• O poder que Bolsonaro quer – Editorial | O Estado de S. Paulo
O poder que Bolsonaro almeja é aquele exercido sem que tenha de prestar conta às instituições democráticas, como o ditador Hugo Chávez
Em meio ao repúdio unânime das instituições à sua participação num comício de caráter golpista em Brasília no domingo passado, o presidente Jair Bolsonaro defendeu-se dizendo que “falta um pouco de inteligência para aqueles que me acusam de ser ditatorial”. Segundo Bolsonaro, “o pessoal geralmente conspira para chegar ao poder”, mas “eu já estou no poder, eu já sou presidente”. E concluiu: “Então eu estou conspirando contra quem, meu Deus do céu?”.
De fato, Bolsonaro já está no poder, conferido a ele pelos eleitores no pleito de 2018. A questão é que esse poder Bolsonaro não quer, não só porque, no fundo, sabe que não tem a menor ideia de como exercê-lo, tamanho é seu despreparo, mas principalmente porque é um poder regulado pela Constituição e limitado pelos freios e contrapesos institucionais. Um presidente “pode muito, mas não pode tudo”, como disse o ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello, ao criticar a convocação, feita por Bolsonaro, de protestos contra o Congresso, em fevereiro. Ou seja, já naquela ocasião, o presidente deixava explícito que não pretendia se submeter aos controles constitucionais, pois, em sua visão, sua Presidência é “o povo no poder”, como bradou aos seus seguidores no domingo passado. Depreende-se que Bolsonaro almeja presidir um regime plebiscitário, em que a voz do que ele chama de “povo” se impõe como a lei, tendo o presidente como zeloso intérprete, submetendo todos os demais Poderes a seu tacão.
Nesse regime dos sonhos bolsonaristas, nem o tal “povo” nem o presidente da República são responsáveis pelos problemas do País; estes são sempre fruto das tramoias dos demais Poderes, que se recusam a satisfazer a vontade do “povo” e são vistos como inimigos que tramam para usurpar o poder conferido ao presidente nas urnas. Não à toa, Bolsonaro vive a invocar a possibilidade de sofrer impeachment, quase como se estivesse a desejá-lo, para servir como “prova” da tal conspiração.
O poder que Bolsonaro almeja, portanto, é aquele exercido sem que tenha de prestar conta às demais instituições democráticas - que permanecem em funcionamento, mas sem condições objetivas de cumprirem suas funções. Nem é preciso ir muito longe no tempo para encontrar exemplos desse tipo de regime - a Venezuela do ditador Hugo Chávez é o caso mais bem acabado de uma autocracia construída sem a necessidade de um golpe formal. Não deve ser mero acaso que em 1999 o então deputado Bolsonaro tenha rasgado elogios ao caudilho venezuelano, dizendo que Chávez, “uma esperança para a América Latina”, faria “o que os militares fizeram no Brasil em 1964, com muito mais força”.
Como ensinou Chávez, a construção do poder discricionário demanda uma democracia de fachada, com eleições regulares e Parlamento em funcionamento, enquanto as estruturas democráticas vão sendo carcomidas. A imprensa livre é sufocada e a oposição é constrangida pela máquina de destruição de reputações. Já o Judiciário é tomado por governistas, transformando-se em pesadelo dos dissidentes do regime. Assim, estão dadas as condições para que a Constituição se torne letra morta.
É evidente que tal empreendimento deve ser contido já em seus primórdios. O Congresso faz sua parte quando impede Bolsonaro de aprovar medidas inconstitucionais e quando investiga a militância virtual bolsonarista que atua febrilmente para constranger os opositores do presidente.
Do mesmo modo, é alentador observar que o Supremo Tribunal Federal também está vigilante. Agora mesmo, por meio do ministro Alexandre de Moraes, atendeu ao pedido da Procuradoria-Geral da República e mandou abrir inquérito para saber quem organizou o ato antidemocrático do qual o presidente Bolsonaro participou animadamente no fim de semana. O ministro teve que lembrar que a Constituição “não permite o financiamento e a propagação de ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado democrático, nem tampouco a realização de manifestações visando o rompimento do Estado de Direito”. Essa investigação deve ir até o fim, dando nome e sobrenome aos liberticidas - seja qual for o cargo que ocupem ou o poder que tenham - e estes devem ser punidos de acordo com a lei.
