- Valor Econômico
As regras fiscais perderam relevância e provavelmente não serão restabelecidas até pelo menos 2022
A propagação da covid-19 exigiu enorme intervenção do Estado para atenuar os efeitos do forte aumento do desemprego e do expressivo desarranjo no setor produtivo. O ajuste fiscal na maioria dos países focou em três linhas: ampliação dos gastos na saúde; transferência de recursos para os trabalhadores; e suporte às empresas menos capitalizadas. Os bancos centrais também adotaram medidas destinadas ao aumento da liquidez dos bancos, bem como à implementação de apoio financeiro direto ou indireto às empresas.
Esses programas englobam, entre outras propostas, a compra de carteiras de empréstimos bancários e a aquisição de títulos públicos e privados. As respostas monetárias e fiscais também incluem transferências para os governos regionais, afetados pela contração da arrecadação e pela elevação dos gastos com saúde e projetos sociais.
O aumento das despesas e a redução das receitas fiscais gerarão déficit primário no Brasil próximo a 7% do PIB em 2020, não sendo descartado um pior resultado. O aumento desse déficit como proporção do PIB não se restringe apenas a 2020, com o governo projetando 1,9% em 2021, 1,5% em 2021 e 0,9% em 2023. O saldo do próximo ano diminuirá devido à recessão deste ano e às despesas direcionadas ao combate à pandemia a serem pagas em 2021.
O resultado primário nulo só será obtido no fim do próximo mandato presidencial, retardando o reequilíbrio projetado em quase quatro anos. Os cerca de 15 anos seguidos de déficit primário tendem a elevar a incerteza sobre a sustentabilidade fiscal. Provavelmente, o déficit acumulado adicional até 2026 superará a economia para os próximos 10 anos prevista com a reforma previdenciária, sinalizando a necessidade de novos ajustes fiscais.
Apesar de justificável frente à possibilidade de a taxa de desemprego superar 15% neste ano, a adoção desse enorme afrouxamento fiscal e monetário incorpora risco moral. Essa decisão pode agregar no imaginário popular a expectativa de que qualquer alta do desemprego será compensada com novas intervenções fiscais e monetárias, criando um Estado capaz de atenuar praticamente todos os riscos. Essa leitura tornaria o comportamento dos agentes mais propenso ao risco.
Os ciclos de crescimento econômico no Brasil têm duração curta - mediana de três anos. Em um ambiente como esse, o governo tem dificuldade de aprovar no Congresso uma firme consolidação fiscal, imprescindível para impedir a alta da dívida pública. A ausência de tempo hábil para reduzir por completo esse déficit tende a transferir a responsabilidade pelo pagamento das despesas excessivas da atual geração para a seguinte. Mesmo assim, isso só seria possível se a dívida crescente por um período prolongado fosse sustentável, o que está longe de certo.
As regras fiscais perderam relevância e provavelmente não serão restabelecidas até pelo menos 2022. A meta de superávit primário que era uma garantia desde 1999 de estabilidade fiscal perdeu essa função há muito tempo. A regra de ouro também não mais limita os gastos públicos desde o ano passado.
Do mesmo modo, o teto dos gastos só será cumprido em 2020 e 2021 por conta da autorização para que as despesas emergenciais sejam excluídas do seu cômputo. O seu cumprimento nos próximos anos exigirá aumento de impostos, redução de subsídios, corte de gastos obrigatórios ou contingenciamento de despesas discricionárias que já possuem margem de compressão muito reduzida. Não será tarefa fácil.
A maioria dos entes regionais está preparando estratégias para o abrandamento da quarentena. As poucas experiências disponíveis sugerem que esses planos precisam ser graduais, com a indústria e a construção civil tendo prioridade nessa saída. Serviços têm sido sujeitos a maiores restrições, gerando uma recuperação mais lenta. A sociedade tende a manter um distanciamento social voluntário por mais tempo, em um contexto de redução da massa salarial e de alta propensão a poupar em meio à maior incerteza.
A necessidade de uma quarentena mais longa para evitar um aumento ainda maior do número de mortes trará como efeito colateral uma recessão mais profunda. Isso impedirá o recuo rápido da alta dos gastos públicos e ampliará o endividamento bruto. A dívida pública como proporção do PIB pode alcançar 90% até o fim do atual mandato presidencial, frente aos 76% do fim de 2019. Assim, a normalização da economia terá de ser acompanhada por um plano para redução relativamente rápida do endividamento.
Pela provável inclusão do aumento de tributos, o anúncio desse plano precisa ser transparente e bem desenhado, com uma sinalização clara de que sua implantação ocorrerá apenas quando a retomada econômica estiver consolidada. Do contrário, a recuperação do consumo das famílias será ainda mais gradual, como resultado do aumento da propensão a poupar para fazer face ao maior pagamento futuro de impostos. A postergação do ajuste fiscal e monetário pode também elevar os juros dos títulos públicos, particularmente dos mais longos, por conta da elevação do risco de não sustentabilidade da dívida pública.
Em suma, a incerteza é enorme. Por ora, os esforços precisam ser concentrados na redução do número de fatalidades, com o fortalecimento da rede de proteção aos mais fragilizados. Também é justificável a transferência provisória de recursos públicos para empresas com maiores dificuldades.
Essas ações, porém, prejudicarão as contas públicas, ainda mais quando não é possível prever o grau de contração da atividade no 2º trimestre e, muito menos, o ritmo de retomada a partir do próximo trimestre. Passada essa tormenta, o governo precisará de um projeto de saída da crise que minimize o risco de novas quarentenas. O Executivo também necessitará de um plano para reversão do aumento do déficit público. Isso é inescapável. Do contrário, crescerá a percepção de que a dívida pública não é sustentável e de que os desleixos da nossa geração serão pagos pela próxima geração. Isso seria muito negativo e injusto.
*Nilson Teixeira, sócio-fundador da Macro Capital Gestão de Recursos e Ph.D. em economia pela Universidade da Pensilvânia
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