- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Neste problemático momento da sociedade brasileira, mergulhada na anomia, na insegurança, no medo e na incerteza quanto ao futuro, é útil prestar atenção nos sonhos. É nos sonhos que nossos absurdos se propõem, o ilógico do vivencial. As respostas oníricas de cada um a essa situação expõem as contradições que neles se revelam e a compreensão social que intimamente desenvolvemos para que nos situemos em face da adversidade que nos mostram.
Infelizmente, um campo pouco estudado nas ciências sociais, entre nós, é o do imaginário onírico. O que somos e o que tememos se manifesta nos sonhos de nossa vida noturna e se desvanece nas primeiras horas da manhã e da luz do dia. Os sonhos que permanecem na lembrança tendem a ser os que desfiguram e negam o cotidiano e lhe revelam as assustadoras ocultações.
Quando menino, e morador na roça, caminhava 8 km de casa até a escola na estação de Guaianases, na periferia de São Paulo. Todas as manhãs, a velha caseira de um sítio à beira da estrada me esperava na porteira, narrava-me o sonho que tivera naquela noite e me dava um tostão para que fizesse por ela a aposta no bicho correspondente ao que sonhara.
O apontador do jogo do bicho, então legal, era um decifrador de sonhos. Toda narrativa que eu lhe levava, antes de ir para o grupo escolar, ele traduzia no código próprio de um zoológico imaginário e fazia a aposta. Anotava-a num papelucho que, na volta, eu entregava à apostadora.
Florestan Fernandes, num de seus livros, chamou a atenção para o método de deciframento de sonhos que o homem comum adota. Do tipo sonhar com dinheiro significa pobreza. Sonhar com fezes significa dinheiro. O sonho revela o lado antagônico e invisível do real. As ocultações e mistérios do próprio cotidiano. O que pensamos, mas não dizemos.
Há um mundo dos sonhos, com um estilo cognitivo próprio, como explica Alfred Schütz, diverso do mundo da vida cotidiana. Isso, porém, digo eu, não ocorre nas sociedades pré-modernas, em que esses mundos não se separam, mas interagem e se completam. Já a modernidade vetou a realidade do sonho. Transformou-a em pesadelo.
Os sonhos não se equivalem. A psicanálise os interpreta de um modo, a sociologia de outro, a antropologia de outro, o senso comum de outro. Cada campo desvenda o que é próprio daquilo que foi sonhado, na respectiva filtragem interpretativa.
Há muitas revelações sociológicas dos sonhos. Roger Bastide, grande estudioso das relações raciais e das religiões africanas entre nós, num estudo sobre o imaginário onírico dos negros de São Paulo, fez uma constatação decisiva para a compreensão da negritude. Negras são as pessoas que ainda sonham com os ancestrais que os amparam e com eles conversam durante o sonho, ouvem-lhes os conselhos. Para elas não há separação entre dia e noite, entre vida e morte, entre realidade e sonho. De certo modo, o mesmo pode-se dizer das populações indígenas e das populações caipiras e sertanejas, suas herdeiras.
O trabalho missionário, na época colonial, cindiu a personalidade de escravos e nativos ao contrapor a vigília ao sonho, separando-os pelo medo. Independentemente da cor da pele, negro é quem não sucumbiu a essa fratura. Os outros são os chamados negros de alma branca, interiormente divididos: pele negra e medos brancos.
Há alguns anos, com meus alunos, fiz uma pesquisa exploratória sobre sonhos de moradores da cidade de São Paulo. Era para formar um banco de material onírico que nos permitisse conhecer essa dimensão da consciência social. A pesquisa se ateve aos sonhos recorrentes e aos inesquecíveis, ainda que antagônicos e desconstrutivos, em relação ao cotidiano. O nosso avesso.
Em mais de uma centena de sonhos analisada, houve notável convergência quanto a mediação das anomalias urbanas na demarcação do espaço onírico dos entrevistados. A casa apareceu como um refúgio uterino dos que sonham, invadida pela cidade ameaçadora, automóveis atravessando quartos e salas, anulando a intimidade doméstica, as pessoas desnudadas pela invasão.
Um dos sonhos mais interessantes foi o de uma moça que, estando no banheiro, descobriu que as paredes do recinto eram de vidro, ela completamente exposta a vizinhos e circunstantes. Outro, de um funcionário, que subiu de elevador ao topo do prédio em que trabalhava e lá se viu diante de inimigos que o atacavam, seus colegas, ele os enfrentando com uma lança, que era na verdade um lápis enorme. Acabou derrotado, despencando lá do alto para estatelar-se no meio da avenida Paulista.
Os sonhos revelaram que as pessoas vivem, imaginariamente, num mundo comunitário. A modernidade que negam é a da sociedade do medo. Nosso refúgio onírico é conservador.
*José de Souza Martins é sociólogo, membro da Academia Paulista de Letras e autor de “Uma Sociologia da Vida Cotidiana” (Contexto), dentre outros.
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