• Hora de programar a retomada – Editorial | O Estado de S. Paulo
Guedes reafirma prioridade à vida e fala em retomada no ‘devido tempo’
O ministro da Economia, Paulo Guedes, mostrou juízo ao defender uma saída cautelosa do isolamento. “Preservar os sinais vitais da economia não significa sair do isolamento agora. (…) Significa fazer a coisa programada, fazer direito, fazer no devido tempo, mas sabendo que esse é o ponto futuro”, disse ele em videoconferência na véspera do feriado. Não definiu o “devido tempo”, mas deixou claro o respeito à orientação dos especialistas e dos médicos de UTI. Mais que isso, reafirmou o respeito ao ser humano: “Salvar vidas é a prioridade”. Mas foi diplomático em relação ao presidente. Não mencionou seu menosprezo à vida dos brasileiros nem reconheceu como antidemocrática sua presença em manifestação a favor de um golpe. Chegou a qualificá-lo como democrata, mas pode-se deixar de lado essa parte de seu pronunciamento.
Programar a saída é o passo inicial para a reativação. É preciso definir datas, extensão e ritmo da abertura. Alguns governos, como o de São Paulo, já desenharam a fase inicial. Não se deve cuidar apenas da retomada econômica. É preciso continuar levando em conta, neste ano e talvez por mais tempo, a prevenção do contágio.
Economistas poderão calcular a retomada a partir de tipos selecionados de empresas, mas o planejamento prudente será multidisciplinar. Se o poder central participar do esforço e promover alguma coordenação, tanto melhor. Mas para isso será indispensável deixar de lado, por algum tempo, a preocupação do presidente com fantásticos rivais na eleição de 2022.
Também será preciso combinar a reativação com o conserto das contas públicas. O Brasil chegará a dezembro com um buraco fiscal muito maior que o previsto no começo do ano. O governo central poderá contabilizar um buraco financeiro no intervalo de R$ 500 bilhões a R$ 600 bilhões, sem contar os juros vencidos. Será, na melhor hipótese, pouco mais que o quádruplo do valor calculado há alguns meses.
A dívida bruta do governo geral - da União, de Estados e municípios - poderá estar entre 85% e 90% do Produto Interno Bruto (PIB). Em fevereiro estava pouco abaixo de 80% e a equipe econômica tentava mantê-la por aí. Na videoconferência, o ministro da Economia fez mais um alerta, no entanto, sobre o projeto de ajuda aos Estados, ainda em exame no Congresso. Se a ajuda for excessiva e sem regras disciplinares, o quadro fiscal poderá ficar ainda pior.
Combinar crescimento econômico e ajuste das contas públicas é quase sempre um duro desafio. Mas desta vez a harmonização das duas tarefas talvez seja mais fácil, se não ocorrer nenhuma grande imprudência. As empresas sobreviventes terão muita capacidade ociosa. A oferta de mão de obra será abundante. Se as condições de crédito permanecerem favoráveis, a retomada, no próximo semestre e principalmente no próximo ano, será facilitada.
Mas a reação será tanto mais pronta quanto menor o estrago na pior fase da pandemia. As medidas anticrise já apresentadas pelo governo proporcionam alguma sustentação até o fim deste semestre. Por enquanto, facilidades adicionais têm sido anunciadas na área do crédito. As condições de financiamento ainda poderão ficar um pouco melhores se houver novo corte dos juros básicos.
Essa possibilidade foi indicada pelo presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, na segunda-feira, em evento da série Estadão Live Talks. Segundo ele, o BC está monitorando os volumes e preços do crédito e, em caso de necessidade, poderá tomar novas medidas para melhorar a oferta. Isso ocorrerá, explicou, se os bancos ainda tiverem medo de emprestar.
