Nenhum deles pode ‘tocar a vida’; nem Bolsonaro pode ‘se safar’ da responsabilidade pela vergonha nacional
Em 17 de março, quando o Brasil
registrava 290 casos e apenas uma morte pelo novo coronavírus, o então ministro
da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, previu que os números cresceriam
exponencialmente até o fim de junho. Em julho estabilizariam e, em agosto,
começariam a cair. Num cenário em que os fatos correm mais que o tempo, quase
cinco meses depois, não há mais Mandetta, exonerado pelo presidente Jair
Bolsonaro em 16 de abril. Agosto está aí — e o panorama é um país ainda perdido
em meio ao avanço da Covid-19. Os infectados passam de 2,9 milhões, e os mortos
chegam à marca macabra de 100 mil. Para ter ideia da dimensão da catástrofe, o
contingente supera a soma de duas conhecidas tragédias nacionais: todos os
óbitos no trânsito (40.721) e todos os assassinatos (41.635) em 2019.
Não se chegou a tal número por acaso.
Ele foi construído cotidianamente, por erros e omissões de um governo que
trocou a Ciência pelo obscurantismo. Claro que governadores e prefeitos — com
autonomia dada pelo STF para impor medidas de restrição e liberdade para fazer
compras emergenciais (muitas das quais viraram caso de polícia) — também
deixaram suas digitais na hecatombe. Mas é inequívoca a responsabilidade do
presidente Jair Bolsonaro, a quem cabia, por meio do Ministério da Saúde,
coordenar o combate à mais letal pandemia em cem anos.
Bolsonaro começou minimizando a
pandemia. Tratou a doença como “gripezinha” e, questionado sobre os mortos,
soltou um revoltante “E daí?”. Mais preocupado com seu projeto de reeleição,
atacou o isolamento social decretado por governadores e prefeitos — eficaz para
impedir o avanço da doença na falta de vacinas ou remédios — e pregou a
reabertura imediata das atividades. Alegou que a população não morreria de
Covid, mas de fome. Simulou um falso dilema, já que, quanto antes a epidemia
estiver controlada, mais rapidamente a economia voltará a girar.
O Ministério da Saúde é o melhor
exemplo do pouco caso com a epidemia. Em menos de quatro meses, foram três
ministros. Mandetta e seu substituto, Nelson Teich, saíram por discordar de
Bolsonaro. O general Eduardo Pazuello permaneceu por concordar, no melhor
estilo “missão dada é missão cumprida”. Está há mais de dois meses no cargo
como interino, prova do esvaziamento da pasta em plena pandemia. Uma de suas
primeiras decisões foi liberar a cloroquina para qualquer fase do tratamento,
ignorando evidências científicas de que ela não tem eficácia contra o
coronavírus e pode causar sérios efeitos colaterais. O país produziu
comprimidos de cloroquina aos milhões, sabe-se lá para quê. Estima-se que haja
estoque para abastecer por 38 anos o mercado nacional.
A cloroquina virou obsessão de
Bolsonaro, transformado em garoto-propaganda do medicamento. Ele próprio,
quando contraiu o vírus, apareceu numa transmissão ao vivo com uma caixa em
mãos. Numa cena bizarra que decerto ilustrará os futuros livros de história,
foi flagrado exibindo uma caixa de cloroquina às emas do Palácio da Alvorada.
Até elas pareciam ter consciência do ridículo. A insistência na cloroquina não
foi a única ofensa à Ciência. Bolsonaro se especializou em quebrar os
protocolos sanitários mais básicos para a prevenção da Covid-19. Em lugares
públicos, cumprimentou transeuntes, tossiu, falou alto, desprezou o uso da
máscara — chegou a ser obrigado pela Justiça a usá-la — e frequentou
aglomerações.
O que o governo deveria fazer não fez:
estabelecer protocolos nacionais, lançar uma campanha para incentivar o
distanciamento, testar a população para identificar os infectados, isolá-los e
rastrear seus contatos, seguindo exemplos de países que controlaram a epidemia,
como Coreia do Sul, Austrália ou Alemanha. O Brasil testa pouquíssimo, caminha
às cegas no combate à doença. Escolhe sempre o caminho errado. Em meio ao
desgoverno, a epidemia avança e escancara as desigualdades gritantes do país.
Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostrou que, na
cidade do Rio de Janeiro, dos 6.735 óbitos até 13 de junho, 79,6% ocorreram nos
bairros de menor Índice de Desenvolvimento Social (IDS). Nas áreas mais pobres,
a taxa de letalidade chega a ser o dobro da de regiões ricas (20% contra 10%).
Na capital paulista, não é diferente. Os 25 distritos com maior número de
mortes por Covid-19 estão na periferia. Juntos, concentram 42,1% dos óbitos.
Números superlativos não devem servir
para banalizar a tragédia. Por trás deles, há 100 mil histórias de brasileiros
que perderam a vida para o coronavírus. Tal contingente ainda cresce ao ritmo
de mais de mil mortes por dia, quase uma por minuto. Produzimos sepultamentos
em escala industrial, que nos humilham perante o mundo. O Brasil de Bolsonaro
fica atrás apenas dos Estados Unidos de Donald Trump no campeonato macabro da
Covid-19.
Em vez de impedir a tragédia, o governo tentou escondê-la. No início de junho, quando a escalada já era desenfreada, decidiu omitir o total de mortos do boletim diário do ministério. Iniciativa inócua, pois um consórcio da imprensa profissional passou a apurar os dados, e o Supremo obrigou o governo a recuar. Bolsonaro deveria saber que não é torturando números que se muda a realidade. Ela está aí, para quem quiser ver. Na quinta-feira, ele disse lamentar a iminência das 100 mil mortes: “Mas vamos tocar a vida, tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse problema”. Obviamente, nenhum dos mortos terá como tocar vida nenhuma. Nem Bolsonaro tem como se safar da responsabilidade pela tragédia e pela vergonha nacional.
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