terça-feira, 25 de março de 2025

“A intolerância política na internet e a urgência de superação da polarização calcificadora ” - Paulo Baía*

“Esse ambiente de antagonismos irreconciliáveis gera um tipo de ativismo convicto de suas próprias certezas, que não admite dúvidas, contrapontos ou ambiguidades”, escreve o cientista politico

A intolerância política é, hoje, um dos sintomas mais alarmantes da crise democrática que atravessa a sociedade brasileira. Desde a intensificação dos conflitos políticos no país, a partir da segunda década do século XXI, o debate público passou a ser dominado por uma lógica de polarização emocional, alimentada por discursos extremados, deslegitimadores e incapazes de reconhecer a legitimidade do outro. Nesse cenário, as redes sociais se tornaram ambientes propícios à radicalização, substituindo o diálogo por slogans, e a escuta por reações impulsivas. A internet, nesse processo, não apenas espelha as fissuras políticas e sociais, mas também age como amplificadora de afetos negativos que “calcificam” as relações sociais e corroem a possibilidade da convivência democrática.

Essa calcificação das relações sociais se manifesta na consolidação de dois campos antagônicos, que se veem como únicos porta-vozes legítimos de toda a população. Cada lado constrói para si uma narrativa autojustificadora, onde todas as virtudes residem em seu campo e todos os defeitos, no campo oposto. Essa visão binária dificulta o reconhecimento da pluralidade de perspectivas que caracteriza uma sociedade complexa e diversa como a brasileira. O que se observa, em consequência, é a substituição da política como espaço de mediação e negociação por uma arena de confronto existencial, em que os adversários deixam de ser interlocutores legítimos e passam a ser inimigos a serem eliminados simbolicamente — e, por vezes, fisicamente.

Esse ambiente de antagonismos irreconciliáveis gera um tipo de ativismo convicto de suas próprias certezas, que não admite dúvidas, contrapontos ou ambiguidades. A política se converte em um campo moralizante, onde cada grupo se arroga o monopólio da verdade, da justiça e da virtude. Nesse modelo, emoções políticas complexas como o cuidado, a compaixão ou a escuta se tornam quase impossíveis de serem expressas, pois são vistas como sinais de fraqueza ou traição à causa. A intolerância cresce como consequência natural dessa dinâmica, afetando não apenas o debate público, mas também a saúde mental da população, que se vê submetida a uma constante atmosfera de tensão, medo e ressentimento.

As lideranças políticas, longe de conter essa escalada, muitas vezes a incentivam, pois sabem que o engajamento emocional — mesmo que negativo — é um instrumento poderoso de mobilização. O medo do outro, a raiva diante da diferença e a crença de que o adversário representa uma ameaça existencial alimentam campanhas políticas e estratégias de poder. Não se trata apenas de disputa por votos, mas de construção de identidades políticas fechadas, que se fundamentam na exclusão do diferente e na reafirmação constante de uma suposta superioridade moral. O resultado disso é a transformação dos manuais de comunicação política em verdadeiros “manuais de combate existencial”, onde a linguagem serve menos para argumentar e mais para atacar, desmoralizar e destruir.

Nesse contexto, torna-se urgente enfrentar com coragem e responsabilidade o processo de polarização que endurece mentes e sentimentos, e que estabelece “verdades” sem reflexão crítica ou estudo aprofundado. A política, para cumprir seu papel civilizatório, deve ser um espaço de aprendizado mútuo e não de doutrinação. É preciso reconhecer que há outras visões de mundo possíveis, outras experiências legítimas de existência, e que o desacordo faz parte da vida democrática. Isso implica abandonar a arrogância intelectual e afetiva, que acredita possuir todas as respostas e que recusa qualquer possibilidade de escuta ou revisão de suas próprias certezas.

A intolerância política na internet é a expressão mais visível desse processo, pois ali a agressividade encontra terreno fértil para se manifestar sem freios. As redes sociais, organizadas por algoritmos que favorecem o engajamento emocional e a viralização de conteúdos polarizadores, criam bolhas informacionais onde se reforçam preconceitos, se produzem desinformações e se alimenta o ódio. O anonimato e a despersonalização das interações online contribuem para a intensificação das violências simbólicas, que frequentemente transbordam para o mundo offline. Casos de agressões físicas, ameaças, cancelamentos e até homicídios motivados por divergências políticas vêm se tornando mais comuns, e não podem ser naturalizados.

Esse ambiente de hostilidade constante corrói as bases da democracia, pois inviabiliza a formação de consensos mínimos e destrói as condições para a deliberação pública. A política, que deveria ser espaço de construção coletiva, passa a ser percebida como guerra permanente, onde só pode haver vencedores e vencidos. A ideia de bem comum é substituída por estratégias de sobrevivência discursiva e territorial. A consequência disso é o enfraquecimento das instituições, o descrédito nos processos eleitorais e o aumento da violência política. A democracia, quando submetida a essa lógica, deixa de ser um regime de convivência com a diferença e se aproxima perigosamente da tirania das maiorias.

O Brasil vive hoje essa encruzilhada. Ou se reconstrói um ethos político fundado na tolerância, na escuta ativa e no respeito à pluralidade, ou estaremos condenados a uma escalada contínua de conflitos, ressentimentos e rupturas. Isso exige, antes de tudo, uma revalorização da paz cotidiana. A convivência democrática não se constrói apenas nas urnas ou nos tribunais, mas no dia-a-dia das interações sociais, familiares, comunitárias e digitais. Precisamos reaprender a conviver com a divergência, sem que ela se transforme em motivo de ódio ou desprezo. Precisamos incorporar a ideia de que o outro, mesmo quando pensa diferente, é parte integrante do mesmo corpo social e merece consideração.

As emoções políticas precisam ser reconectadas com práticas de cuidado, empatia e responsabilidade. Isso significa construir uma pedagogia da escuta e da convivência, que ensine a lidar com a diferença como algo constitutivo da vida pública e não como ameaça. Também é necessário investir em educação midiática e literacia digital, para que os cidadãos sejam capazes de discernir entre discurso legítimo e manipulação emocional, entre crítica política e incitação ao ódio. Os meios de comunicação e as plataformas digitais têm responsabilidade nesse processo, devendo promover ambientes mais seguros, plurais e respeitosos.

Abandonar a arrogância é, portanto, um gesto de maturidade democrática. É reconhecer que nenhuma posição é absoluta, que todos os lados podem aprender com os outros, e que a construção de um país mais justo e democrático passa pela valorização do diálogo e da escuta. A superação da polarização calcificadora não será um processo simples, mas é um caminho necessário. Precisamos substituir os “manuais de combate existencial” por manuais de convivência democrática, onde a política seja compreendida como espaço de encontros possíveis, de divergências produtivas e de construção coletiva do futuro.

Se quisermos preservar a democracia como forma de vida, precisamos urgentemente recuperar a capacidade de conviver com a diferença. Precisamos de paz, tolerância e escuta no dia-a-dia.

Precisamos abrir espaço para novos sentimentos e emoções políticas que reflitam a diversidade e a complexidade do povo brasileiro. E, acima de tudo, precisamos reaprender que a política não é a arte de destruir o outro, mas a arte de viver juntos.

* Sociólogo, cientista social e professor da UFRJ

Nenhum comentário: