quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Raimundo Santos: O reformismo de Celso Furtado e a revolução de 1917

Celso Furtado, entre 1961 e janeiro de 1964, escreveu vários textos sobre a superação do subdesenvolvimento brasileiro que são bem expressivos da sua influência na cena pública. Teve incidência inclusive na esfera governamental, chegando a formular no final de 1962, como ministro do Planejamento, o Plano Trienal (1963-65) do governo de João Goulart. No mais conhecido desses textos, “Reflexões sobre a pré-revolução brasileira”, publicado no seu livro A pré-revolução brasileira em agosto de 1962, Furtado propõe uma estratégia de reformas graduais sob vigência permanente das liberdades como único caminho para firmar uma sociedade aberta e pluralista no Brasil. Escrito sob influxo dos debates sobre a reconstrução econômica europeia do segundo pós-guerra, o autor procura com ele singularizar as condições de concretização desse reformismo democrático interpelando a Revolução de 1917 e seu modelo de sociedade socialista.

O autor discute, em primeiro lugar, os princípios da estratégia reformista, em diálogo com o marxismo, à época largamente aceito pelos estudantes universitários a quem dirigia chamamento à ação política transformadora. Ele salienta três dos seus pontos doutrinários de grande convencimento: o marxismo denuncia a ordem social existente como uma ordem “em boa medida” baseada na exploração homem pelo homem, revela o caráter histórico da realidade social, indicando ser possível identificar-se “os fatores estratégicos que atuam no processo social”, e abre a porta à “política consciente de reconstrução social” (Furtado, 1962a, p. 17). Vê neste ponto sua “atitude positiva e otimista, com respeito à ação política, e bem corresponde aos anseios da juventude” (Idem). Assim resume suas observações sobre o marxismo: “...aí encontramos, por um lado, o desejo de liberar o homem de todas as peias que o escravizam socialmente, permitindo que ele se afirme na plenitude de suas potencialidades, e, por outro, descobrimos uma atitude otimista com respeito à autodeterminação consciente das comunidades humanas. Trata-se, em última instância, de um estádio superior do humanismo; pois, colocando o homem no centro das preocupações, reconhece, contudo, que a plenitude do desenvolvimento do indivíduo somente pode ser alcançada mediante a orientação racional das relações sociais” (Idem). O autor divisa na filosofia social de Marx os “anseios profundos do homem moderno”, cujas raízes mais vigorosas, diz ele ampliando o ponto, “vêm do humanismo renascentista que recolocou na pessoa humana o foco do seu destino, e seu otimismo congênito emana da Revolução Industrial que deu ao homem controle do mundo externo” (Ibidem, p. 17-18).

No seu diálogo com a juventude da época, Furtado define os objetivos fundamentais da estratégia proposta, relegando a segundo plano aquilo que chama de “simplesmente operacional”. Um exemplo é a propriedade privada dos meios de produção, a empresa privada, à qual, diz ele, não se pode atribuir mais que um caráter operacional (Ibidem, p. 18). Ela é simples forma descentralizada de organizar a produção que deve estar subordinada a critérios sociais. E sempre que exista conflito entre os objetivos sociais da produção e sua forma de organização em empresa privada, medidas para assegurar o interesse social deveriam ser tomadas (Idem). Menciona ainda o fato de que, à medida que, em fases avançadas de desenvolvimento”, vai-se alcançando maior abundância na oferta de bens, menos importância vão tendo as formas de organização da produção, passando a ser mais relevante o controle dos centros do poder político, de onde saem normas de distribuição e de utilização da renda social sob as formas de consumo público ou privado (Idem). O seu ponto é a definição dos objetivos irredutíveis “ligados à nossa própria concepção de vida”, evitando-se confundir meios e fins (Idem). Ele cita também a situação internacional então marcada pelo problema da preeminência russa ou americana. Diz o autor que, estando fora de alcance interferir nessa questão, a impotência pode significar maior margem de liberdade no que se refere à determinação dos nossos próprios objetivos (Idem).

Tendo essa “tela de fundo de autodeterminação e consciência de responsabilidade”, Furtado anuncia os objetivos da sua convocatória à ação política: “Creio que esses objetivos poderiam ser facilmente traduzidos, tomando por base a análise anterior, nas expressões: humanismo e otimismo com respeito à evolução material da sociedade. Em linguagem mais corrente: liberdade e desenvolvimento econômico” (Ibidem, p. 19).