Apesar das muitas incertezas, o ministro Paulo Guedes tentou transmitir algum otimismo em sua fala antes do feriado. Não se conhece ainda a profundidade da crise, admitiu, mas a economia, segundo ele, parece ter escapado, até agora, de uma desorganização. A reativação, afirmou, poderá ser tão rápida quanto a queda. Mas a recuperação, é bom lembrar, será o mínimo indispensável. É preciso ambicionar muito mais que o estado da economia antes da crise do coronavírus.
• Tempos de misericórdia – Editorial | O Estado de S. Paulo
A situação atual pede a todos uma atitude de profunda solidariedade
Na homilia do domingo passado, chamado pelos católicos de Domingo da Misericórdia, o papa Francisco fez algumas reflexões que podem ser de especial utilidade nestes tempos de pandemia. A crise atual exige do poder estatal uma resposta diligente e abrangente, que enfrente as inúmeras questões sanitárias, médicas e econômicas trazidas pela pandemia. Mas a situação atual também pede a todos uma atitude de profunda solidariedade. Não se conseguirá realizar a grande prioridade, que é cuidar das pessoas, sem o envolvimento de todos - governo, empresas e cidadãos.
“Na provação que estamos atravessando, também nós, com nossos medos e nossas dúvidas como Tomé, reconhecemo-nos frágeis. (...) Descobrimos que somos como belíssimos cristais, simultaneamente frágeis e valiosos”, lembra o papa Francisco. Se a pandemia desvela a incrível fragilidade do ser humano e de seus projetos - basta ver que o novo coronavírus impôs a todos um ano de 2020 completamente diferente de qualquer planejamento -, ela também revela que a vida de todo ser humano merece toda a atenção. Não cabe fazer cálculos com a vida humana. “A misericórdia não abandona quem fica para trás”, afirmou o papa Francisco.
Na homilia, foi lembrado que não basta que cada um vença individualmente o novo coronavírus. É preciso preocupar-se de todos. “Agora, frente a uma recuperação lenta e árdua da pandemia, este perigo se insinua: esquecer quem ficou para trás”, disse o papa Francisco. “O risco é que nos atinja um vírus ainda pior: o da indiferença egoísta.” É grande o estrago causado pelo vírus da indiferença. “Chega-se a selecionar as pessoas, a descartar os pobres, a imolar no altar do progresso quem fica para trás. Esta pandemia, porém, lembra-nos que não há diferenças nem fronteiras entre aqueles que sofrem. Somos todos frágeis, todos iguais, todos valiosos.”
O papa Francisco também manifestou um desejo. “Oxalá o que está acontecendo mude o nosso interior: é tempo de remover as desigualdades, sanar a injustiça que mina pela raiz a saúde da humanidade inteira!” O enfrentamento da pandemia tem suscitado várias mudanças de hábitos sociais, como novas práticas de higiene pessoal e de consumo. Mas a pandemia é igualmente ocasião para repensar valores e objetivos. “Não pensemos só nos nossos interesses, nos interesses parciais. Aproveitemos esta prova como uma oportunidade para preparar o amanhã de todos, sem descartar ninguém”, advertiu o papa.
Cultivar esse olhar amplo, que não apenas vê os interesses pessoais, mas a coletividade, é mais do que mera questão de foro individual. Como alertou o papa Francisco, “sem uma visão de conjunto, não haverá futuro para ninguém”. Esta é uma das grandes verdades que a pandemia do novo coronavírus tem relembrado: os destinos humanos estão sempre entrelaçados. Ninguém é uma ilha isolada. O que cada um faz interfere, positiva ou negativamente, nos outros.
O respeito à quarentena, por exemplo, é muito mais do que um cuidado com a saúde pessoal ou a da família. Zela-se por toda a coletividade. Ao contribuir para diminuir o ritmo de infecção do novo coronavírus, geram-se efeitos positivos, por exemplo, sobre todo o sistema de saúde, o que é decisivo para quem tem menos condições e está mais vulnerável.
