8 de março – Editorial | Folha de S. Paulo
Se há o que comemorar no Dia da Mulher, o avanço é lento diante de disparidades
O Dia Internacional da Mulher, celebrado neste 8 de março, inspira-se nos protestos encampados por trabalhadoras que, no começo do século 20, se insurgiram contra uma ordem social e política em tudo iníqua ao gênero feminino.
A efeméride só veio a tornar-se oficial em 1975, ano que as Nações Unidas consagraram à lembrança dos direitos conquistados ao longo de décadas de lutas persistentes.
Hoje, a igualdade entre homens e mulheres, ao menos no plano das leis, consolidou-se como realidade inexorável e quase universal. Em que pesem tais avanços, permanece ainda grande a desigualdade de gênero nas mais diversas sociedades do planeta —e a brasileira não seria exceção.
O último relatório do Fórum Econômico Mundial a avaliar os avanços nessa seara situa o Brasil numa pouca honrosa 92ª posição, dentre 153 nações. Regionalmente, nosso desempenho afigura-se ainda pior. Dentre os 25 países da América Latina, ocupamos somente o 22º lugar.
As disparidades mais graves, segundo o documento, se dão nos campos das relações de trabalho e da representatividade política.
Dados do IBGE mostram que, em 2018, as mulheres receberam em média salários 20,5% menores que os dos homens. Elas também têm mais dificuldades para galgar os cargos mais altos do setor privado. Apenas 19% das companhias nacionais possuem mulheres em postos elevados de gestão.
O mesmo ocorre em áreas da esfera pública. No Judiciário, por exemplo, a participação feminina no total de magistrados é de 37,5%. Nos tribunais estaduais de segunda instância, porém, essa proporção cai para 20%.
Na política, a distância se torna ainda maior. Embora constituam mais da metade da população brasileira, as mulheres representam apenas 18% dos membros do Congresso. No Executivo, elas ocupam tão somente 2 dos 22 cargos de primeiro escalão.
Não bastasse tamanha desigualdade, as mulheres sofrem ainda com a crescente ameaça a suas vidas. No ano passado, ocorreram 1.310 assassinatos decorrentes de violência doméstica ou motivados pela condição de gênero, típicos do feminicídio —uma alta de 7,2% ante 2018, que contrasta com o recuo geral da criminalidade no país.
Mais sutil e disseminado é o machismo renitente, que atravessa toda a sociedade e encontra, no próprio presidente da República, um triste e indecoroso estímulo.
Se há o que comemorar no dia de hoje, quando se compara a condição feminina com a de um século atrás, o ritmo do progresso permanece lento em demasia diante de discrepâncias e injustiças que estão aos olhos de todos.
Atração ao centro – Editorial | Folha de S. Paulo
Establishment democrata dos EUA começa a se organizar em torno do moderado Biden
A disputa pelo posto de candidato democrata na eleição presidencial americana ganhou contornos mais definidos depois dos resultados da chamada Super Terça, quando eleitores de 14 estados votaram nas primárias do partido.
Até então, o senador esquerdista Bernie Sanders vinha se destacando na corrida, com mensagem radical para os padrões do país. Declara-se socialista, promete combate à desigualdade, ao alto custo da saúde e ao endividamento por empréstimos estudantis.
Mas Joe Biden, ex-vice-presidente na gestão de Barack Obama, venceu as primárias na Carolina do Sul com forte apoio do eleitorado negro, e a maré começou a mudar. Na Super Terça, o moderado levou 10 de 14 estados, enquanto o establishment do partido, antes fragmentado, começava a se aglutinar em torno de sua candidatura.
Os ex-prefeitos Pete Buttigieg e Michael Bloomberg desistiram do pleito e anunciaram apoio a Biden, assim como fizeram outros expoentes democratas. A senadora Elizabeth Warren também decidiu abandonar a corrida.
A organização do centro em torno do ex-vice-presidente tem motivações pragmáticas: seu bom desempenho entre eleitores de vários perfis indica, em tese, melhores condições de enfrentar Trump do que as apresentadas por Sanders.
Uma disputa entre o socialista e o republicano acentuaria o cenário de polarização política, o que tende a beneficiar o atual mandatário. Um nome mais moderado, calcula-se, tem chance de conquistar setores da centro-direita insatisfeitos com o governo.
Biden também enfrenta problemas, a começar pela acusação de Trump de que teria pressionado autoridades da Ucrânia em favor de negócios de seu filho. Sua campanha, ademais, está menos organizada e conta com menos dinheiro que a de Sanders.