O otimismo em relação à “vida material” tem valor estratégico na busca de uma nova sociedade: “O desenvolvimento econômico é, em sentido estrito, um meio. Contudo, constitui um fim em si mesmo”, frisa o autor, “um elemento irredutível da forma de pensar da nova geração, a confiança em que o alargamento das bases materiais da vida social e individual é condição essencial para a plenitude do desenvolvimento humano” (Ibidem, p. 20).

Furtado recusa a visão obscurantista quanto ao futuro, pondo-se em posição “antitética da lenda do bom selvagem”, não se deixando seduzir pelas miragens de “uma nova Idade Média”, nem se comovendo diante das inquietações daqueles “que veem no progresso técnico as sementes da destruição do ‘homem essencial’” (Idem). Ao contrário, viria trazer a questão ocidental da “falsa dicotomia” entre a liberdade e o desenvolvimento econômico para o contexto dos países subdesenvolvidos.

Em segundo lugar, ele contrapõe sua estratégia reformista ao modelo de crescimento econômico da União Soviética, àquela época considerado paradigma do desenvolvimento não capitalista. A questão da prevalência dos “fins verdadeiros” sobre os objetivos intermediários na transformação das sociedades constitui o “ponto central” das suas reflexões sobre as experiências das revoluções socialistas: “É este um problema complexo, pois a experiência histórica dos últimos decênios criou a aparência de uma forçada opção para os países subdesenvolvidos entre a liberdade individual e o rápido desenvolvimento material da coletividade" (Ibidem, p. 21).

A revolução socialista de 1917 na Rússia, país atrasado com vastos contingentes rurais (“um oceano de camponeses”, na expressão de Lênin) significa para ele o exemplo de um processo de transformação social doutrinariamente dirigido que perde os seus “fins últimos”. Furtado descreve o êxito da União Soviética como um crescimento econômico alcançado “com base parcialmente em métodos anti-humanos”, enumerando as “expropriações dos excedentes agrícolas, destinados a financiar o desenvolvimento industrial, feitas Manu militari” mediante “coletivização compulsiva e repressão violenta de toda resistência” (Idem). Registra que o “método drástico” da apropriação direta do produto excedente do setor camponês, realizada por “método administrativamente mais fácil”, resultou no “enorme preço em vidas humanas” (Ibidem, p. 21-22). E realça também o fato de que esse tipo de avanço econômico “tem sido acompanhado de formas de organização político-social em que se restringem, além dos limites do que consideramos tolerável, todas as formas de liberdade individual” (Ibidem, p. 22).

O rápido crescimento da economia soviética se difundira no mundo dos Partidos Comunistas (PCs) e fora dele como modelo exitoso. Furtado vê essa tese como uma questão “obscurecida” por “uma confusão de conceitos, inconsciente ou propositada” (Ibidem, p. 24). O essencial nessa discussão, volta a dizer, é que façamos “uma clara distinção entre aqueles objetivos últimos, dos quais não devemos nos afastar na luta pelo aperfeiçoamento das formas de convivência – os quais foram incorporados à filosofia de Marx, mas constituem elementos de uma concepção do mundo mais ampla e em gestação no Ocidente desde o Renascimento, – das técnicas elaboradas para a consecução total ou parcial desses objetivos” (Ibidem, p. 24-25). Ele se refere ao marxismo-leninismo como uma doutrina que postula uma revolução “inevitavelmente violenta” sob a liderança de um partido de “revolucionários profissionais” (a propósito, ver Que Fazer, de Lênin, 1902). Uma revolução cujo fim era construir “uma nova ordem que deverá ser assegurada por um regime ditatorial, o qual perdurará durante um período de duração indefinida”; “forjada e aperfeiçoada na luta pela destruição de uma estrutura político-social totalmente rígida, a tzarista” (cf. Furtado, 1962, p. 25).

Furtado também menciona os países da Europa central, onde revoluções “de fora para dentro” mostraram que as “grandes máquinas partidárias de orientação marxista-leninista ficaram traumatizadas diante de uma realidade político-social em permanente mutação” (Idem). A explicação dessa ineficácia do modelo da revolução russa de 1917 no Ocidente, registra ele, devia-se ao fato de que o Estado nessas sociedades não se reduz a órgão de dominação de classe, a mera “força especial de repressão”. Essa era a simplificação com que o marxismo-leninismo unificava a ação revolucionária dirigida à captura dos seus aparatos estatais (Idem). Daí extrai um ponto-chave para o argumento reformista: “A partir do momento em que o Estado deixa de ser uma simples ditadura de classe para transformar-se num sistema compósito, representativo de várias classes, se bem que sob égide de uma, aquela técnica revolucionária perde eficácia. A necessidade de discriminar entre o que Estado faz de bom e de ruim, do ponto de vista de uma classe, exige uma capacidade de adaptação que não pode ter um partido revolucionário monolítico” (Ibidem, p. 25-26).