No dia seguinte à homilia do papa, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e outras entidades, como a Comissão Arns, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), entregaram ao presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, o Pacto pela Vida e pelo Brasil. Baseando-se nos princípios da solidariedade e da dignidade da pessoa humana, o documento conclama à união e ao diálogo, reclamando soluções conjuntas “para que ninguém seja deixado para trás nesta difícil travessia”.
É preciso cuidar de todos, com um olhar que não se detenha em diferenças políticas ou ideológicas. Viver em sociedade não traz apenas custos ou complicações. Ela possibilita e potencializa a solidariedade. Somos humanos. Ninguém está sozinho.
• A marcha para o colapso em algumas regiões – Editorial | O Globo
A epidemia pressiona os sistemas de saúde e testa a qualidade das medidas de prevenção adotadas
Hospitais superlotados, com as UTIs sem vagas, era o pior cenário traçado pelos especialistas desde que o Sars-CoV-2 teria saltado de um animal silvestre para uma pessoa em um mercado de carnes exóticas em Wuhan, na China, e começou a se alastrar pelo planeta com uma enorme capacidade de infeccionar pulmões antes de invadir todo o organismo.
Sem vacina e algum antivirótico eficaz, a Covid-19, a partir do início do ano, começou a se tornar a maior pandemia em cem anos.
Nos últimos dias, o país tem começado a pagar o preço da imprevidência, mas também a colher resultados relativamente positivos por precauções tomadas.
No quadro de falência de sistemas de saúde em estados e municípios, em maior ou menor grau, as regiões Norte e Nordeste já começam a enfrentar as situações mais dramáticas. Com a capacidade de seus hospitais públicos ocupada em mais de 90%, Amazonas (91%), Pará (97%) e Pernambuco (99%) estavam ontem em virtual colapso. O que significa sem condições de atender os doentes mais graves, que necessitam de assistência em Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs) equipadas com respiradores mecânicos, em falta no mundo.
Há dias, foram registrados corpos ao lado de pacientes no Hospital João Lúcio, em Manaus. Um contêiner frigorífico passou a receber cadáveres no local. Cena já observada em Nova York, cuja renda per capita é algumas vezes superior à dos moradores da capital do Amazonas. A Covid-19 tem nivelado por baixo sistemas de saúde.
Mas não há fatalismos nesta guerra real. No Brasil, morreram até ontem 2.757 pessoas, e os infectados pelo novo coronavírus somavam 43.114. Cabe sempre lembrar que existe grande subnotificação nos registros.
Em alguns locais, como Manaus e outros, a tragédia poderia ter sido evitada, ou reduzida, se o isolamento social houvesse acontecido mais cedo. À medida que os dramas evoluem isso vai ficando mais evidente, apesar da resistência do Palácio do Planalto em aceitar o que está sendo demonstrado em diversos países.
A Alemanha, com mais de 80 milhões de habitantes, não chega a ter 5 mil mortos, e a Itália, com cerca de 60 milhões, já enterrou mais de 23 mil, porque agiram de forma diferente.
Há grande pressão em hospitais de São Paulo e Rio. Mas se os governadores fluminense e paulista, Wilson Witzel e João Doria, não houvessem agido para reduzir a movimentação nos estados e nas capitais — o prefeito paulistano, Bruno Covas, participa das entrevistas diárias de Doria —, é certo que a gestão da área de saúde nos dois estados e nas duas capitais estaria ainda mais difícil.
Os erros e acertos do poder público como um todo e da própria sociedade nesta crise histórica já estão sendo contabilizados em número de caixões e de covas abertas em cemitérios lotados.
