“Esse ambiente de antagonismos irreconciliáveis gera um tipo de ativismo convicto de suas próprias certezas, que não admite dúvidas, contrapontos ou ambiguidades”, escreve o cientista politico
A intolerância política é, hoje, um dos sintomas mais alarmantes da crise democrática que atravessa a sociedade brasileira. Desde a intensificação dos conflitos políticos no país, a partir da segunda década do século XXI, o debate público passou a ser dominado por uma lógica de polarização emocional, alimentada por discursos extremados, deslegitimadores e incapazes de reconhecer a legitimidade do outro. Nesse cenário, as redes sociais se tornaram ambientes propícios à radicalização, substituindo o diálogo por slogans, e a escuta por reações impulsivas. A internet, nesse processo, não apenas espelha as fissuras políticas e sociais, mas também age como amplificadora de afetos negativos que “calcificam” as relações sociais e corroem a possibilidade da convivência democrática.
Essa calcificação das
relações sociais se manifesta na consolidação de dois campos antagônicos, que
se veem como únicos porta-vozes legítimos de toda a população. Cada lado
constrói para si uma narrativa autojustificadora, onde todas as virtudes
residem em seu campo e todos os defeitos, no campo oposto. Essa visão binária
dificulta o reconhecimento da pluralidade de perspectivas que caracteriza uma
sociedade complexa e diversa como a brasileira. O que se observa, em
consequência, é a substituição da política como espaço de mediação e negociação
por uma arena de confronto existencial, em que os adversários deixam de ser
interlocutores legítimos e passam a ser inimigos a serem eliminados
simbolicamente — e, por vezes, fisicamente.
Esse ambiente de
antagonismos irreconciliáveis gera um tipo de ativismo convicto de suas
próprias certezas, que não admite dúvidas, contrapontos ou ambiguidades. A
política se converte em um campo moralizante, onde cada grupo se arroga o
monopólio da verdade, da justiça e da virtude. Nesse modelo, emoções políticas
complexas como o cuidado, a compaixão ou a escuta se tornam quase impossíveis
de serem expressas, pois são vistas como sinais de fraqueza ou traição à causa.
A intolerância cresce como consequência natural dessa dinâmica, afetando não
apenas o debate público, mas também a saúde mental da população, que se vê
submetida a uma constante atmosfera de tensão, medo e ressentimento.
As lideranças políticas,
longe de conter essa escalada, muitas vezes a incentivam, pois sabem que o
engajamento emocional — mesmo que negativo — é um instrumento poderoso de
mobilização. O medo do outro, a raiva diante da diferença e a crença de que o
adversário representa uma ameaça existencial alimentam campanhas políticas e
estratégias de poder. Não se trata apenas de disputa por votos, mas de
construção de identidades políticas fechadas, que se fundamentam na exclusão do
diferente e na reafirmação constante de uma suposta superioridade moral. O
resultado disso é a transformação dos manuais de comunicação política em
verdadeiros “manuais de combate existencial”, onde a linguagem serve menos para
argumentar e mais para atacar, desmoralizar e destruir.
Nesse contexto, torna-se
urgente enfrentar com coragem e responsabilidade o processo de polarização que
endurece mentes e sentimentos, e que estabelece “verdades” sem reflexão crítica
ou estudo aprofundado. A política, para cumprir seu papel civilizatório, deve
ser um espaço de aprendizado mútuo e não de doutrinação. É preciso reconhecer
que há outras visões de mundo possíveis, outras experiências legítimas de
existência, e que o desacordo faz parte da vida democrática. Isso implica
abandonar a arrogância intelectual e afetiva, que acredita possuir todas as
respostas e que recusa qualquer possibilidade de escuta ou revisão de suas
próprias certezas.
A intolerância política na
internet é a expressão mais visível desse processo, pois ali a agressividade
encontra terreno fértil para se manifestar sem freios. As redes sociais,
organizadas por algoritmos que favorecem o engajamento emocional e a viralização
de conteúdos polarizadores, criam bolhas informacionais onde se reforçam
preconceitos, se produzem desinformações e se alimenta o ódio. O anonimato e a
despersonalização das interações online contribuem para a intensificação das
violências simbólicas, que frequentemente transbordam para o mundo offline.
Casos de agressões físicas, ameaças, cancelamentos e até homicídios motivados
por divergências políticas vêm se tornando mais comuns, e não podem ser
naturalizados.
Esse ambiente de hostilidade
constante corrói as bases da democracia, pois inviabiliza a formação de
consensos mínimos e destrói as condições para a deliberação pública. A
política, que deveria ser espaço de construção coletiva, passa a ser percebida
como guerra permanente, onde só pode haver vencedores e vencidos. A ideia de
bem comum é substituída por estratégias de sobrevivência discursiva e
territorial. A consequência disso é o enfraquecimento das instituições, o
descrédito nos processos eleitorais e o aumento da violência política. A
democracia, quando submetida a essa lógica, deixa de ser um regime de
convivência com a diferença e se aproxima perigosamente da tirania das
maiorias.
O Brasil vive hoje essa
encruzilhada. Ou se reconstrói um ethos político fundado na tolerância, na
escuta ativa e no respeito à pluralidade, ou estaremos condenados a uma
escalada contínua de conflitos, ressentimentos e rupturas. Isso exige, antes de
tudo, uma revalorização da paz cotidiana. A convivência democrática não se
constrói apenas nas urnas ou nos tribunais, mas no dia-a-dia das interações
sociais, familiares, comunitárias e digitais. Precisamos reaprender a conviver
com a divergência, sem que ela se transforme em motivo de ódio ou desprezo.
Precisamos incorporar a ideia de que o outro, mesmo quando pensa diferente, é
parte integrante do mesmo corpo social e merece consideração.
As emoções políticas
precisam ser reconectadas com práticas de cuidado, empatia e responsabilidade.
Isso significa construir uma pedagogia da escuta e da convivência, que ensine a
lidar com a diferença como algo constitutivo da vida pública e não como ameaça.
Também é necessário investir em educação midiática e literacia digital, para
que os cidadãos sejam capazes de discernir entre discurso legítimo e
manipulação emocional, entre crítica política e incitação ao ódio. Os meios de
comunicação e as plataformas digitais têm responsabilidade nesse processo,
devendo promover ambientes mais seguros, plurais e respeitosos.
Abandonar a arrogância é,
portanto, um gesto de maturidade democrática. É reconhecer que nenhuma posição
é absoluta, que todos os lados podem aprender com os outros, e que a construção
de um país mais justo e democrático passa pela valorização do diálogo e da
escuta. A superação da polarização calcificadora não será um processo simples,
mas é um caminho necessário. Precisamos substituir os “manuais de combate
existencial” por manuais de convivência democrática, onde a política seja
compreendida como espaço de encontros possíveis, de divergências produtivas e
de construção coletiva do futuro.
Se quisermos preservar a
democracia como forma de vida, precisamos urgentemente recuperar a capacidade
de conviver com a diferença. Precisamos de paz, tolerância e escuta no
dia-a-dia.
Precisamos abrir espaço para
novos sentimentos e emoções políticas que reflitam a diversidade e a
complexidade do povo brasileiro. E, acima de tudo, precisamos reaprender que a
política não é a arte de destruir o outro, mas a arte de viver juntos.
* Sociólogo, cientista
social e professor da UFRJ
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