As críticas do autor ao socialismo e ao marxismo-leninismo procuram mostrar seu reformismo como uma estratégia apropriada a uma sociedade complexa: “O problema fundamental que se apresenta é, portanto, desenvolver técnicas que permitam alcançar rápidas transformações com os padrões de convivência humana de uma sociedade aberta. Se não lograrmos esse objetivo, a alternativa não será o imobilismo, pois as pressões sociais abrirão caminho, escapando a toda possibilidade de previsão e controle” (Ibidem, p. 26). Segundo Furtado, elas apontam também para o outro lado da questão que são as consequências do fracasso de uma revolução democrática: "Ter logrado formas superiores de organização político-social representa uma conquista pelo menos tão definitiva quanto haver atingido altos níveis de desenvolvimento material. Deste ponto de vista, em uma sociedade aberta, onde foram alcançadas formas de convivência complexas, a revolução de tipo marxista-leninista representa óbvio retrocesso político (Ibidem, p. 27).

Tendo como pano de fundo essas reflexões, o autor associa as possibilidades do caminho reformista democrático no Brasil à questão camponesa. Para equacioná-la numa perspectiva construtiva, recorre à experiência das sociedades capitalistas no qual tiveram papel decisivo as classes, a luta de classes e o marco institucional e suas flexibilizações, favorecendo o desenvolvimento econômico. E das críticas ao socialismo oriundo da Revolução de 1917 traz a questão da preservação das liberdades democráticas como condição do êxito do desenvolvimentismo proposto, diversamente das estratégias de ativação camponesa dirigidas a constituir uma outra ordem social à semelhança da revolução russa de 1917.

Para Furtado, a questão da institucionalidade adquire grande realce no processo de mudança social. Aqui ela vai significar ao mesmo tempo flexibilizar as “estruturas básicas” e abrir o sistema político à integração dos desvalidos do mundo agrário na vida nacional. Assim ele faz esta associação: “...a classe camponesa, no Brasil, é muito mais suscetível de ser trabalhada por técnicas revolucionárias do tipo marxista-leninista do que a classe operária, se bem que do ponto de vista marxista ortodoxo, esta última deveria ser a vanguarda do movimento revolucionário. É que nossa sociedade é aberta para a classe operária, mas não para o camponês. Com efeito: permite o nosso sistema político que a classe operária se organize para levar adiante, dentro do jogo democrático, as suas reivindicações. A situação dos camponeses, entretanto, é totalmente diversa. Não possuindo qualquer direito, não podem ter reivindicações legais. Se se organizam, infere-se que o fazem com fins subversivos. A conclusão necessária que temos a tirar é a de que a sociedade brasileira é rígida em um grande segmento: aquele formado pelo rural. E com respeito a esse segmento é válida a tese de que as técnicas marxista-leninistas são eficazes” (Ibidem, 28).

Essa situação envolve duas questões. A primeira é a da capacidade do sistema político para absorver os conflitos, questão a que busca atender o gradualismo da estratégia furtadiana: “Na medida em que vivemos numa sociedade aberta, a consecução dos supremos objetivos sociais tende a assumir a forma de aproximações sucessivas. Na medida em que vivemos numa sociedade rígida, esses objetivos sociais tenderão a ser alcançados por uma ruptura cataclísmica” (Ibidem, p. 28-29). A outra questão se refere propriamente às ações dos atores, particularmente na urgência das soluções positivas para as reformas e, é preciso relevar este ponto, à sustentação política ao governo da qual depende o processo reformista.

Furtado observa que as mudanças sociais necessitavam que os acontecimentos seguissem curso normal, mas prevê duas situações em que se poderia chegar a um impasse: “Na medida em que este (o setor agrícola – RS) se conserve com a rigidez atual, todo movimento reivindicativo que surge nos campos tenderá a assimilar técnicas revolucionárias, de tipo marxista-leninista. Temos, assim, na corrente do processo revolucionário, um importante setor de vocação marxista-leninista que em determinadas condições poderá liderá-lo. A consequência prática seria o predomínio, na revolução brasileira, do setor de menor desenvolvimento político-social. Os autênticos objetivos do nosso desenvolvimento, anteriormente definidos em termos do humanismo, estariam parcialmente frustrados de antemão” (Ibidem, p. 29)..

