- Revista Será? (PE)
O balanço do impacto de grandes
operações judiciárias, como a Lava Jato, sobre o sistema partidário é, no
mínimo, inquietante. Alguns dos seus aspectos mais problemáticos já foram
ressaltados e outros mais virão com o tempo, mas é fato que operações
inicialmente focadas em questões específicas, ainda que graves, ampliaram-se em
demasia, conferiram um veio salvacionista aos principais atores, tomados por
uma espécie de complexo de Simão Bacamarte, o qual, como se sabe, pretendia
encerrar no manicômio de Itaguaí todos os que, a seu juízo, tinham comportamento
desviante. Os resultados não foram lá muito animadores e o Bacamarte terminou
encerrando-se na Casa Verde, depois de livrar a multidão de internados.
Não devemos esperar desfecho análogo:
nenhum dos personagens da grande confusão brasileira, independentemente de
culpas, se encaminhará por vontade própria até o manicômio. Nem entre os
aprendizes de Bacamarte nem entre seus pacientes forçados surgirá
espontaneamente uma avaliação serena de erros e exageros, parcialidades de
julgamento e desvios reais de comportamento, de modo que, ainda no rescaldo
daquelas operações, seremos obrigados a retomar pacientemente o ofício de
trabalhar as duras vigas de madeira que constituem a política, de acordo com a
lição clássica.
Deixemos provisoriamente de lado
pequenos e grandes bacamartes; a eles voltaremos outras vezes, com particular
ênfase na escolha política desastrada que fizeram na única circunstância em que
efetivamente não podiam errar, a saber, na eleição de Jair Messias Bolsonaro e
nas decisões judiciais que direta ou indiretamente a favoreceram. E
reconheçamos, de cara, que o paciente – o sistema partidário – não estava bem
das pernas (e da cabeça) quando sobre ele se abateram as acusações dos
procuradores e o martelo dos juízes. Personalismo e fragmentação excessiva eram
males que deformavam o funcionamento daquele sistema, para não mencionar o
problema crônico – e longe de ser resolvido – das relações entre dinheiro e
política, financiadores e campanhas, empresas e administradores públicos, com o
atalho para o enriquecimento desonesto.
O personalismo tem múltiplas facetas
e não será fácil reduzi-lo a proporções mais razoáveis. Partidos, entre nós,
costumam ser empreendimentos individuais, “movimentos” que se estruturam em
função de uma determinada candidatura presidencial e muitas vezes com ela
desaparecem. Raramente são agrupamentos estáveis, com capacidade de expressar
demandas da sociedade, selecionar grupos dirigentes ao longo do tempo, propor
uma relação mais ou menos coerente entre valores e política. Nestes trinta anos
de vigência da Carta de 1988 perderam-se ocasiões interessantes – não sabemos
se para sempre – de um enraizamento mais definido de partidos como o PFL/DEM,
que poderia ter sido expressão de uma necessária direita democrática; ou como o
PSDB, embrião de uma boa socialdemocracia que, sem no entanto ter implantação
sindical, se reduziria crescentemente a uma federação de “notáveis”; uma
federação, de resto, facilmente desafiada e batida, à esquerda, pelo PT, cuja
implantação mais forte acabaria por associar as características mais
problemáticas do partido “orgânico” e da liderança carismática, tornando-se
assim um partido poucas vezes capaz de pensar além de si mesmo e das suas
conveniências mais imediatas.
A fragmentação, de certo modo, não
foi um traço inteiramente endógeno do sistema. Natural que, após o regime
autoritário, com sua ação arbitrária no sentido de dissolver os três grandes
partidos da democracia de 1946 – e, obviamente, manter a proscrição dos
partidos comunistas –, soprasse um vento libertário. O exagero aqui consistiu
em confundir o direito à livre associação no terreno da sociedade e o direito
de acesso às casas legislativas e aos fundos públicos, a ser regido por algum
mecanismo mínimo de desempenho eleitoral. A intervenção “exógena” do STF, em
2006, adiou a adoção das cláusulas de barreira, que teriam dado – como
começaram a dar já em 2018 – o pontapé inicial para o enxugamento e a
racionalização da presença dos partidos na cena parlamentar.
A cada ato legislativo que se proponha
regular os mecanismos partidários e eleitorais cabe fazer, a nosso juízo, um
conjunto de perguntas intimamente relacionadas: tal ato contribui, ou não, para
atenuar o grau de personalismo dos partidos e da política? Ainda que a médio
prazo ele favorece a ação de forças centrípetas, impedindo que atores
individuais e coletivos, semelhantes entre si, exerçam furiosamente o
narcisismo das pequenas diferenças? Que regras até mesmo corriqueiras, como a
da famosa “janela de transferências” às vésperas de cada pleito, podem ser
aperfeiçoadas – e por certo endurecidas – para que tantos políticos “não mudem
de partido como quem muda de camisa”, segundo o lugar comum que trazemos na
ponta da língua? O presente mecanismo de financiamento público das campanhas
será o Santo Graal finalmente encontrado ou ainda é preciso imaginar formas
complementares, que necessariamente supõem limite, transparência e accountability para
não se transformarem em atividades que transcorrem nas sombras?
É preciso reconhecer que estes e outros problemas não foram coerentemente formulados e menos ainda equacionados pelos políticos e partidos que dirigiram a democracia brasileira nos primeiros trinta anos do novo ordenamento constitucional. Ao contrário, foram muitas vezes varridos para debaixo do tapete, e o custo desta omissão paga-se em termos de desprestígio dos parlamentos, dos partidos e da ação política. No vácuo assim criado surgiram os salvadores da pátria – de toga, beca ou farda, tanto faz. Com os resultados calamitosos que sempre ocorrem depois que se desmoraliza a ciência dos bacamartes, a mágica dos ilusionistas e a aura mítica dos liberticidas.
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