• Avanço da Covid-19 sobre favelas exige ações e reforço na quarentena- Editorial | O Globo
Em São Paulo, número de casos na periferia já ultrapassa os registros em bairros de classe média
Os primeiros registros da Covid-19 no Brasil surgiram em São Paulo, no fim de fevereiro. Eram casos importados da Europa e dos Estados Unidos. Autoridades de saúde sabiam que a disseminação pelo país era inexorável, pela facilidade de transmissão e pelas dificuldades de detectar e monitorar os doentes, como ocorria em outros países. De início, o novo coronavírus se espalhou pelos bairros de classe média. Mas o avanço da epidemia sobre as periferias e comunidades, onde as condições sanitárias são precárias, era só questão de tempo. E esse tempo chegou.
Na capital paulista, que concentra o maior número de casos e de mortes no país, a periferia já soma mais registros do que os bairros de classe média e alta. As UTIs de quatro hospitais da Zona Leste da cidade já estão lotadas, num momento em que o estado e o país ainda vivem a fase de aceleração da epidemia — o então ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta previu que o pico aconteceria entre maio e junho. Apenas no Distrito de Cidade Tiradentes foram contabilizados na semana passada quase cem casos e pelo menos 37 mortes confirmadas ou suspeitas de Covid-19.
Essa tendência se repete país afora. No Rio, segundo estado mais afetado, o novo coronavírus já é uma realidade nas favelas, onde, segundo o IBGE, vive 1,4 milhão de pessoas, ou 22,5% da população carioca. No fim do mês passado, mais da metade dos casos ainda se concentrava em bairros de classe média, mas o rápido avanço da doença sobre áreas com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é visível.
Já há casos confirmados na Cidade de Deus, Rocinha, Maré, Mangueira, no Vidigal, Caju, Jacaré, Complexo do Alemão, em Vigário Geral, Manguinhos e Acari. Pelo menos dez moradores de comunidades morreram de Covid-19.
No Norte do país, onde a epidemia assume proporções dramáticas, a precariedade é ainda mais gritante que nos grandes centros do Sudeste. Belém (PA), por exemplo, tem mais da metade de sua população (52%) vivendo em favelas. Em todo o Brasil, são 11,4 milhões de pessoas nessa situação.
Além das conhecidas condições de insalubridade dessas áreas, preocupa o fato de o isolamento social não estar sendo respeitado. Evidentemente, é um desafio cumprir protocolos em lugares com densidade populacional bem acima da média da cidade, sem saneamento ou urbanização, onde falta água até para os cuidados básicos de higiene. Mas não há outra maneira de conter a epidemia. A quarentena vale tanto para o asfalto quanto para o morro. Autoridades e moradores precisam fazer um esforço para que as favelas do país não sejam cenário de uma tragédia de proporções inimagináveis.
• Resposta a Bolsonaro – Editorial | Folha de S. Paulo
Em boa hora, STF autoriza inquérito sobre ato pró-golpe apoiado pelo presidente
Fez bem o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, em autorizar a abertura de inquérito para apurar a ocorrência de crimes contra a segurança nacional durante manifestação em que se defendeu intervenção militar no domingo (19), em Brasília.
O ato, que contava com a participação de não mais que algumas centenas de energúmenos, ganhou repercussão porque o presidente Jair Bolsonaro aproveitou a ocasião para, em frente ao quartel-general do Exército, fazer um discurso de sotaque golpista com insinuações contra o Congresso.
A investigação é oportuna. Mesmo que não resulte em processo, o que ora parece mais provável, demonstra ao presidente e a seus acólitos que as instituições estão prontas a reagir com destemor a investidas autoritárias.
O procurador-geral da República, Augusto Aras, evitou citar Bolsonaro no pedido de investigação. Limitou-se a mencionar “atos contra o regime da democracia brasileira por vários cidadãos, inclusive deputados federais, o que justifica a competência do STF”.
A ausência do nome do chefe de Estado, cuja presença na manifestação foi ostensiva, é eloquente.
O fato de a conduta do mandatário não constar do documento não significa que ele esteja imune à apuração. Se for constatada sua participação em delitos, o inquérito poderá dar origem a um processo por crime comum —além de servir de subsídio a um eventual pedido de impeachment.
