- Folha de S. Paulo
Quando presidentes passam por cima de peritos e cientistas, consequências podem ser mortíferas
Uma coisa que populistas autoritários, de Donald Trump a Jair Bolsonaro, têm em comum é que desconfiam dos especialistas e de instituições independentes.
Por acreditarem que eles, e apenas eles, são os verdadeiros representantes do povo, aspectos tradicionais da democracia liberal, como a separação dos poderes, lhes são estranhos.
Por que, questionam eles, juízes, que não são eleitos, devem ser capazes de impor limites ao que fazem?
E, exigem saber, como se justifica que especialistas ou burocratas possam lhes dizer como proteger sua população contra uma ameaça inusitada (como, por exemplo, uma pandemia global sem precedentes)?
Desde o início da ascensão política de Trump e de Bolsonaro, seus críticos vêm avisando que todos nós podemos pagar caro por essa megalomania.
Quando um presidente acha que tem a capacidade de tomar todas as decisões por conta própria, quando ele coloca seguidores leais mas incompetentes em cargos de alta confiança pública e passa por cima dos conselhos de peritos e cientistas, as consequências podem ser mortíferas.
Essa mensagem foi em grande medida ignorada. Até o momento em que o coronavírus rapidamente transformou nossas vidas, a maioria dos cidadãos simplesmente não fora afetada pela ascensão dos populistas.
Ainda no início deste ano, muitas pessoas no Brasil ou nos Estados Unidos podiam dizer honestamente que sua vida não tinha sido afetada em absoluto pelos supostos perigos do populismo.
Acabamos descobrindo que os governos são como navios transatlânticos robustos. Mesmo um capitão incompetente ou caprichoso não consegue mudar a trajetória deles em pouco tempo.
E, se eles começarem a se desviar do rumo correto, levam algum tempo para se chocar com um iceberg.
Mas, se a lentidão do Estado é uma grande fonte de resiliência em tempos normais, ela também constitui um perigo grave em momentos de emergência genuína, como o que estamos vivendo hoje.
Para fazer frente a uma pandemia, as ações de sempre não bastam.
Pelo contrário –o presidente precisa funcionar como uma figura de união; precisa impor medidas de distanciamento social, estabelecer protocolos para a realização de exames em grande parte da população e colocar em quarentena as pessoas que podem ter contraído a doença.
Nada disso pode acontecer por conta própria. Tudo isso requer confiança em especialistas e coordenação com burocratas.
Assim, não chega a surpreender que muitos populistas estejam falhando da maneira mais espetacular neste teste crucial.
Em nenhuma grande democracia essa falha vem sendo mais evidente que no Brasil. Bolsonaro foi ainda mais longe que Trump ao minimizar a gravidade do perigo, recusar-se a promulgar as medidas necessárias para evitar inúmeras mortes desnecessárias e negar-se a permitir que outros realizem o trabalho que ele se recusa constantemente a fazer.
Agora ele chegou ao ponto de demitir seu ministro da Saúde pelo crime imperdoável de ser tremendamente mais competente –e, também, por conta disso, mais popular— que ele.
Para aqueles entre nós que há muito tempo temos advertido sobre a ascensão do populismo, pode ser tentador sentirmos um pouco de “schadenfreude” (termo em alemão para descrever o sentimento de alegria pela desgraça alheia) com o fato de os índices de aprovação de Bolsonaro se manterem baixos.
Finalmente o presidente pode vir a pagar o preço político de sua própria incompetência.
Mas, por mais tentadora que possa ser essa "schadenfreude", ela não capta plenamente por que era tão importante se opor aos populistas em primeiro lugar: porque precisamos fazer o que pudermos para impedir que eles imponham sofrimento desnecessário a seus próprios cidadãos.
*O cientista social Yascha Mounk é professor associado na Universidade Johns Hopkins e autor de "O Povo contra a Democracia".
Tradução de Clara Allain
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