- O Globo
Aras
é procurador particular de Bolsonaro
‘Não me venha satanás
pregando quaresma.’ A reprimenda não foi apresentada por nenhum pastor a alguma
ovelha desgarrada, fez parte da fala de Augusto Aras, procurador-geral da
República, em reunião do Conselho Superior do Ministério Público Federal,
realizada em 31 de julho passado. Sua Excelência denunciou manobras ocultas sob
“covarde anonimato”, aparelhamento da instituição por lideranças
anarcossindicalistas, fake news e mentiras contra si mesmo e sua família,
divulgadas por uma imprensa que “baba”. Numa curva surpreendente de sua
catilinária, permitiu-se invocar verso doce de Mario Quintana: “Eles passarão
(eles quem?), eu (ele mesmo) passarinho”. E terminou proclamando sólidos princípios:
república, democracia, legalidade e moralidade. Feito o que, encerrou a fala e,
no embalo, também a reunião, sem dar voz ao contraditório, esta augusta
tradição jurídica.
A reunião foi mais um episódio da contenda que opõe Aras à Operação Lava-Jato,
coordenada pelo procurador Deltan Dallagnol e cujo mentor, até 2018, era o Juiz
Sergio Moro. Aras, como se disse, é procurador-geral da República, mas é também
procurador particular de Jair Bolsonaro, que o nomeou para o cargo e acena com
uma possível indicação de Sua Excelência para ministro do Supremo Tribunal
Federal.
E o que isso tem a ver com a Operação Lava-Jato? Bolsonaro não se
elegeu, em grande parte, graças ao trabalho da Lava-Jato, que demoliu o sistema
político e suas lideranças, abrindo portas para a candidatura do ex-capitão do
Exército, figurado como outsider? Não foi graças a isso que Moro se tornou
ministro da Justiça? Tudo isso é verdade, ou melhor, foi, pois agora virou
passado. No presente, Moro, demitido do cargo, tornou-se acusador do presidente
e, no futuro próximo, aparece como candidato alternativo a Bolsonaro.
Tornou-se, assim, imperativo para o presidente enfraquecer Moro,
cuja imagem se desgastou com as revelações da Vaza-Jato. Por elas se soube o
que muitos já desconfiavam: Moro-Dallagnol não agiam como procurador e juiz,
porém como justiceiros, coligados, compartilhando ações, avaliações e
investigações. Aras-Bolsonaro querem agora aprofundar o desgaste, levá-lo ao
grau da destruição. E é por isso que os dois querem pôr a mão nos acervos e
arquivos da Lava-Jato. Suspeitam encontrar aí malfeitos e ilegalidades apenas
entrevistos, suspeitados, todavia não comprovados até agora.
Os procuradores da Lava-Jato protestaram. Não querem por nada
deste mundo compartilhar seus arquivos. E invocam os mesmos princípios de Aras:
república, democracia, legalidade e moralidade. O caso subiu ao STF, pois,
neste país, qualquer briga de botequim acaba na mais alta Corte. A velocidade
do julgamento, é claro, depende do botequim e dos envolvidos na briga. Como os
deuses do Olimpo estavam de férias, Dias Toffoli, o presidente, decidiu a favor
de Aras, que, numa conversa com advogados, cobriu a Lava-Jato de críticas,
sendo acusado pelos adversários de ter desconstruído a imagem do MP. A querela
conheceu nova reviravolta, pois, voltando de merecidas férias, o ministro Edson
Fachin, relator do caso, decidiu pelos procuradores e anulou a decisão de
Toffoli.
Essa novela, contudo, está longe do fim. De parte a parte, os
princípios invocados são os mais altos, embora sejam os mais baixos os golpes
trocados por cima e por baixo da mesa e da cintura. Não há dúvida de que todos
os envolvidos são “homens honrados”, como disse Marco Antônio no enterro de
Júlio César. Mas não é possível deixar de perceber uma sensação de que algo, e
algo muito grande, está podre no reino da Dinamarca, para citar mais uma vez o
Bardo.
De sorte que brota uma sensação de descrença entre os que acompanham a discórdia. Estaríamos então num mundo sem esperança? Não há condições de torcer por ninguém neste filme sem mocinhos?
A melhor alternativa é torcer para que a briga continue ainda por um bom tempo. Pois é pelos bate-bocas nas alturas que os cidadãos comuns podem conhecer — e decifrar — os segredos da Casa-Grande.
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