quarta-feira, 22 de abril de 2020

Bernardo Mello Franco - Carreatas da morte

- O Globo

Incentivadas por Bolsonaro, carreatas da morte pediram o fim do isolamento em plena pandemia. O secretário de Saúde da Bahia desafiou a turma a abrir mão de leitos e respiradores

A cena é do último domingo, em São Paulo. No dia em que o estado registrou a milésima morte pelo coronavírus, manifestantes pararam o trânsito e fizeram buzinaço em frente ao Hospital das Clínicas. No mesmo quarteirão funciona o Instituto Emílio Ribas, cuja UTI não tem mais leitos para novos pacientes.

Perto dali, na Avenida Paulista, ambulâncias tentavam abrir caminho entre veículos enfeitados com bandeiras do Brasil. Os motoristas ignoraram as sirenes e continuaram a bloquear as pistas. Um homem de camisa da seleção saiu do carro e celebrou a adesão ao movimento: “Vamos parar São Paulo!”. Ele terminou a performance com gritos contra o governador, que faz apelos diários para que a população respeite o isolamento.

No mesmo cenário, uma semana antes, ativistas em verde e amarelo já cobravam a reabertura imediata do comércio. Um grupo ergueu um esquife e encenou o enterro da “ditadura da Covid-19”. Ao fundo, um alto-falante tocava a música eletrônica do “meme do caixão”, que faz piada com uma cerimônia fúnebre em Gana.

No futuro, as carreatas da morte ajudarão historiadores a explicar o Brasil de 2020. Em Brasília, os manifestantes aproveitaram para pedir golpe militar e fechamento do Congresso. O ato terminou com discurso do presidente Jair Bolsonaro, festejado aos gritos de “Mito”.

No Rio, o protesto motorizado passeou pela Zona Sul e tomou a Avenida Niemeyer rumo a São Conrado. Ao passar pelo Vidigal, virou alvo de uma chuva de ovos. O fotógrafo Lucas Landau, da agência Reuters, registrou o momento em que um policial saiu em defesa dos motoristas e apontou a arma contra moradores da favela. Em comunidades dominadas por milícias, não houve carreata. O comércio já recebeu ordem para reabrir as portas, ignorando decretos estaduais e municipais.

Na Bahia, o cardiologista Fábio Vilas-Boas, secretário estadual de Saúde, reagiu com indignação ao ver as imagens de domingo. “Será que essas pessoas aceitam assinar um termo renunciando ao acesso a leitos de UTI e ventilação mecânica para si, para seus pais e para seus filhos?”, perguntou, numa rede social. Até agora, nenhum bolsonarista aceitou o desafio.

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