- Eu &Fim de Semana / Valor Econômico
O homem é o lobo do homem, dizia o filósofo Thomas Hobbes. Com essa frase, ele mostrava que a violência é parte integrante da espécie humana. Porém, Hobbes achava que seria possível garantir o direito à vida das pessoas, o mais elementar objetivo dos indivíduos, caso o Estado tivesse o poder necessário para garantir a paz. Quando ocorrem tragédias como a da escola Raul Brasil, em Suzano, fica a pergunta: o que os países podem fazer hoje para evitar a morte coletiva de jovens, aqueles que simbolizam o futuro de nossos sonhos?
Obviamente que não haverá uma solução única e nem perfeita para resolver um problema tão complexo como a violência social, especialmente a forma cada vez mais pulverizada que atinge espaços públicos que não são lugares de guerra, como escolas, templos religiosos, estações de trem ou ruas movimentadas. Todas essas matanças em massa são tristes e cruéis, mas queria aqui concentrar-me num grupo, o dos jovens, para realçar a multiplicidade de causas e respostas que devem ser colocadas na mesa de debate.
Não se pode pensar em políticas públicas e ações sociais mais amplas sem ter um diagnóstico do fenômeno que se quer combater. Partindo desse pressuposto, deve-se lembrar que a juventude é a fase da vida marcada por sentimentos contraditórios e pela difícil formação da personalidade, tudo isso alimentado por uma grande energia. Os jovens se sentem fortes e livres para afirmar suas posições, para lutar por justiça e causas coletivas, ao mesmo tempo em que se sentem frágeis o suficiente para terem baixa autoestima, gerando uma sensação de abandono em meio à multidão de pessoas com quem convivem cotidianamente.
Esse estado de espírito que acompanha a juventude não vem de hoje. Sou de uma geração, a da década de 1980, que é conhecida por ter usufruído e participado da redemocratização do país. Que lutou por mais liberdades, não só políticas, mas no campo dos costumes. Que se organizava em torno de bandeiras sociais mais amplas. Mas toda essa lista positiva não pode esconder as inseguranças que marcavam a vida pessoal, os medos da passagem para a vida adulta. Havia o desejo da paz, mas também o da violência como meio para responder aos problemas que não compreendíamos ou que nos pareciam injustos - como dizia uma música do Legião Urbana, "a violência é tão fascinante e nossas vidas são tão normais".
À profusão conflitiva e contraditória de sentimentos juvenis somou-se, no mundo de hoje, uma enorme transformação tecnológica, que permite o acesso à informação e à comunicação como nunca antes ocorrera na humanidade. Os jovens estão a todo momento se comunicando, vendo novas informações, verificando o que o outro está postando e, sobretudo, procurando saber o que os demais pensam sobre eles.
A necessidade de reconhecimento é um dos grandes balizadores da vida humana. Com a revolução comunicacional, essa procura pela aceitação tornou-se insana, o que fortalece comportamentos de manada e a polarização social. Nos mais jovens, todavia, esse fenômeno é ainda mais exacerbado, porque eles estão passando pela atribulada fase de formação da personalidade, e o reconhecimento se torna a sua maior angústia, o que leva uma grande parte da juventude a comportamentos extremos, desde a depressão e bulimias, passando pela busca por um grupo extravagante ou uma ideologia radical, até chegar à apologia da violência como forma de resolver os problemas.
Claro que esse quadro geral é modelado pelo contexto de cada lugar. Dilemas raciais e a existência de imigrantes, por exemplo, aumentam o potencial risco de confronto advindo de grupos extremistas. A desigualdade social é outro fator que afeta a forma como as anomalias do reconhecimento juvenil se manifestam. Num mundo em que as mídias se tornam mais acessíveis a todos, em que se apresenta um leque enorme de produtos e modos de vida para serem consumidos, inocula-se uma enorme frustração social nos jovens mais pobres para os quais não foram oferecidas oportunidades.
A maneira como as políticas públicas e os líderes políticos e sociais lidam com questões que afetam a juventude é decisiva. Exemplos e valores dos adultos são peça-chave na determinação do comportamento dos mais jovens. Além disso, a forma como os governos lidam com questões como segurança pública, educação, esporte e cultura têm um impacto enorme na construção do pensamento juvenil.