De todo modo, teses defendidas pelo ex-vice-presidente —como fortalecer o programa de saúde Obamacare e ampliar o acesso a bolsas e crédito estudantil— têm mais chance de prosperar no Congresso que as propostas de Sanders de saúde pública e universidade gratuita para todos.
É possível que os dois rivais democratas sigam disputando delegados até a convenção do partido em julho, mas o socialista agora terá de mostrar a capacidade de atrair eleitores de outras espectros ideológicos se quiser frente à força demonstrada por Biden.
Receita para a ruptura – Editorial | O Estado de S. Paulo
Num regime democrático, o governo não pode tratar o Congresso como inimigo. Ao fazê-lo – por exemplo, ao dizer que o país não avança porque os parlamentares não aprovam ou sabotam seus projetos –, o governo manifesta inclinação pelo autoritarismo e, no limite, dá a entender que não reconhece a legitimidade dos deputados e senadores igualmente eleitos pelo voto direto. Quem age assim sugere disposição de criar um clima de confronto, algo que só interessa a quem acalenta tendências autoritárias.
A democracia supõe a prevalência do desejo da maioria, mas essa maioria só se constitui momentaneamente, depois de amplo debate público, no qual os pontos de vista divergentes também são considerados. Ou seja, não existe maioria constituída a priori, por mais que os governantes interpretem sua plataforma política como sendo o desejo majoritário do país.
Os projetos de qualquer governante, ainda que este tenha recebido expressivo aval das urnas, precisam ser negociados um a um no Parlamento, que por sua vez reflete a multiplicidade de interesses da sociedade e deve igualmente proteger a minoria contra a tirania da maioria. Ou seja, a maioria dos votos nas eleições precisa ser convertida em apoio no Parlamento – a isto se dá o nome de política.
Para conseguir implementar as ideias com as quais se elegeu, o governante precisa dialogar com as diversas forças democráticas do país, num duro trabalho de convencimento. Nessa tarefa, o sucesso obviamente depende muito da capacidade do governante de argumentar em favor de seus projetos, mas, antes de mais nada, depende de uma demonstração cabal de respeito pelo órgão deliberativo. Isso se dá quando o governante expressa disposição para conversar e explicar em detalhes o que pretende, dando aos parlamentares o esclarecimento necessário para que estes ponderem e calibrem a matéria antes de comunicar sua decisão pelo voto.
Quando um governante se limita a enviar projetos ao Congresso, sem se dar ao trabalho de explicá-los nem de defendê-los, menospreza o Parlamento. Dá a entender que o Legislativo deve apenas chancelar o que já teria ficado decidido nas eleições, como se aquilo que o povo quis naquele momento fosse uma decisão de cabimento universal, para tudo e para todos. Não é. Por essa lógica, o Congresso, caso rejeite o projeto encaminhado pelo governo, estará se opondo não ao governo, mas ao próprio país – o que é um absurdo.
Considerando-se conectado diretamente aos eleitores, o governo que revela esse caráter demagógico alimenta uma crise que pode desembocar numa ruptura – e são inúmeros os exemplos históricos de governantes que violaram a Lei Maior porque se sentiam tolhidos para exercer um poder que julgam ter recebido do povo, estando manietados pelo Parlamento e pelo Judiciário. Mais recentemente, verifica-se o fenômeno de autocratas que nem precisaram dar um golpe clássico, com tanques e militares, para vergar as instituições a propósitos. Na Venezuela, o chavismo se impôs minando paulatinamente o Parlamento e a Suprema Corte, enquanto destruía a imprensa livre, sufocando economicamente os jornais críticos do regime, e arregimentava cada vez mais apoio popular graças ao mais desbragado clientelismo.
Esse trabalho de destruição da democracia por dentro – que inclui a desmoralização da política, o frequente desafio à Constituição e o ataque sistemático à imprensa nos últimos tempos, ficou tremendamente facilitado pelo trabalho de aguerridas milícias digitais. Essas milícias multiplicam o poder de destruição da reputação daqueles que ousam questionar o governo ou salientar seus aspectos autoritários.
Um governo que escolhe cercar-se não de articuladores políticos, mas de delinquentes digitais, demonstra evidente desapreço pela democracia e indisfarçável desejo de provocar uma ruptura institucional. O antídoto para essa insensatez é dobrar a aposta na democracia: o Congresso deve ser capaz de recuperar o valor da negociação política, o Judiciário deve preservar o império da lei contra os ímpetos liberticidas e a imprensa deve ter serenidade para mostrar a verdade dos fatos no momento em que a máquina governista de desinformação está a pleno vapor.