A outra possibilidade de ocorrer uma revolução marxista-leninista seria um retrocesso na estrutura política no país: “A imposição de uma ditadura de direita tornando rígida a estrutura política, criaria as condições propícias para uma efetiva arregimentação revolucionária de tipo marxista-leninista” (Idem). O ponto do autor passa a ser este: “Sem condições objetivas determinadas por um retrocesso político-social no país, com a destruição da capacidade de defesa do setor urbano, que já desfruta de formas de convivência política superiores, a única possibilidade decorre da persistência da estrutura agrária anacrônica” (Ibidem, p. 30). Ele observa que, devido à demora das modificações nas “estruturas básicas”, ao crescimento contínuo das ansiedades coletivas, tendo o desenvolvimento econômico se tornado um “imperativo político”, já se vivia uma '“autêntica fase pré-revolucionária”. A questão das técnicas de transformação social havia passado “ao primeiro plano das preocupações políticas” (Idem).

A interdição do caminho democrático não seria um evento naturalístico vindo de um céu azul: “Para evitar um retrocesso social não basta desejá-lo: é necessário criar condições objetivas de caráter preventivo. O retrocesso na organização político-social não virá ao acaso, e sim como reflexo do pânico de certos grupos privilegiados em face da pressão social crescente. Não permitindo as rígidas estruturas adaptações gradativas, a maré montante das pressões tenderá a criar situações pré-cataclísmicas” (Ibidem, p. 31). Na mesma passagem, o autor volta à questão institucional: “Nessas situações é que os grupos dominantes são tomados de pânico e se lançam às soluções de emergência ou golpes preventivos. Fossem as modificações progressivas ou gradativas, e o sistema político-social resistiria” (Idem).

Entretanto, a argumentação furtadiana a favor do reformismo gradualista com vigência permanente das liberdades democráticas também apresenta aporias. A principal delas diz respeito ao fato de o Estado assumir, dada a ausência das classes e das lutas de classe que exerceram papel progressista nas sociedades capitalistas, funções demiúrgicas no desenvolvimento nacional. O autor propõe que o Estado tome medidas visando à formação da classe empresarial, à reorientação dos investimentos, a uma mais rápida acumulação de capitais, à redução de riscos, entre outras, ampliando muito suas atuações na área econômica (Furtado, 1962b).

Nesse processo de desenvolvimento sob auspícios do Estado, a intelectualidade ocupa lugar protagonista privilegiado. Não por acaso Furtado conclui seu texto “Reflexões sobre a pré-revolução brasileira” dizendo que a tarefa imediata da ação política era “organizar a opinião pública para que ela se manifeste organicamente”. E convoca os intelectuais para, ao lado de estudantes, operários, empresários e incipientes organizações camponesas, iniciar “o debate franco daquilo que esperam dos órgãos políticos do país.

Os problemas mais complexos devem ser objeto de estudos sistemáticos por grupos de especialistas, devendo as conclusões ser objeto de debate geral. O país está maduro para começar a refletir sobre seu próprio destino” (Furtado, 1962a, p. 32). Esperava que outras discussões e manifestações da opinião pública ensejassem plataformas “que servirão de base para a renovação da representação popular” (Idem). Chama a atenção o fato de que, nos dois textos de 1962 aqui citados, Furtado não menciona os partidos políticos no seu papel de mediador de interesses diversos e fragmentados, terreno onde cumprem tarefa tematizadora na formação das correntes de opinião e dos governos.[1] Com razão, Daniel Pécaut observa que o autor tem dificuldade em reconhecer a especificidade da política como tal, quando associa a ação política transformadora à ideia de nação como sujeito político (Pécaut, 1990), não rompendo com a cultura política nacional-popular que predominava na esquerda brasileira daquela época.

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Raimundo Santos é autor do ensaio introdutório ao livro O marxismo político de Armênio Guedes, Rio de Janeiro/Brasília: Contraponto/FAP, 2012.

Referências bibliográficas
Furtado, Celso. Reflexões sobre a pré-revolução brasileira. In: A pré-revolução brasileira. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1962a.
______. Subdesenvolvimento e Estado democrático. In: A pré-revolução brasileira. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1962b.
Pécaut, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil. Entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, 1990.
Prado Jr., Caio. Perspectivas da política progressista e popular brasileira, Revista Brasiliense n. 44, nov.-dez. de 1962.

Nota [1]
Em texto publicado no final de 1962, Caio Prado considera os partidos políticos protagonistas importantes daquele tipo de mobilização, reclamando, porém, da superficialidade das suas ideias e programas que os incapacitava então de formar governos “político-administrativos”. Também denunciava o governo de Jango por incentivar agitações em função de interesses personalistas, que desviavam o foco das “forças progressistas e democráticas” (cf. PRADO JR., 1962; 2007).

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