Dito isso, o cenário brasileiro é preocupante. Jovens pobres e pretos não têm a garantia hobbesiana de suas vidas, e são mortos cotidianamente pelos criminosos ou pela polícia. A evasão escolar entre aqueles que têm de 15 a 18 anos é de cerca de 40% do total, produzindo um segmento enorme de "nem-nem" - não estudam, não trabalham e perdem assim a oportunidade de ter um futuro melhor. As atividades culturais e esportivas são insuficientes para captar a massa de jovens que anseiam por elas.
E para além das políticas públicas, ou até as alimentando, nossas elites politicas estão propondo que a melhor vacina para a violência é mais violência. A lista de ideias aqui é deprimente: vamos armar a todos, prender os jovens o mais cedo possível, proteger os ricos condomínios com muitas grades e acreditar que as milícias têm como principal objetivo manter a ordem e a paz social. Com esse arsenal de propostas beligerantes e segregacionistas, o resultado mais provável será aquele que Hobbes já estudara no século XVII: a guerra de todos contra todos, em que nos tornaremos, parafraseando o grande filósofo inglês, mais incultos, miseráveis, violentos, desgraçados e solitários.
Não há, como dito no início, uma única causa nem resposta ao problema da violência entre e contra os jovens. Não obstante, três grandes medidas podem orientar uma reação governamental e social para reduzir o risco de tragédias como a da escola de Suzano. Em primeiro lugar, precisamos, sociedade e líderes políticos, propor uma cultura de paz como forma de gerir e dirimir os conflitos sociais. As falas e as atitudes da primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, após um "lobo solitário" matar muçulmanos que estavam em mesquitas, são a prova de que é possível combater a barbárie com civilização. Ela propôs a tolerância e o desarmamento das pessoas como uma forma de se evitar a vitória da violência, em vez de defender como antídoto uma sociedade mais segregada e beligerante.
É evidente que as declarações da família Bolsonaro, do presidente ao deputado federal, passando pelo vereador e o senador, em prol ao aumento dos armamentos para a população não foram a causa direta da tragédia em Suzano. Só que a continuidade desse discurso, inclusive propondo que professores se armem para enfrentar assassinos psicopatas, não levará à solução do problema e, pior, gerará maior pânico social e péssimas escolhas dos cidadãos. As estatísticas mostram que geralmente, com larga vantagem, os criminosos e loucos que admiram as armas vencem os cidadãos comuns, do mesmo modo que os estudos revelam que os países com maior controle do armamentismo são mais bem-sucedidos no combate à violência.
Para prevenir essas tragédias, em segundo lugar, é preciso criar melhores políticas para a juventude, que devem ser prioridade num país ainda muito jovem, além de precisarem funcionar de forma integrada. Os governos no Brasil ainda funcionam de uma maneira muito segmentada pelos seus diversos setores, e questões como primeira infância, juventude ou política para idosos, precisam de maior articulação entre as áreas. No âmbito juvenil, a escola pode ser o centro irradiador a partir do qual poderiam se interligar ações da cultura, esporte, saúde e demais temas que sejam importantes para essa faixa etária.
Como a tragédia ocorreu numa escola, vale refletir como essa tem funcionado no país. Cobra-se muito, e com razão, que as unidades de ensino gerem aprendizados nos alunos em campos como linguagem, matemática, ciências e humanidades, para ficar nos básicos. Entretanto, além dos conhecimentos disciplinares, é preciso que as escolas ajudem na formação dos jovens. Eles vivem um momento conturbado de suas vidas, ao que se soma à pressão do mundo contemporâneo para um reconhecimento social perfeito. Se a educação não for capaz de lidar com esses sentimentos, não será capaz de promover o desenvolvimento econômico e social do Brasil. Não se constrói capital humano com pessoas que não tenham suas competências emocionais e coletivas bem estruturadas.
Termino escolhendo a melhor solução que adviria dos governos, mas também das lideranças sociais: focar na arte do diálogo como caminho para a paz. Quanto mais ensinarmos os jovens a dialogar e debater, quanto mais formos capazes de ouvi-los e dar vazão às suas angústias, quanto mais provarmos que é possível ser feliz de diferentes formas, quanto mais frisarmos que as redes sociais servem para prosear e se divertir (e não para brigar), em suma, quanto mais mostrarmos que é possível resolver os problemas pela conversa pacífica, e não pela violência surda, mais teremos chances de evitar que novos atos de barbárie invadam as escolas e matem nossa esperança no futuro.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP
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