Governo seletivo – Editorial | O Estado de S. Paulo
O presidente Jair Bolsonaro já deu abundantes mostras de desapreço pelos interesses dos brasileiros que não compõem a sua base de apoio e não compartilham suas visões de mundo, do País e da democracia. Verifica-se sua notória inaptidão para o exercício da nobre função a ele confiada pela maioria dos eleitores que foram às urnas em 2018, entre outras razões, por sua incapacidade de se portar como o presidente de todos os brasileiros, e não o líder de uma patota, menos ainda de um nicho de usuários de redes sociais. Desta perniciosa incompreensão derivam ações – ou inações – governamentais que põem a perigo a segurança e o bem-estar de milhões de brasileiros.
Um levantamento feito pelo Estadão/Broadcast, com base em dados fornecidos pelo Ministério da Cidadania, revelou que o governo Jair Bolsonaro privilegiou as Regiões Sul e Sudeste na concessão de novos benefícios do programa Bolsa Família no início deste ano. As duas regiões foram contempladas com 75% das novas concessões, um flagrante descompasso com a dura realidade que o Bolsa Família visa a mitigar. A Região Nordeste concentra 37% das famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza na fila de espera do programa, o maior porcentual do País, mas foi o destino de apenas 3% de novas concessões do Bolsa Família este ano. “Há um descasamento entre a oferta do programa e a necessidade das pessoas. Quando se imagina onde os pobres estão, 54% das novas concessões (de benefícios do Bolsa Família) deveriam ir para o Nordeste, e não apenas 3%”, disse ao Estado o professor Marcelo Neri, do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Para dar ideia da dimensão dessa discrepância, Santa Catarina foi contemplada com o dobro de novas concessões de benefícios do Bolsa Família do que a Região Nordeste inteira, que tem uma população oito vezes maior que a do Estado da Região Sul e um contingente de famílias pobres ou extremamente pobres muito superior.
O levantamento do Estadão/Broadcast indicou que houve um pico de novas concessões do Bolsa Família em todas as regiões do Brasil no início deste ano, exceto na Região Nordeste. Se isto não se trata de uma deliberada política seletiva, é uma estranhíssima coincidência, haja vista que Jair Bolsonaro só não obteve votação majoritária no Nordeste na eleição de 2018.
O Sudeste, região mais bem atendida, também concentra um número alto de famílias pobres ou extremamente pobres (3,4 milhões), mas este número representa a metade das famílias nas mesmas condições no Nordeste (6,8 milhões). O que explicaria essa brutal diferença de tratamento? Em nota, o Ministério da Cidadania esclareceu que a concessão do Bolsa Família é “impessoal e realizada por meio de sistema automatizado”. A disparidade não foi explicada.
Essa distorção na distribuição dos recursos do Bolsa Família em relação ao número de famílias pobres e extremamente pobres no Nordeste não é um dado isolado. Em julho do ano passado, o presidente Bolsonaro determinou que “tem que dar nada para os governadores de paraíba” (sic), sendo o “pior deles” o do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB). No mês seguinte, outra apuração feita pelo Estadão/Broadcast revelou que, sob o atual governo, a Caixa reduziu substancialmente o volume de empréstimos concedidos para governadores e prefeitos nordestinos, a maioria ligadas a partidos de oposição ao governo federal.
O ânimo primal de um bom governante há de ser a promoção da melhoria de vida dos governados, independentemente de origem, classe, cor, sexo, credo ou preferências políticas. Não à toa, a impessoalidade da administração pública é um princípio consagrado pela Constituição. Divergências políticas e ideológicas são da natureza da democracia. Porém, governantes genuinamente democratas não se deixam pautar por elas na proposição e execução de políticas públicas.
A qualidade dos parques paulistanos – Editorial | O Estado de S. Paulo
A cidade de São Paulo deu um passo significativo rumo à melhor qualificação de seus parques por meio da participação dos cidadãos na elaboração de políticas públicas. Na verdade, dois. O primeiro foi o lançamento de um relatório anual sobre as condições dos parques. O segundo é um aplicativo que permitirá aos usuários fazer suas próprias avaliações e sugestões. Juntas, as duas iniciativas compõem o Indicador de Parques Urbanos, uma parceria entre a Prefeitura e a Fundação Aron Birmann.
