domingo, 8 de março de 2020

Roberto Romano* - Forças Armadas e soberania

- O Estado de S. Paulo

Presidente deve ser advertido sobre as consequências de quebrar a hierarquia...

Os enunciados seguintes são dirigidos às Forças Armadas. Tempos atrás publiquei neste espaço o texto intitulado Presidência subversiva. Nele discuto os dilemas por nós vividos diante da imprudência – em assuntos graves – evidente no chefe de Estado. Lembrei os monopólios da força, norma jurídica, impostos.

Mencionei a hierarquia do poder público, sobretudo no setor militar. Sem ela desaparece a instituição estatal, da administração à justiça e à defesa armada. O enfraquecimento da ordem hierárquica preocupa as mentes democráticas. O pior desafio dessa anomia é que ela tem origem na pessoa que deve zelar pelo respeito às normas. A subversão do palácio é partilhada pelos que precisam garantir a segurança coletiva.

Para discutir aqueles itens retomo o polêmico conceito de soberania. Na ONU o enunciado fundamenta a tese consagrada por Tomas Hobbes de que o Estado possui suprema autoridade no território, plenitude da jurisdição interna, imunidade diante da jurisdição de outros Estados. Para todos o nível hierárquico é o mesmo. No plano interno a soberania define o único poder com direito legítimo de administrar corpos e mentes. Mas no campo interno existe hierarquia e sem ela desaparece o Estado. A soberania – segundo o termo filosófico antigo – é a alma do poder público. Sem ela resta um mecanismo fragmentado e caótico.

No Brasil a soberania sofreu atentados cujos frutos definem nossa História. O enorme território custou guerras em sua preservação. Violências foram cometidas contra os habitantes anteriores: no campo anímico, os sacerdotes católicos e na carne, os caçadores de riquezas. O trato entre colonos foi definido pela violência e falta de controle legal. Os sermões do padre Vieira denunciam, além da corrupção, o frágil respeito pela vida e pelas propriedades civis. No século 18 surgem os primeiros reclamos de soberania nas regiões coloniais.

Aquelas reivindicações iam contra a forma de controle exercida por Lisboa. Na Inconfidência, pontos estratégicos eram a fundação de uma universidade e de fábricas. A censura e o controle português tornavam inviável a vida fabril e intelectual. Além do veto aos livros não religiosos, jovens abastados seguiam para a Europa se desejassem educação superior.

A Corte no Rio definiu o Estado incipiente como oposto à democracia. Fugido de Napoleão, o regime português aqui instalou formas administrativas inimigas das conquistas democráticas instauradas na Inglaterra, nos Estados Unidos e na França. Em vez de um aparelho estatal controlado pela soberania popular, aqui se mantiveram os defeitos do Antigo Regime, como a troca de favores nos cargos públicos. A burocracia à brasileira é teia anárquica, o provimento dos cargos dá-se em trocas do governo com poderosos líderes civis. Sem disciplina e hierarquia administrativa, foi afastada a “gente ordinária de veste” sem nobreza ou pistolões de pessoas ricas.

As Forças Armadas, para serem aceitas, sofreram oposição dos grandes proprietários, os chamados de coronéis. A eles não interessava uma força impessoal sem vínculos de favor com poderosos regionais. Ao resistirem ao monopólio da força entregue ao Estado federal, que usaria como instrumento privilegiado o Exército, os oligarcas se organizaram em federações paralelas, cujo poder, no entanto, era essencial para os que dirigiam o campo federativo.

Desde o século 19 insurreições surgiram em todo o território. Tal fato impulsiona a política de centralização sem atenuar o poder dos oligarcas. Resultado: o núcleo federativo se impôs sobre os governos estaduais, mas os presidentes da República dependem do apoio trazido pelos oligarcas no Congresso. Governadores são destituídos do poder decisório e dependem dos coronéis para serem ouvidos pela Presidência da República.

O atual mandatário acirra discórdias entre dirigentes estaduais e incentiva forças disruptivas que minam a autoridade daqueles dirigentes. O problema atinge pontos insuportáveis no trato com Polícias Militares, que devem obediência e disciplina aos governadores. No Ceará e outros Estados, policiais em pleno motim decretam o fechamento do comércio, o toque de recolher, com truculência inaudita.

Assim, eles quebram a hierarquia e ameaçam o monopólio da força, base da soberania. Ademais, impulsionam a desagregação das partes na estrutura do Estado nacional. A continuar tal prática, com o silêncio incentivador da Presidência, o papel das Forças Armadas será reduzido na ordem interna do País. O Exército, a Marinha, a Aeronáutica devem gerir a força do todo estatal para assegurar a soberania no território. Se policiais militares amotinados controlam cidades, eles agem em nome de soberanos anônimos e irresponsáveis, estraçalham o território, abolem a soberania legítima. Se tal coisa se agrava, breve não existirá um país, mas fragmentos soberanos. As Forças Armadas serão descartáveis.

O presidente da República deve ser advertido sobre tais consequências nos instantes em que ele mina a autoridade dos governadores e quebra a hierarquia de comando civil e militar.

✽ Professor da Unicamp, é autor de 'Razões de Estado e outros estados da razão' (Perspectiva)

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