- O Estado de S.Paulo
No Brasil, atuação da sociedade civil serviu de contraponto à ausência do Executivo federal
Parte das ruas do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, não tinha nome nem aparecia no mapa da cidade. A situação mudou graças à organização comunitária Redes da Maré. Seus líderes criaram um projeto de cartografia, a partir de imagens de satélite, com a mesma metodologia do IBGE. Cerca de 900 ruas foram catalogadas e, numa parceria com o poder público, ganharão nome e CEP. “Nós queremos gerar um conhecimento que possa ser transformado em políticas públicas”, diz Eliana Silva, diretora do Redes da Maré. Doutora em Serviço Social, ela usa métodos acadêmicos para melhorar a vida na comunidade onde morou por 25 anos.
Os bancos de dados do Redes da Maré não serviram apenas para dar um CEP aos moradores – medida essencial de cidadania. Eles foram importantíssimos no combate ao coronavírus. Os dados ajudaram a identificar 6 mil famílias altamente vulneráveis, em uma comunidade de 140 mil habitantes, e encaminhar a elas cestas básicas. Informações obtidas por WhatsApp mapearam os lugares com maior incidência de casos do coronavírus, onde foram instalados centros de isolamento com testagem – parceria com a Fundação Oswaldo Cruz e com o Todos Pela Saúde. Em outros pontos, suprimentos de água e sabonetes ajudaram a população em situação de rua a cumprir a tarefa básica de lavar as mãos.
Combater o coronavírus na América Latina é bem mais complicado que na Europa. Por aqui, as questões médicas se somam a carências sociais históricas, como as que se veem na Maré.
A epidemiologista Silvia Martins, professora da Universidade Columbia, em Nova York, fez estudos comparativos sobre diferentes países da região. A pandemia explodiu em lugares que, aparentemente, fizeram tudo certo, caso do Peru. Lá houve testagem e dinheiro para auxílios emergenciais. Não foi possível evitar, no entanto, que os peruanos mais vulneráveis, que não têm geladeira em casa, saíssem todo dia para comprar comida no mercado. Nem como corrigir, do dia para a noite, deficiências históricas da saúde pública. “Com a pandemia, muitos peruanos das cidades grandes voltaram para suas famílias no interior, onde há menos hospitais e de pior qualidade”, diz Silvia Martins.
Segundo ela, um padrão se repete em várias nações que fracassaram no combate ao coronavírus: faltou um envolvimento forte dos líderes federais, além de uma estratégia unificada de combate à pandemia. No Brasil, tal negligência, potencializada pelas carências já existentes, nos conduziu à tragédia das 100 mil mortes.
Do ponto de vista da ciência política, a omissão de líderes em tempo de calamidade constitui um fenômeno tão desastroso quanto intrigante. Um estudo publicado no mês passado aponta tal anomalia nas administrações de Donald Trump e Jair Bolsonaro, batizando-a de “executive underreach”. No Brasil, a atuação da sociedade civil – e, segundo os autores do paper, também do Legislativo e Judiciário – serviu de contraponto à ausência do Executivo federal (o estudo está na versão digital da coluna, junto com minipodcasts de Eliana Silva e Silvia Martins, além de um link para doar cestas básicas ao Redes da Maré).
Protagonistas da sociedade civil, como Eliana Silva, mostraram, no nível de suas comunidades, o que se espera de um líder: conhecimento da vida real, respeito à ciência e comprometimento. Sem eles, a estatística das 100 mil mortes seria ainda mais macabra.
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