Valor Econômico
A ideia de que o mundo europeu e
norte-americano, ao se livrar dos incômodos imigrantes, terá mais empregos e
prosperidade aos locais é um engodo
O nacionalismo é a base do mundo
contemporâneo. Ser um país com instituições, identidade cultural e um projeto
de desenvolvimento tem sido objetivo de todos os povos que se organizam
politicamente. Mas a maioria das nações só se desenvolveu graças ao contato com
o exterior e pelo fluxo migratório, enviando ou recebendo pessoas. A despeito
disso, os imigrantes se tornaram um dos grandes bodes expiatórios da política
atual, especialmente por meio do discurso da extrema direita, que ganha votos
assim e encurrala a maioria dos adversários, hoje perdidos nesse debate. O que
se vê como risco, no entanto, é a melhor solução civilizatória para o século
XXI.
Preconceitos contra o estrangeiro, pessoas de outras culturas ou cor sempre estiveram presentes na humanidade. Guerras foram geradas por esse sentimento, bem como a separação entre as sociedades. Só que o contato entre os povos tem se tornado mais global. Primeiro, a partir do projeto colonista europeu, depois com as independências nas Américas, que receberam milhões de imigrantes, particularmente da Europa e da Ásia, e continuou ainda no pós-guerra até os dias atuais, agora com um fluxo imigratório preponderantemente dos países mais pobres aos mais ricos.
A hipocrisia atual frente à imigração se deve
à mudança do fluxo imigratório. Enquanto africanos escravizados foram
barbaramente levados para o continente americano, o discurso ocidental foi
majoritariamente omisso, com raras exceções. Quando europeus ou japoneses em
busca de uma vida melhor vieram para as Américas, ajudando no desenvolvimento
dos Estados Unidos, Argentina e Brasil, essa belíssima aventura da humanidade
foi aplaudida e reverenciada. Exilados políticos vindos de ditaduras do
pós-guerra foram acolhidos por nações ocidentais, seja em nome de ideais
democráticos, seja para incorporar capital humano de alta qualidade.
O fluxo de pessoas foi aceito, com
discordâncias pouco expressivas eleitoralmente, até o início do século XXI. De
lá para cá, o cenário se modificou profundamente. O problema agora não é
necessariamente receber e incorporar estrangeiros às sociedades desenvolvidas.
A questão que gera a demagogia política liderada pela extrema direita é sobre
quem está indo para esses países. É um supremacismo civilizatório - quando não
racial - travestido de defesa da pátria.
A crítica à imigração esconde-se numa
pretensa defesa da população local, que estaria perdendo empregos e sendo
afetada pela cultura estrangeira, pois os imigrantes seriam incapazes de
assimilarem o modo de vida do seu novo país. Evidentemente que há por vezes
choques culturais e que a entrada de novos habitantes precisa ter algum
controle. Porém, o que tem predominado não é, em geral, essa incompatibilidade
congênita.
Sem os imigrantes atuais, os Estados Unidos
teriam problemas para preencher diversos postos de trabalho, aumentar a
produtividade e reduzir o efeito do envelhecimento sobre a Previdência e as
contas públicas. A Europa perderia também no terreno econômico, mas vale citar
outro âmbito no qual a imigração tem sido um sucesso: os esportes. Seleções
nacionais europeias, em várias modalidades, têm ficado cada vez mais fortes com
o acréscimo de jogadores nascidos ou filhos de pessoas de outras
nacionalidades. E as atividades esportivas são hoje tanto uma forma de
fortalecimento da identidade coletiva - com reflexos sobre a felicidade
individual e nacional - como uma atividade extremamente poderosa no plano
econômico.
É revoltante ver o presidente Trump
defendendo a deportação em massa de imigrantes levando em conta sua própria
trajetória. Sua família veio de fora para enriquecer e ajudar o desenvolvimento
dos Estados Unidos. O império familiar na construção civil e afins foi erigido
com a ajuda de milhares de trabalhadores imigrantes. O sucesso na TV,
fundamental para catapultar sua futura carreira política, foi muito vinculado
ao ideal do “self-made man”, visão que sempre atraiu estrangeiros para os EUA.
O conservadorismo cristão que ancora o trumpismo tem muito a ver com a visão de
mundo dos católicos latinos, eleitores do atual presidente.
As incongruências do discurso de Trump com
sua história são várias. Mas ele, como outras lideranças de extrema direita
pelo mundo, está mais preocupado em construir narrativas para convencer - ou
iludir - os cidadãos que acreditam ter perdido status social com a
globalização. A ideia de que o mundo europeu e norte-americano, ao se livrar
dos incômodos imigrantes, terá mais empregos e prosperidade aos locais é um
engodo. Muitos empregos industriais, do agronegócio e, mais ainda, no comércio
ou serviços que lidam diretamente com o público não serão mais preenchidos por
jovens americanos. O que a população que tem votado na extrema direita sonha no
plano econômico é ter um salário alto, mas com outro tipo de atividade.
