O Globo
É preciso reconhecer que regimes
revolucionários não caem por impulso externo. Será preciso que a oposição
derrube
A guerra nos bombardeia com fatos e versões.
No curto tempo que sobra, tento entender um pouco melhor seus grandes
atores: Israel e
Irã. A história de Israel como Estado é curta, mas cheia de peripécias. No caso
do Irã, tentei revisitar alguns textos, enquanto caíam as bombas.
Um documento muito discutido na época foi a série de reportagens de Michel Foucault no Irã, feitas na véspera da Revolução Islâmica. Ele foi a Teerã duas vezes em 1978, a convite do jornal italiano Corriere della Sera. O regime do xá Reza Pahlavi estava no fim, com o Exército massacrando milhares na Praça Jaleh.
A leitura da Revolução Islâmica realizada por
Foucault foi tema de muita discussão. Ele parecia mais interessado na
emergência de novas ideias, vindas de baixo, fora dos círculos universitários,
que traziam um sopro de modernidade à política: a variável espiritual.
A modernização representada pelo governo do
Xá era limitada e tinha fortes componentes arcaicos. Mas a Revolução Islâmica,
no meu entender, não poderia ser vista apenas como introdução da
espiritualidade. Era a vitória de uma visão religiosa rígida, que determinava
como os iranianos deveriam se comportar em suas vidas. As meninas passariam a
usar véu.
Por isso, além da visão de Foucault, me
interessou muito há alguns anos a leitura do livro de memórias de Azar Nafisi,
“O que eu não contei”. Uma professora de literatura ocidental cuja família de
políticos e intelectuais nos dá, por meio de sua história, um vislumbre da
evolução do país. Nafisi é uma estudiosa de Vladimir Nabokov e escreveu um
best-seller mundial: “Lendo Lolita em Teerã”. A mãe de Nafisi foi deputada, o
pai prefeito de Teerã. Aos olhos de mulher, a Revolução Islâmica foi um grande
retrocesso:
— Vimos as mulheres tornando-se ativas em
todos os setores da vida, governando no Parlamento, entre elas minha mãe, e
tornando-se ministras. Então em 1984, minha filha, nascida cinco anos depois da
Revolução Islâmica, volta a viver as mesmas leis repelidas por minha avó e
minha mãe. Sua geração terá de encontrar seu próprio caminho de coragem e
resistência.
Uma importante profecia. De lá para cá, as
mulheres resistem bravamente ao regime teocrático. Na verdade, o livro de
Nafisi fala do primeiro protesto. Por causa da decretação do uso obrigatório do
véu (hijab), houve uma grande manifestação no 8 de março de 1979. Vigilantes do
novo regime chegaram a usar ácido contra mulheres sem véus, que gritavam:
— A liberdade não é ocidental nem oriental, é
global.
Em 2006, elas realizaram a campanha por 1
milhão de assinaturas para exigir mudanças em leis discriminatórias sobre
divórcio e guarda de filhos. Em 2009, o Movimento Verde, para denunciar fraudes
nas eleições, foi amplamente divulgado no mundo, com a imagem de Neda
Agha-Soltan, assassinada durante os protestos.
A luta das mulheres jamais parou. A partir de
2017, elas subiram em postes e retiraram o hijab em sinal de protesto. Em 2022,
de novo grandes protestos pelo fim da jovem curda Mahsa
Amini, que morreu sob a custódia da polícia moral, presa sob a acusação de
uso inadequado do véu. A polícia moral era uma decorrência da visão religiosa
rígida, que não é subproduto da espiritualidade.
Nafisi, que nasceu e viveu no Irã, refletindo
sobre a vida de suas antepassadas, talvez tenha percebido melhor que Foucault a
trajetória da Revolução Islâmica. A aplicação da sharia, a lei islâmica, ou
mesmo a substituição de um texto constitucional pela Bíblia, como querem alguns
no Brasil, deveriam ser rejeitadas. As sociedades se tornam complexas, e a
tolerância com a diversidade é essencial.
Dito isso, é preciso reconhecer que regimes
revolucionários não caem por impulso externo. Será preciso que a oposição
derrube. Assim como a destruição do aparato nuclear por meio das bombas não é o
melhor caminho, diante da possibilidade de acordo, no quadro do Tratado de Não
Proliferação. No momento de guerra, essas teses são subestimadas. Logo, logo,
sua força se imporá.
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