- O Globo
Coronavírus exporá carências, falhas ou falência múltipla do Estado provedor de saúde
Ao longo da história doenças contagiosas representam um duro teste para a grandeza ou estreiteza de visão dos governantes da época, e para sua fidelidade aos fatos. Crises trazidas por epidemias, pandemias ou outras emergências públicas também ajudam a retratar a sociedade em que vivemos, pois acentuam traços do comportamento coletivo de cada nação. Tome-se como exemplo bem comezinho o ocorrido num verão europeu dos anos 1960, quando as cidades de Londres e Paris sofreram quase simultaneamente uma alarmante escassez de água. Entre as medidas de racionamento aplicadas nos dois lados do Canal da Mancha estava a ordem de consumo de não mais de 40 litros por família, por semana. Na Inglaterra assim foi feito. Na França, já no primeiro dia da medida, a população tratou de logo encher potes, panelas, vasilhames e suas banheiras tão pouco usadas, antes que o vizinho o fizesse. Chacun pour soi, Dieu pour tous...
Com a Covid-19 não será diferente. Já ficou claro, por exemplo, que ao admirável asseio da família brasileira por mais desvalida que seja (o banho diário em qualquer barraco é quase de lei, seja com água trazida de longe ou insalubre) não corresponde uma compulsão nacional de lavar as mãos. Nem no morro nem no asfalto. Quase dois séculos depois de o húngaro Semmelweis ter brindado a humanidade com a descoberta de que lavar as mãos é remédio, o hábito agora talvez se incorpore ao nosso cotidiano tropical.
Em alguns países o novo vírus colocará à prova o próprio regime, já que em tempos de epidemia poucas coisas são tão fatais como a desinformação. Em outros ele exporá as carências, falhas ou falência múltipla do Estado como provedor de saúde pública. É o caso de Brasil e Estados Unidos, ambos com eleições marcadas para este ano, ambos governados por presidentes afoitos e avessos ao saber da ciência. No Brasil de 209 milhões de habitantes, apenas 13 casos positivos haviam sido confirmados até a sexta-feira, e eles tiveram atendimento médico privado, quase de vitrine, em hospitais de ponta. O número baixo de casos suspeitos até agora também tem permitido o fluxo de informação oficial diária tranquilizadora, ponderada, não alarmista nem aloprada —até porque o presidente Jair Bolsonaro está mantendo uma relativa continência verbal sobre o tema.
Mas e quando o alastramento do coronavírus começar a chegar nos 75% da população brasileira que nascem, vivem e morrem dependendo exclusivamente do nosso valente porém desmilinguido Sistema Único de Saúde (SUS)?
Em caso de testagem mais ampliada da população, também os Estados Unidos talvez reexaminem escolhas e políticas adotadas até agora. Sem rede de saúde pública universal, com 28 milhões de seus cidadãos sem qualquer convênio privado, e com licença médica remunerada obrigatória em apenas dez dos seus 50 estados, os EUA verão a frágil proteção nacional contra o coronavírus exposta com força eleitoral impactante.
Não é por acaso que Donald Trump anda inquieto com o vírus e acusa a mídia de estar fazendo o possível para criar um cenário assustador. “A situação está sob controle”, “Tudo vai se resolver”, “EUA em ótima forma”, repete o presidente sempre que pode, preocupado com o impacto econômico sobre sua reeleição. O acelerado desmantelamento do setor público e científico empreendido por Trump, com a saída de mais de 1.600 cientistas de agências federais desde 2017, está na raiz da tardia e desordenada linha de atuação antivírus adotada pela Casa Branca.
Ao contrário de Bolsonaro, que felizmente não pretende dominar o assunto, Trump passa como trator sobre o próprio desconhecimento. Em recente reunião na Casa Branca com executivos da indústria farmacêutica, o presidente chegou a sugerir a liberação de medicamentos de combate ao vírus antes da conclusão de testes clínicos obrigatórios. Ele também continua a garantir em público que uma vacina americana estará disponível “em breve”, apesar de ter sido informado pessoalmente por Anthony Fauci, a maior autoridade em alergias e doenças infecciosas do país, de que nada se concretizará antes de, no mínimo, 18 meses. Talvez dois, ou até cinco anos.
Para o escritor americano Matt Stoller, autor de “Golias: uma guerra de 100 anos entre o poder monopolista e a democracia”, é hora de virar a página. “É preciso reconhecer que a riqueza de uma nação, a verdadeira riqueza, deve ser definida pela capacidade do Estado de atender às necessidades de sua gente, em fabricar e distribuir os bens necessários à população”, escreveu. “A era da afluência acabou”, arriscou ele.
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