Essa reflexão é institucional e, também,
política. O sistema de governo, o sistema eleitoral e o sistema partidário são
partes solidárias de um todo que, bem além de reproduzir um modelo formal de
democracia representativa tendente à tolerância e à produção de consensos,
pelos freios e contrapesos de poder que o constituem, tem sido, de fato, um
ambiente interativo de negociação política refratário às intenções do autocrata
de forjar sua autocracia, por meio de uma polarização radical. Nossa ordem
política funda-se em boa doutrina e num saldo positivo quanto aos resultados políticos
de suas virtudes e mazelas. As primeiras facilitam que, ao lado desse sistema, atue,
com razoável autonomia, uma sociedade civil cada vez mais vigilante. Soma-se, então,
aos próprios freios e contrapesos formais do sistema, uma opinião pública nada
indulgente com as segundas.
Em artigo atual (“Dribles na tirania” – Revista Veja, edição em circulação), a jornalista Dora Kramer apresentou evidências recentes da dinâmica política que produz o saldo positivo. Elas revelam um padrão de conduta, do Congresso e de partidos em geral, em que, ao lado do sempre lembrado “toma-lá-dá-cá”, vigora um geralmente subestimado “chega pra lá”. Desenham-se, assim - lembra Kramer –, a frustração da manobra golpista da exumação do voto impresso para deslegitimar as eleições, bem como contenções legais , tardias e bem vindas, à militarização desmedida do Poder Executivo e da administração pública e ao uso autoritário da LSN, em si mesma entulho autocrático cujos dias parecem estar contados.
Por outro lado, é por esse mesmo Congresso
– mais exatamente pela Câmara dos Deputados – que tem encontrado passagem uma
boiada reacionária, subversiva de direitos, que emana da agenda do governo. A
operação passa graças a espaços pródigos abertos a partidos e parlamentares
fisiológicos na composição ministerial, sendo dessa mesma natureza a mudança em
curso, nessa composição, cujo sentido é fazer prevalecer, no Senado Federal, a mesma
atitude de prevaricação política. Que é do jogo, não se pode negar. Mas não se
pode deixar de apontar que, nesses casos, os efeitos são nefastos.
O reconhecimento concomitante das virtudes
e das mazelas é indispensável para se avaliar com realismo e a devida
ponderação a presente conduta de diferentes facções da elite política no âmbito
dos partidos e dos poderes Executivo e Legislativo. Os limites que a política
real tem mostrado, no enfrentamento das ameaças à democracia, por omissão ou
por ações na contramão da república, precisam ser investigados e iluminados,
assim como é necessário considerar como ameaças poderiam ter sucesso se
estivesse ausente o muro de contenção que, com seu barro impuro, a política institucional
tem erguido à barbárie.
Essa complexidade exige condução cuidadosa.
Daí precisar ser tratada de modo sério e responsável por quem faz e por quem
toca a agenda de partidos e de poderes da República. É mesmo uma orientação,
digamos, metodológica inescapável da ordem do dia de atores institucionalmente
poderosos. Frequentemente a afinação dos instrumentos da orquestra sistêmica
soa mal aos ouvidos de uma sociedade que não tem gosto pela partitura da
política. Gera-se um contencioso entre estado e sociedade que, se não se
contiver em limites razoáveis, por ambas as partes, compromete pacto e consensos
que são necessários, entre elas, para defender a república e a democracia dos
inimigos comuns.
Veja-se, por exemplo, a questão do fundo
financiador da atividade eleitoral dos partidos. Essa questão é mais complexa e delicada do
que parece. A opinião pública reage a todo dispêndio público com partidos e eleições.
Mas não podemos esquecer que desde 2018 proibiu-se o financiamento empresarial
e por demais pessoas jurídicas, por conta do clima de escândalo reinante sob a
operação Lava-Jato. De fato, o financiamento empresarial gerava custos de campanha
absurdos e elitizavam a representação. Era preciso conter a farra, parteira de
uma promiscuidade entre setor público e empresas privadas. Mas se o STF foi
aplaudido quando resolveu dar freio radical naquilo (poderia ter havido fixação
de limites, mas sob pressão do clima de faxina, optou-se pela proibição) de
algum lugar haverá de sair o dinheiro. Para haver competição democrática não
apenas é necessário, mas também desejável, que advenha de recursos públicos. Senão,
será candidato com chance real de competir apenas quem tiver recursos próprios
para financiar sua campanha, ou – ao se vedar também, ou limitar fortemente, o
uso desse tipo de recurso - quem possa dispor de apoiadores individuais
abastados, ou quem já tenha mandato e, através dele, acesso privilegiado a
meios de comunicação. Seria uma oligarquização ainda maior do que aquela, propiciada
pelo financiamento empresarial. Portanto,
é preciso ter como premissa que o fundo público para financiar eleições via partidos
não tem nada de espúrio. É legitimo, necessário, democrático, o que se pode e
deve discutir é seu montante.
