Negacionismo impediu a coordenação das iniciativas de controle da pandemia
Há consenso, fora malucos incorrigíveis, de que o Brasil
fracassou diante do desafio da Covid-19. Mas deve-se qualificar o
fracasso: a régua para medi-lo não é o número de óbitos.
A taxa de óbitos no país (48 por 100 mil) é, no momento,
menor que as registradas na Bélgica (86), Reino Unido (70), Peru (64), Espanha
(61), Itália (58) ou Suécia (57). Na faixa brasileira estão o Chile (53), os
EUA (49) e o México (40). Na Europa, teme-se uma retomada de contágios no
outono e inverno. Não há prova de que ficaremos fora da curva das nações mais
atingidas.
Fracasso de todas elas? Difícil afirmar, pois são fortes os indícios de que o resultado, em óbitos, é largamente determinado pelo ponto de partida.
Hoje sabemos que o vírus espalhou-se, silenciosamente, nos
primeiros dois meses do ano. Por razões aleatórias, algumas áreas de elevada
urbanização, na Espanha, na Itália, na França, na Bélgica, na Suécia e nos EUA,
sofreram extensivos contágios na etapa oculta da pandemia. No Brasil, isso
parece ter ocorrido com São Paulo, Rio, Fortaleza, Recife e Manaus. Depois
desse impacto, com lockdown (Itália, Espanha, França) ou sem ele (Suécia), o gráfico de óbitos já estava
traçado, ao menos em linhas gerais.
O Brasil, ao contrário da Itália ou do Equador, não fracassou
no atendimento aos doentes. À exceção de alguns lugares (Manaus, por exemplo),
os hospitais regulares e os de campanha deram conta da pressão.
O SUS, com todas as suas conhecidas carências, salvou-nos da tragédia de contar
mortes evitáveis. É uma lição prática sobre saúde pública que não temos o
direito de esquecer.
Fracassamos por não fazer um lockdown geral? O diagnóstico,
tão comum entre acadêmicos e na esquerda, ignora os limites impostos pela falta
de um mínimo consenso político nacional e pelas profundas desigualdades sociais
do país.
O Brasil elegeu um presidente negacionista —e isso tem
consequências. Um lockdown no estilo italiano exigiria a ocupação das
periferias e favelas por forças policiais sem compromissos com direitos (e
vidas) dos cidadãos. O acadêmico que clama pelo lockdown evidencia desconhecer
o país. O líder político de esquerda que faz o mesmo está investindo no
impossível para colher o possível, na forma de votos.
O fracasso deve ser creditado, quase exclusivamente, ao
governo federal. O negacionismo persistente, inabalável, impediu a coordenação
das iniciativas de controle. A Constituição define a saúde como competência
conjunta da União, dos estados e municípios.
Diante da criminosa negligência de Bolsonaro, o STF produziu
interpretação criativa do texto constitucional, vetando a interferência federal nas decisões sanitárias
estaduais. Daí, decorreram os planos incongruentes das quarentenas e
flexibilizações em curso.
Os EUA de Trump, outro negacionista, vivem cenário similar.
Contudo, a culpa não é do sistema federativo. Na Alemanha federal, um consenso
político propiciou a cooperação entre o governo central e os estados que, mesmo
pontilhada por atritos, conduziu a um planejamento eficaz. Pagamos o preço de
uma opção eleitoral, com juros e multa.
No pacote do fracasso está o atraso na testagem em massa.
Bombardeado pelas falanges bolsonaristas, o Ministério da Saúde ficou acéfalo
no auge da crise, com a demissão de Mandetta, e converteu-se em acampamento de
militares que, de costas para a epidemiologia, batem continência a um
presidente inepto, irresponsável e amoral. Cinco meses depois do início das
quarentenas, não temos um mapa dos caminhos de contágio. O governo federal
escolheu, tacitamente, dirigir a nação para a longa tempestade da imunidade
coletiva forçada.
Quando desceremos a curva? A resposta não depende de nós,
mas dos anticorpos e células T. O vírus governa o Brasil.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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