Provavelmente isso não será possível se não tiverem a formação escolar adequada
e/ou se não aceitarem trabalhar em jornadas longas em empresas
hipercompetitivas.
O mais complicado é que as decisões
antimigratórias atuais estão hipotecando o futuro de seus países. Isso porque o
envelhecimento populacional no mundo desenvolvido vai cobrar um preço em termos
de escassez de mão de obra - na verdade, esse processo já estaria ocorrendo
agora se não fossem os imigrantes. A redução do dinamismo econômico vai afetar
a qualidade de vida de europeus e americanos, e é provável que nem a
inteligência artificial dê conta dessa tarefa. Assim, em vez de gerar um
renascimento da economia, como afirma o slogan “Make America Great Again”,
essas decisões pretensamente patriotas podem iniciar um ciclo de decadência e
dificuldades.
O ataque à imigração terá um outro efeito
negativo às nações desenvolvidas: a geração de um sentimento negativo em muitos
países, especialmente naqueles que têm enviado pessoas em busca de sucesso para
os países ricos. São milhões de homens e mulheres que estão sendo maltratadas e
escorraçadas nos lugares onde sonharam prosperar e criar suas famílias. São
humilhações cotidianas que ao final deságuam numa deportação por vezes até
perigosa. Ninguém esquece isso. O pior é que muita gente que vive na América Latina,
na África ou na Ásia continua sonhando em morar nos EUA ou na Europa.
Muitos imigrantes que vivem no mundo
desenvolvido, sobretudo nos Estados Unidos, sustentam famílias em seus países
de origem. É um fluxo de recursos fundamental para reduzir a pobreza global e
que gera um elemento de legitimidade para o sistema internacional. Antes de
expulsar a maioria dos imigrantes dos EUA, Trump quer cortar boa parte dessa
transferência de recursos. Isso será o maior estímulo para dizer que tais
pessoas, especialmente latinas, não são bem-vindas à terra do Tio Sam.
Se esse processo de deportação se
intensificar nos próximos anos, os povos que receberão de volta seus
compatriotas não perdoarão essa humilhação. O soft power americano que foi
fundamental para sua hegemonia vai se desgastar e enfraquecerá os EUA no plano
geopolítico e na economia internacional. A própria extrema direita perderá
muita força em todos os lugares em que os cidadãos locais se revoltarem com a
soberba trumpista e de seus aliados pelo mundo desenvolvido. No fundo, os
Estados Unidos terão de aumentar seu hard power, a imposição do poder pela
força, o que será muito difícil de sustentar a não ser com um altíssimo grau de
violência. É desse modo que se inicia o declínio dos impérios.
Um caminho diferente pode ser adotado pelas
lideranças políticas do mundo desenvolvido. Estados Unidos e Europa podem
ganhar com a imigração para realizar tarefas em que há cada vez mais escassez
de mão de obra. Estados Unidos e Europa podem ganhar com a obtenção de talentos
em várias das esferas da vida social que talvez não estejam à sua disposição.
Estados Unidos e Europa podem ganhar com a incorporação de capital humano muito
qualificado, que terá a Ásia como destino futuro se o discurso da extrema direita
vencer. Por fim, Estados Unidos e Europa nunca foram populações puras e
superiores: seus sucessos se devem à mistura e à incorporação de muitas
culturas.
Um modelo que opta pelo livre fluxo de
pessoas é mais realista do ponto de vista econômico, além de muito mais
civilizado, pois o pluralismo e a tolerância entre as culturas produzem
melhores sociedades. Pactos multilaterais e diálogos parcimoniosos entre os
países podem produzir um equilíbrio imigratório, evitando excessos. O que não
se pode perder de vista é que os imigrantes serão solução para as nações no
século XXI. Cair na armadilha do discurso da extrema direita é um problema para
cada uma das sociedades nacionais que sejam dominadas por formas de trumpismo,
mas é um problema também para a esfera internacional, porque o ódio derivado
desse movimento só vai causar um caos geopolítico maior.
Aqui, o passado traz boas lições: temos
orgulho dos estrangeiros e seus descendentes que trouxeram muitos progressos à
sociedade brasileira, inclusive pela mistura que propiciaram. O Brasil, mesmo
não sendo desenvolvido, também precisará mais deles no futuro, como já mostra
nossa pirâmide demográfica.
*Fernando Abrucio, doutor em
ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
Nenhum comentário:
Postar um comentário