Chega-se aí a outro ponto: é intuitivo e,
também, induzido pela experiência da sociedade brasileira em lidar com a ambição
e ousadia de interesses corporativos (inclusive, mas não apenas, de agentes
estatais e da elite política), que o montante previsto é exagerado. Isso tem de
ser avaliado e comprovado com critérios objetivos e comparativos com a eleição
de 2018, que foi a mais recente eleição do porte da próxima, que envolverá
Presidência da República, Senado, Câmara dos Deputados, governos estaduais e
assembleias legislativas. É razoável tomar aquela eleição como parâmetro e fazer
naquele valor correções mínimas, tendo em conta o contexto crítico que se
atravessa. Mas não é razoável dizer que o fundo é ilegítimo, nem que deva ser
depreciado, pois é do financiamento da democracia que se trata. De uma democracia
ameaçada, sob fogo cerrado. Se a sociedade não quiser financiar eleições e o
setor privado está proibido de fazê-lo legalmente, o dinheiro virá de alguma
fonte do submundo. O preço a pagar será maior.
Em resumo: democracia não sai grátis, nem
barato. Ela é vital para tudo o mais e o discurso de opor gastos com eleições a,
por exemplo, com o auxílio emergencial é de um populismo politicamente esperto,
porém, raso e vizinho da demagogia. As duas coisas são essenciais nesse momento.
O que falta para o auxílio emergencial e outras políticas sociais inadiáveis precisa
ser buscado em rubricas que alimentam posições plutocráticas e não nas que
financiam a democracia, desde que estejam razoavelmente dimensionadas.
Enquanto os olhares da sociedade são
desfocados para uma cruzada contra o fundo de financiamento das eleições, nova
boiada – essa sim, espúria - está prestes a passar no Congresso sem que até
mesmo os canais de comunicação estejam lhe dando o merecido destaque. Políticos
individuais (negam-se como elite política pela simples razão de que operam para
destruí-la) sem outro mister senão a contemplação grosseira e politicamente malsã
do auto-interesse, organizam-se para liquidar, de um só golpe, o sistema
eleitoral e o sistema partidário, através de o chamado “distritão”, pelo qual
se consagra o candidato de si mesmo, mandando às favas o sentido institucional
da política.
Os pormenores desse projeto e seus
previsíveis efeitos requerem nova coluna.
Mas o mais evidente deles será imediato (os de longo prazo ainda são
incomensuráveis) Anulará, na prática, os efeitos do fim das coligações
partidárias em eleições proporcionais (para deputados e vereadores), a melhor
medida de reforma política que o Congresso anterior aprovou, em 2017. Em vez de
fortalecer os partidos e dar consistência maior ao sistema partidário –
possibilidades que não são quimeras, como mostraram os resultados eleitorais de
2020, já sob efeito da reforma anterior - a destruição institucional de agora, autonomeada
de reforma, pode converter os partidos em entidades fantasma e revogar qualquer
traço de sistema partidário digno desse nome, no Brasil.
A aprovação dessa matéria, tida como
provável, dá uma medida das sequelas da eleição de 2018, do retrocesso político
que o seu resultado causou, ao alterar de modo radical a composição das Casas
legislativas entronizando ali contingentes expressivos de pregadores e
praticantes de antipolítica. Convém recordar que o Congresso anterior recebeu
as críticas moralistas de sempre, de ter aprovado a reforma de 2017
exclusivamente movido pelo interesse de reeleição dos então parlamentares. Essa
obviedade foi guindada à condição de descoberta e assim denunciada, sem se
considerar que, naquele momento, auto-interesse e aperfeiçoamento do sistema estavam
sendo, simultaneamente, contemplados.
Mas havia uma cobrança de dimensão
eleitoralmente relevante por parte de um sentimento público, alimentado por uma
direita voluntarista, que clamava por "renovação", eufemismo que
traduzia o desejo de exterminar a classe política, suposta responsável pelas
mazelas da hora e pelas de sempre. A força desse senso comum de inspiração
demagógica cegava a maioria das análises para os fatores institucionais e a
isso se somava o ressentimento da esquerda para com o então Congresso, que
havia votado o impeachment de Dilma Rousseff. Então, tome pedras, vindas de todos os lados.
Mas, na verdade, aquela reforma preservava e aperfeiçoava o sistema no mérito e
no modo incremental que, há anos, vinham sendo cobrados pelas mesmas
consciências críticas que seguiam, naquele contexto perigoso, apontando o dedo
acusador para o "corporativismo" de uma elite parlamentar que apenas
lutava para não ser varrida do mapa, a jatos de demagogia. Aí está agora, para
que comparemos com a reforma de 2017, essa mixórdia do distritão, que reforçará,
exponencialmente, tudo contra o que se batia a lógica da faxina. Se passar, será a mais nova cria com digitais
e DNA da "nova política" vencedora em 2018.
O sistema político brasileiro - em sua
ambiguidade tradutora da ambiguidade da própria política que processa - tem
diante de si duas possibilidades de afirmação permitidas pela pauta atual do
Congresso. A de revisar, sem capitular, os termos em que está posto o fundo
eleitoral e a de se recusar a cometer, com o distritão, um haraquiri político
num instante em que a democracia da Carta de 88 precisa que seu hardware
político sobreviva íntegro a essa crise, para retomar, com reformulações
incrementais típicas de democracia em modo gerúndio, a trajetória ascendente e
socialmente inclusiva de suas duas primeiras décadas.
*Cientista político
e professor da UFBa.
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