurati, foi introduzida pelo fascismo no cenário político do período pós-Primeira Guerra. Daí vem a primeira regra do populismo de Mussolini: a redução violenta de uma pluralidade muito numerosa à singularidade no corpo do líder carismático. Se eu sou o povo, quem não está comigo é contra o povo – esclarece Scurati – é assim que posições políticas diferentes das do líder são apresentadas como contrárias aos interesses nacionais e à comunidade nacional.

O trabalho de Scurati tem o mérito de ser capaz de traçar as diferenças e as linhas de contato entre o populismo contemporâneo e o fascismo. No contexto desta análise, o vencedor do Prêmio Strega esclarece um aspecto importante: o desafio à democracia lançado pelos populismos de hoje não ameaça preliminarmente sua sobrevivência, mas sim sua qualidade. Um perigo que vem de uma vasta gama de partidos hoje definidos sob o rótulo da soberania, populistas e/ou neofascistas. Scurati reitera, no entanto, que existe uma linhagem entre esses fenômenos. É uma descida tortuosa. Uma linhagem que nem sempre faz uma referência explícita e clara a Mussolini como pai, mas que vê no populismo de Mussolini seu arquétipo. Os fascistas e/ou neofascistas que lutam para deturpar nossa ideia de democracia não descendem do fascista Mussolini, mas do populista Mussolini.

Assim, os populistas de ontem e de hoje diferem no uso da violência física, mas estão unidos no fato de representarem uma ameaça à qualidade e à plenitude da vida democrática (inclusa a liberal e /ou a conservadora), uma ameaça resumida no fulcro autoritário do “líder”.

A obra de Scurati representa uma ferramenta útil por meio da qual o leitor pode identificar os fenômenos reais que ameaçam a democracia, um passo fundamental para combatê-los com sucesso.

O legado de Benito Mussolini ainda existe hoje em todas aquelas formações que reduzem a política a estados de espírito, apelando sempre aos medos do povo e nunca às suas esperanças. Depois de semear o medo, eles operam uma comutação do medo para o ódio. A política “… populista convidava a passar de um sentimento passivo, retraído e depressivo como o medo para um sentimento ativo, expansivo e eufórico como o ódio.” (Scurati, 2025, p. 82). Através desta reconstrução, Scurati oferece uma radiografia detalhada do mal do século XXI.

Assim como aconteceu há cem anos, a violência e o medo estão novamente desempenhando um papel político em nossas sociedades e, assim como aconteceu há cem anos, alguém está observando as massas para satisfazer seu medo e direcioná-lo para seus inimigos. Assim como aconteceu no século passado, também hoje representantes de instituições e políticos realizam uma obra de descrédito e de lenta erosão dos fundamentos da política.

A obra de Antonio Scurati nos ajuda a entender quem são os verdadeiros usurpadores da democracia e a iniciar esse processo de conscientização coletiva para relegar o fascismo às páginas mais obscuras da História.

Os anos vinte do século XXI são iluminados pela mesma luz do crepúsculo e do amanhecer coexistindo que pairava há um século e, nesta fase, a herança do antifascismo precisa se reinventar longe das ideologias, mas bem próxima da cultura da democracia.

(Resenha de: Scurati, Antonio. Fascismo e populismo: Manifesto por um novo antifascismo. Tradução de Francesca Cricelli. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2025. 104 págs.)

 

*Ricardo Marinho é Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE, da Teia de Saberes e do Instituto Devecchi.

 

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