O estudo avalia, com notas de 0 a 5, 21 categorias compreendidas em quatro áreas: infraestrutura; manutenção; segurança e serviços de gestão; e lazer e cultura. Em 2019, foram avaliados 77 parques. Em primeiro lugar ficou o Ibirapuera, com 4,49 pontos. O dado é positivo, porque é justamente o parque com o maior patrimônio cultural e o com o maior fluxo da cidade, e mereceu destaque pelas boas condições de seus equipamentos e instalações. A exceção foi o estado dos lagos, com pouca oxigenação, o que prejudica a fauna local. Já o último colocado, o Parque Juliana Carvalho Torres, na Cohab Raposo Tavares, recebeu 1,63 pontos, por causa da precariedade de itens básicos, como bebedouros e lixeiras – constantemente alvos de vandalismo –, e da falta de funcionários.
Entre um e outro extremo, é grande a diferença da qualidade dos parques. Em termos de infraestrutura, o estudo constata que em geral os parques são alimentados por algum tipo de transporte público, mas a maioria ainda não é contemplada por estruturas mínimas para ciclistas, e as condições de acessibilidade a pedestres, em especial aos deficientes, em geral são ruins. A precariedade na oferta de sanitários, bebedouros e bancos é generalizada. Na maioria há playgrounds e equipamentos de ginástica. No entanto, é comum vê-los degradados.
Numa metrópole como São Paulo, os parques são para muitas regiões a única opção de cultura e lazer. O estudo constata que há uma variedade razoável de ofertas, desde shows e festivais a oficinas e atividades físicas, e destaca o trabalho dos gestores na promoção de programações diversificadas. Nota-se contudo que a divulgação frequentemente não atinge seu público-alvo. É um problema relativamente fácil de enfrentar com as redes digitais e solucioná-lo é importante para fortalecer a convivência e a interação criativa entre as pessoas das comunidades locais, mobilizando também ações voluntárias, para as quais os parques são um palco de excelência.
A nota média dos parques paulistanos foi regular: 3,07. Apenas sete foram classificados como ótimos. As melhores avaliações concentram-se na zona sul, seguida da centro-oeste, norte e por último a zona leste.
Uma ferramenta importante para aprimorar os parques será o aplicativo gratuito lançado junto com o estudo. “A ideia é justamente dar voz aos visitantes para que façam suas críticas, apresentem suas sugestões e sejam ativos para a transformação destes ambientes”, disse Rafael Birmann, presidente da Fundação Aron Birmann. É um exemplo de como a tecnologia pode traduzir as preferências dos cidadãos em políticas públicas. Se bem-sucedida, a experiência pode servir de modelo não só às unidades de gestão de parques de outras cidades, mas a outras áreas da administração urbana, como mobilidade, assistência social e segurança.
São Paulo tem uma agenda extensa e intensa em relação aos seus parques, que inclui, além da qualificação das unidades existentes, a criação de 100 novos parques até 2030, conforme o Plano Diretor; uma melhor distribuição das áreas verdes; o avanço dos programas de concessões e parcerias público-privadas; e a reconfiguração dos parques naturais e unidades de conservação.
Estimular ao máximo a participação da sociedade civil nesse processo é o melhor modo de torná-lo orgânico e eficiente. Para tanto, o Indicador de Parques pode ser uma ferramenta extremamente útil.
A histórica dependência do dinheiro público – Editorial | O Globo
Cidades que vivem de aposentados e pensionistas do INSS precisam ter base própria de geração de renda
A frase “o Estado gasta muito e mal” é fácil de entender e de demonstrar. Em uma das dez maiores economias do mundo, que tem um PIB na faixa dos US$ 2 trilhões, o Estado recolhe o equivalente a 35% dele em impostos, gasta mais do que isso, mas a dívida interna parou de crescer em relação ao PIB, devido à queda dos juros, um alívio que favorece a volta dos investimentos privados. Mas é um Estado com grande e histórica participação na economia, principalmente a partir do getulismo (1930-45).
Porém, o ativismo estatal secular não conseguiu construir uma base econômica que promovesse um desenvolvimento uniforme, assentado numa população com bom nível educacional, com menos desníveis de renda, maior qualidade de vida. Ao se comparar o Brasil com os Estados Unidos, países com histórias temporais idênticas, a partir da sua conversão em colônias de metrópoles europeias, é gritante a diferença entre a qualidade e o tamanho das respectivas infraestruturas — ferrovias, rodovias, energia. Sem considerar outro tipo de infraestrutura também essencial: garantia de direitos, entre eles o de propriedade e a segurança jurídica.
Também por descaminhos da formação de cada país, a população brasileira mantém estreita dependência do Estado. Que, por sua vez, não consegue melhorar a qualidade dos seus elevados gastos. E ainda está em crise fiscal.
