Os graves desdobramentos da pandemia no Brasil são frutos de uma metódica construção por ações e omissões
Há cerca de um mês e
meio, este jornal lamentava nesta página o fato de o País ter atingido a marca
de 50 mil mortes por covid-19 (ver editorial Lições de uma tragédia, publicado em
21/6/2020). Pior do que a dor causada por tantas perdas de vidas, histórias e
possibilidades, um prejuízo incalculável para o Brasil, era a constatação, já
àquela altura, de que um novo marco lúgubre era questão de tempo, só não se
sabia quanto. Pois agora passamos das 100 mil mortes ocasionadas pelo novo
coronavírus e, mais uma vez, nada assegura que outras 50 mil vidas, ou mais,
não serão perdidas em um futuro próximo.
Não se trata de um exercício de futurologia macabra, mas sim da
constatação de um fato: os graves desdobramentos da pandemia no Brasil são
frutos de uma metódica construção por ações e omissões. Não há como imaginar
que melhores resultados hão de vir à frente quando comportamentos que os
ensejariam não se mostram presentes, tanto no governo como na sociedade.
Construiu-se essa tragédia porque desde a eclosão da pandemia no
País o presidente Jair Bolsonaro adotou um comportamento aviltante diante da
maior dor sofrida pelos brasileiros em mais de um século. Por tudo o que se viu
e ouviu, infortúnio maior não houve para a Nação do que ter na Presidência um
líder tão incapaz e indiferente em momento tão grave da história nacional. Não
se sabe se Jair Bolsonaro um dia sofrerá sanções políticas ou jurídicas por
seu descaso. Mas ele deveria temer pelo que pode vir a sofrer se acaso
experimentar um despertar de consciência adiante.
Construiu-se essa tragédia porque a todo tempo Bolsonaro se
mostrou preocupado exclusivamente com seus interesses particulares, em especial
seu inoportuno projeto de reeleição, pondo-se a afrontar as orientações das
autoridades sanitárias por temer que reveses econômicos ocasionados por medidas
protetivas, como o isolamento social, pudessem afetar a sua popularidade. Ao
presidente da República cabia coordenar os esforços nacionais para o
enfrentamento da crise.
Construiu-se essa tragédia porque o governo não soube aproveitar a
janela de cerca de um mês para aprender com a experiência de outros países que
já enfrentavam a covid-19 e, assim, preparar o Brasil para o que estava por
vir. O Brasil é referência em planejamento e ação diante de emergências
epidemiológicas, como H1N1, dengue e zica vírus, mas não se coordenou de pronto
todo esse cabedal de conhecimento para preparar o SUS para lidar com a nova
emergência.
Construiu-se essa tragédia porque, pelo mau exemplo dado pelo
chefe do Executivo, milhões de brasileiros se sentiram seguros para furar a
quarentena e provocar aglomerações porque, acreditando nele, não acreditaram na
gravidade da doença ou confiaram no curandeirismo presidencial. O que dizer de
um presidente que demitiu dois ministros da Saúde em meio à pandemia apenas
porque ambos tiveram a ousadia de contrariar suas perigosas posições por
prescrições com argumentos baseados na melhor ciência? O que dizer de um
presidente que anda com uma caixa de cloroquina a tiracolo – medicamento
ineficaz contra a covid-19 – ofertando-a até para uma ema como a panaceia de
todos os males? Jair Bolsonaro pôde contar com o apoio do STF e do Congresso
Nacional para adotar as melhores medidas de combate à pandemia, mas não o fez
por cálculo político, frieza ou birra. Ou tudo isso junto.
Construiu-se essa tragédia porque muitos governadores e prefeitos
sucumbiram às pressões de toda sorte para reabrir o comércio e espaços públicos
antes que houvesse segurança para isso. Uns por negarem a gravidade da
pandemia, como o presidente. Outros pelo receio das implicações eleitorais da
manutenção das restrições.
Por fim, construiu-se essa tragédia porque falta a muitos cidadãos
um espírito de coletividade, o reconhecimento do passado formador comum e a
comunhão de aspirações ao futuro. Com tristeza, viu-se que não raras vezes a
fruição imediata de alguns se sobrepôs ao recolhimento exigido para o bem de
todos. Aí está o resultado.
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