- Folha de S. Paulo
A caçamba da caminhonete lembrou um remoto palanque - o da Central do Brasil
O show de Jair Bolsonaro na caçamba de uma caminhonete, diante do Quartel-General do Exército, em Brasília, no último domingo (19), me embatucou. Parecia um déjà vu —era como se, um dia, há muito tempo, já tivesse acontecido. Se bem me lembro, o do passado era também um comício de protesto a favor e com o presidente da República no palanque. O discurso era igual: slogans anti-instituições, gritos de "o povo no poder", bandeiras do Brasil, faixas triunfalistas, orgasmos coletivos a cada palavra de ordem e tudo igualmente diante de um prédio do Exército, como que mostrando que as Forças Armadas estavam solidárias. O que foi mesmo?
Ah, já sei. Foi o famoso comício do dia 13 de março de 1964, diante da Central do Brasil e do então Ministério da Guerra, na avenida Presidente Vargas, no Rio. O presidente da República era João Goulart, cercado no palanque por aliados que, liderados por seu cunhado Leonel Brizola, pressionavam para que ele tomasse de vez o poder, para realizar reformas tidas como inadiáveis.
Mas cessam aí as semelhanças. O comício da Central tinha 150 mil pessoas, vindas de todo o país. O de Bolsonaro em Brasília tinha os habituais 150 desocupados. Só que o dele não era um evento único --numa ação conjunta, talvez planejada por uma só cabeça, atos semelhantes aconteciam ao mesmo tempo em outras capitais e também defronte de instituições militares. Em seu comício, o tíbio Jango anunciou que iria propor as reformas ao Congresso. Já Bolsonaro, com seu silêncio, apoiou os que pediam a volta da ditadura.
No comício de 1964, das janelas do edifício em frente, homens de óculos escuros, quepe e farda acompanharam furibundos a cena lá embaixo —e a revanche viria a 1º de abril. Em Brasília, os mesmos óculos escuros, quepes e fardas, se se furibundaram, preferiram limitar-se a um mocho tsk, tsk.
Deve ser uma nostalgia antecipada do pijama.
*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.
Nenhum comentário:
Postar um comentário