Em ambas as hipóteses, para que os processos avancem, é necessária a autorização da Câmara dos Deputados, por maioria de dois terços de seus membros. Em caso de impeachment, o julgamento cabe ao Senado; tratando-se de infração penal comum, ao Supremo.
Em tese, o inquérito vai averiguar se houve violações a dispositivos de defesa do Estado que constam da famigerada Lei de Segurança Nacional, por meio da qual o regime militar processou opositores.
Merecem destaque o artigo 17, que coíbe tentativas de “mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito”, e o 23, que criminaliza o incitamento à subversão da ordem política.
Aqui cabe, decerto, uma interminável discussão sobre se as ações de Bolsonaro efetivamente se encaixam nesses dispositivos e se eles próprios não são inconstitucionais, ao limitar demasiadamente o princípio da liberdade de expressão.
Não deixa de ser irônico, de todo modo, que um notório admirador da ditadura agora se veja às voltas com a lei dos tempos de arbítrio.
• O colapso do petróleo – Editorial | Folha de S. Paulo
Com redução da demanda na pandemia, setor enfrenta desordem inédita de preços
Os danos econômicos provocados pela pandemia de Covid-19 seguem em espiral ascendente no mundo. A operar com uma fração de sua capacidade, setores inteiros, como aviação, turismo e entretenimento, têm sua sobrevivência ameaçada.
Outra vítima notável, por sua dimensão e importância, é o segmento de energia, notadamente a produção de petróleo. O mercado, que já operava com excesso de oferta e preços cadentes mesmo antes da crise, agora enfrenta talvez o seu maior desafio histórico.
A queda da demanda estimada para o segundo trimestre chega a 30 milhões de barris por dia, cerca de 30% da produção mundial.
Paliativos recentes, como o corte de produção de 10 milhões de barris acordado pelos membros da Opep (organização de países exportadores) e pela Rússia, com inédito beneplácito dos Estados Unidos, mostram-se insuficientes contra o derretimento dos preços.
O tamanho do desajuste se revelou plenamente nos últimos dias, quando os preços dos contratos para entrega em maio de óleo da categoria WTI (West Texas Intermediate), que serve de referência no mercado americano, caíram abaixo de zero pela primeira vez.
O fenômeno desafia a intuição e decorre da aproximação dos limites de estocagem no ponto central de entrega e distribuição, no estado americano de Oklahoma. Sem lugar de armazenamento, ninguém quer receber o produto —daí os preços negativos, que não deixam opção que não seja cortar de forma radical sua produção.
Embora o fenômeno por ora esteja restrito ao mercado americano, a referência internacional, o Brent, também poderá ter destino parecido. Em todo o mundo os tanques de armazenamento estão sendo ocupados, e a Agência Internacional de Energia estima que os limites estejam a poucas semanas.
Os preços do Brent também caíram abaixo de US$ 20 nesta semana, patamar insuficiente para cobrir os custos de boa parte da indústria. A situação poderá levar à redução desordenada da produção, com risco de uma avalanche de insolvências de empresas menores.
A destruição da capacidade, por sua vez, ameaça resultar em altas abruptas de preços adiante, com a recuperação da economia mundial.
O cenário exige máxima cautela do setor, portanto. A Petrobras já tomou providências, como o corte de 200 mil barris por dia de sua produção e a redução do plano de investimentos e custos administrativos. Felizmente o esforço de redução de dívidas dos últimos anos evita agora um mal maior, mas novos ajustes podem ser necessários.
• Acordo com os Estados é possível e tem de sair logo – Editorial | Valor Econômico
Cortar um pouco as pretensões dos Estados, exigir contrapartidas e aumentar a fatia em dinheiro que a União pode compensar
O auxílio federal aos Estados e municípios transformou-se em mais uma novela, que precisa ser de curtíssima duração. A necessidade de oferecer recursos aos entes federados, que enfrentam o mais sério desafio sanitário em décadas, é unânime entre os participantes da negociação, com exceção do presidente da República. Algumas doses de esperteza e de cálculo eleitoral embalaram o projeto aprovado na Câmara dos Deputados, que tem a oposição do Ministério da Economia e embatucou no Senado. O Senado fará outro projeto, com o dos deputados em anexo, e a Câmara terá novamente de opinar sobre o assunto, enquanto a covid-19 se espalha velozmente e os hospitais lotam.
