Valor Econômico
Se Lula for o político hábil que sempre foi,
vetará o aumento. Se for esperto, talvez não arruíne sua relação com o
Legislativo. Estamos em face do efeito bumerangue na política
A elevação do número de deputados federais de
513 para 532 a partir das eleições de 2026, por decisão das duas casas do
Congresso Nacional, surpreendeu muitos brasileiros que consideram que o número
de membros da Câmara já é excessivo. Parece mais um episódio em que os
políticos brasileiros decidem em causa própria.
Os que votaram o projeto exibem um comportamento revelador de consciência pouco política a respeito de si mesmos, geralmente oportunista. Em que fica claro que sabem que o que decidem a respeito de seus próprios interesses, mesmo em face da repulsa pública, é para fazer com que o malfeito pareça legal e não expressão de reprováveis interesses corporativos. E, desse modo, pareça que a “culpa” é da lei e das instituições.
Pesquisa do Datafolha revela que 76% dos
brasileiros são contra a elevação do número de deputados federais e 20% são a
favor. Deputado é eleito para representar a vontade política da nação, que a
expressa através dos eleitores, da soma da vontade manifesta da consciência
política de cada um dos cidadãos. No entanto, não é isso que se vê no caso
presente. Os membros do Congresso sabem que não votaram de acordo com a vontade
do eleitorado, mas de acordo com seus próprios interesses.
Os truques e retorcimentos do modo de votar
dos deputados “adaptam” o amoral ao legal. Amoral porque é decisão que afronta
a consciência popular porque não corresponde às carências políticas da
sociedade. Mas correspondem às conveniências pessoais da maioria dos políticos.
Nem mesmo correspondem à funcionalidade das instituições para viabilizar o
caráter democrático que as instituições devem ter.
O que aconteceu foi o seguinte. O estado do
Pará entrou com uma ação judicial para ajustar o número de seus representantes
na Câmara dos Deputados à proporção que deveria ter em face dos resultados do
Censo Demográfico de 2022. Nove estados estão nessa situação, enquanto outros
estados perderam população.
O STF decidiu que o número de deputados por
estado deveria ser readequado em função da contagem populacional do Censo.
Alguns estados deveriam ter um encolhimento de suas bancadas, como Rio e Bahia,
se fosse mantido o total de 513 deputados na Câmara, uma diminuição no poder de
estados já poderosos.
A Câmara dos Deputados, confirmada pela
aprovação do Senado, decidiu “corrigir” a mudança. Em vez de manter o número
total de deputados federais, 513, decidiu elevar seu número para 531,
aumentando o número deles para os estados que tiveram crescimento da população
sem diminuí-lo para os que tiveram decréscimo.
A decisão terá efeito cascata. As Assembleias
Legislativas devem ser compostas por um número de deputados estaduais que
corresponda a três vezes o tamanho de sua bancada federal. No total do Brasil,
o número de deputados estaduais crescerá de 1.059 para 1.089.
Num momento em que as duas casas do Congresso
Nacional negam ao Poder Executivo os recursos para custear despesas com as
questões sociais, elas próprias aumentam o número daqueles políticos, no
Legislativo, que aumenta os gastos de dinheiro público consigo mesmos. Fazem de
conta que cumpriram a lei.
Um deputado federal recebe R$ 46.366,19, mais
auxílio-moradia de R$ 4.253,00, mais verba de gabinete de R$ 133.170,54 por
mês. Ele custa ao país o que recebem 121 trabalhadores de salário-mínimo.
Considerando o desempenho político minúsculo e inadequado de um bom número
deles, em comparação com esses trabalhadores, é compreensível que a maioria do
povo seja contrária ao aumento de seu número.
O presidente da República, Luiz Inácio Lula
da Silva, poderá vetar o projeto aprovado. Se não vetar, consumará o declínio
de suas possibilidades para continuar na política e decretará a ruína do PT. Se
for o político hábil que sempre foi, vetará o projeto. Em princípio, arruinará
sua relação com o Legislativo. Ou, se for esperto mesmo, talvez não. Estamos em
face do efeito bumerangue na política.
O projeto voltará ao Congresso, que, muito
provavelmente, não aprovará o veto e se tornará, portanto, responsável pela
mamata corporativa dos membros do Legislativo. Se for esperto mesmo, Lula e os
governistas apontarão o dedo para o nariz dos deputados que votarem pela
rejeição do veto.
A oposição derrotará o Executivo, mas exporá
sua própria fragilidade política e moral. Política é risco. Chegou a hora
inevitável do Legislativo corrê-lo. E levar consigo os presidentes da Câmara e
do Senado e sua pretensão de usurpar do presidente as funções da presidência.
Isso talvez convença Lula e os petistas de
que a estratégia de ser de esquerda para governar em nome da direita, se deu
certo em 2003, já não terá condições de dar certo em 2026.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp, São Paulo, 2022).
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