Na última segunda-feira O GLOBO trouxe informações sobre um aspecto dessa distorção estrutural: cresce o número de cidades cuja economia depende cada vez mais de aposentadorias e pensões pagas pelo INSS. Um cruzamento de dados do IBGE com informações da Secretaria da Previdência indica que, em 2017, os benefícios previdenciários representaram mais de 25% do PIB de 693 municípios do total de 5.570. Em 2010, quando a economia cresceu 7,5%, aposentadorias e pensões equivaleram a mais que 25% do valor da produção de 487 cidades. O indicador oscila em função do momento da economia, mas é indiscutível que é grande a dependência de cidades do dinheiro pago pelo INSS. E crescente, porque em 2002 estavam nesta situação 348 municípios, número que não para de crescer.
Uma equação intrincada: a população envelhece, aumenta o contingente de aposentados e pensionistas, que se tornam mais importantes para as finanças das cidades, principalmente as menores e nas regiões pouco desenvolvidas. E além do desemprego e da própria tendência de diminuição da população, a informalização do trabalho também corrói o sistema de financiamento do INSS. Do qual dependem cada vez mais cidades fora dos grandes centros. Não se trata, então, de pensar apenas no financiamento da Previdência, como se faz agora, mas também no desenvolvimento dessas regiões, para que gerem empregos, renda e impostos, a fim de que as cidades reduzam sua dependência em relação ao INSS e a outros repasses do Estado. Até hoje o Estado não conseguiu resolver a questão. Não será agora que resolverá.
Naufrágio no Rio Jari mostra fiscalização à deriva no país – Editorial | O Globo
Barco que afundou, matando 32 pessoas, não tinha autorização para transportar passageiros
Depois que o navio Anna Karoline III submergiu no Rio Jari, no Sul do Amapá, na madrugada de sábado passado, causando a morte de pelo menos 32 pessoas — outras nove estão desaparecidas —, começaram a vir à tona os muitos descalabros que levaram à tragédia, falhas que dizem muito sobre a tibieza da fiscalização desse tipo de transporte em todo o país. O barco partira do município de Santana (AP), rumo a Santarém, no Pará, e naufragou depois de dez horas de viagem. Segundo testemunhas, chovia e ventava forte no momento da tragédia.
O naufrágio no Rio Jari é mais um daqueles casos em que tudo está errado, mas ninguém se dá conta, até que acontece uma tragédia, e aí todos se perguntam como ninguém pôde atentar para algo tão óbvio. O Anna Karoline III não tinha registro para transportar passageiros, segundo o Ministério Público. Mas vendia a ilusão de que aquelas pessoas chegariam a seu destino. Já a Agência Nacional de Transportes Aquaviários informou que a embarcação não tinha autorização para operar no trecho entre Santana e Santarém, onde ocorreu o naufrágio. O enredo fica pior quando se sabe que a polícia investiga se o navio transportava mais carga que o permitido, como noticiou o “Jornal Nacional”, da Rede Globo. A capacidade seria de 89 toneladas, mas uma testemunha disse ter embarcado 110 toneladas de açúcar. A negligência era tanta que a transportadora não tinha sequer a lista dos passageiros.
Impressiona como as tragédias se repetem, sem que se faça qualquer esforço para impedi-las. Em 22 de agosto de 2017, o barco Comandante Ribeiro naufragou no Rio Xingu, no Pará, deixando 23 mortos. Após o desastre, constatou-se que a embarcação não era legalizada. Apenas dois dias depois, uma lancha que fazia a travessia entre a Ilha de Itaparica e Salvador, na Bahia, afundou, matando 20 pessoas. As investigações mostraram que placas de concreto colocadas de forma indevida como lastro se soltaram, fazendo com que o barco se inclinasse e naufragasse.
Infelizmente, o Brasil parece não ter aprendido com a tragédia do Bateau Mouche IV, que afundou no Rio, no réveillon de 1988, matando 55 pessoas. Um iate superlotado, com furos no casco e um terraço clandestino que deslocou o centro de gravidade da embarcação, foi liberado pela Marinha para uma viagem festiva, que terminou no meio da Baía de Guanabara. O caso virou símbolo da impunidade no Brasil.
Após o naufrágio no Rio Jari, semana passada, o Ministério Público anunciou a criação de uma comissão para fiscalizar o transporte fluvial na região. Antes tarde. Mas órgãos de controle e fiscalização precisam se antecipar aos fatos. Numa região onde rios correspondem a estradas, não se pode ficar aguardando a próxima tragédia.
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