Os Estados estão empurrando toda conta do ajuste para a União, o que não é justo. O projeto aprovado pela Câmara deixa em aberto o montante dos recursos a serem canalizados pela União, tomando como base o percentual de redução do ICMS (e ISS, no caso dos municípios) provocada pela parada súbita da economia. O argumento é o de que é preciso haver balizas técnicas para a mensuração.
São técnicas, mas sujeitas a reparos. Os técnicos da Economia apontaram que não é possível saber ao certo de quanto será o encolhimento dos impostos, logo o montante da ajuda ao longo do tempo - que o projeto estabelece em seis meses.
Há outras indagações a fazer. Estados (e municípios) querem continuar tocando sua administração como se não houvesse uma brutal recessão que vai arrancar fatia significativa das receitas da própria União. Como só a União emite dívidas, é justo que a maior parte do ajuste fique sob sua responsabilidade e ela auxilie os entes federados a enfrentar uma crise sanitária gigantesca. Mas é justo também negociar as perdas e a parte que compete aos Estados, seja estabelecendo um montante fixo de ressarcimento ou um redutor sobre a queda dos impostos a ser compensada.
Boa parte dos Estados já estava em precária situação financeira antes da pandemia e a debilidade dos serviços públicos cobrará um preço inumano dos contribuintes por meio da falta de hospitais e equipamentos. No entanto, os Estados querem que a União lhes garanta as receitas de 2019, o que supõe cobertura integral dos gastos com a folha de pagamento do funcionalismo - cujos salários são superiores aos da população e cujo limite de despesas foi estourado por muitos Estados.
É certo que ao fazerem seu orçamento com base em um crescimento que não existirá, os Estados terão de apertar os cintos. A Câmara cedeu e retirou o item que autorizava a União a contratar, além da ajuda, um bom volume de empréstimos - a intenção pelo visto foi a de fazer os mínimos cortes possíveis. Não deixa de ser ilustrativo da desigualdade reinante que dezenas de milhões de brasileiros terão corte em seus salários, outros perderão completamente a fonte de seu sustento, enquanto não se mexe nos praticamente indemissíveis e bem remunerados funcionários públicos.
Uma ponta solta do projeto da Câmara foi justamente a de contenção dos salários, já que não serão reduzidos. Não há contrapartidas, como proibição de promoções, aumentos, subsídios etc. O Rio de Janeiro, falido e saqueado por sucessivas administrações, em especial a de Sérgio Cabral, publicou lei que permite a modificação do orçamento para reajustar salários dos servidores. Com o projeto aprovado pela Câmara, isso não foge à ordem natural das coisas.
O governo contrapropôs um pacote de R$ 77 bilhões, R$ 40 bilhões de transferências diretas. A elas se acrescentam R$ 22,6 bilhões com a suspensão das parcelas da dívida com a União - que os Estados não estão pagando por força de liminar - e R$ 14,8 bilhões pela interrupção de pagamento de débitos junto aos bancos públicos. Com a soma de decisões anteriores, como secutirização de dívida e manutenção dos níveis de repasse aos fundos de participação, o pacote é de R$ 127,3 bilhões.
O governo Bolsonaro perdeu a capacidade de influenciar a Câmara e recorreu ao Senado. O presidente, quando resolveu interferir, foi no seu estilo: acusando “patifaria” e rejeitando negociações. Em seu pensamento obtuso, mais dinheiro para os Estados é apoiar quarentenas e ajudar os presidenciáveis que comandam o Rio e São Paulo. O bom senso indica que um meio termo é possível e desejável: cortar um pouco as pretensões dos Estados, exigir algumas contrapartidas e aumentar a fatia em dinheiro que a União pode compensar.
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