O Globo
O agressor da democracia não vai parar. É
como o agressor da mulher que, após perdoado, volta a atacar e muitas vezes o
fim é a morte da vítima. Quem me fez esse raciocínio foi uma autoridade da
República. Todos os dias a democracia apanha do presidente Jair Bolsonaro. Os
generais e os civis que o cercam reforçam suas atitudes ou tentam justificá-lo.
Essa violência só vai parar no fim deste governo, mas deixará cicatrizes.
Quando as instituições estão funcionando, ninguém precisa dizer em notas e
declarações.
— O presidente fala uma coisa e na hora que
aperta ele recua, igualzinho ao homem que agride mulher. O agressor recua,
garante que a ama, algumas pessoas asseguram que ele vai mudar e a violência
cresce. Um dia ele chegará com um revólver e vai matar a mulher. É dessa
certeza que surgiu a Lei Maria da Penha — explicou a pessoa com quem eu
conversei sobre as crescentes ameaças do presidente e dos generais que o
seguem, da reserva ou da ativa, nessa mesma lógica de agredir e negar que
agrediu, prenunciando outro ato que seja ainda mais forte.
Nesse último episódio, revelado pelo “Estadão”, o ministro da Defesa, Braga Netto, enviou um recado ao presidente da Câmara, Arthur Lira, com o seguinte teor: “a quem interessar, se não tiver eleição auditável não terá eleição.” Foi dentro de uma escalada de agressões. Tudo se passou entre os dias 7 e 8 de julho. A nota do ministro da Defesa e dos comandantes militares tentando coagir a CPI do Senado foi no dia 7. No dia 8, Bolsonaro afirmou que ou vai ter o voto impresso ou não vai ter eleição, o general Braga Netto mandou o mesmo recado golpista, e o comandante da Força Aérea deu uma entrevista ao GLOBO elevando o tom da ameaça contida na nota, sendo em seguida apoiado pelo comandante da Marinha. O atentado foi combinado. Eram instituições funcionando. Com o objetivo de destruir a democracia.
O roteiro que se seguiu era previsível.
Vieram os desmentidos com palavras ambíguas, as afirmações de que a democracia
vai bem, e novo ataque do presidente. A nota de Braga Netto repetiu a
ingerência em assuntos sobre os quais as Forças Armadas não têm que se
pronunciar, ao defender o voto impresso que eles apelidaram de “auditável”. A
quem disse que o ministro da Defesa estava invadindo a esfera política,
Bolsonaro respondeu. “Quando vejo algumas autoridades tuitarem que isso é uma
questão política, que certas pessoas não devem se meter nisso, quero dizer a
vocês que isso é uma questão de segurança nacional. Eleições são uma questão de
segurança nacional”, disse o presidente fechando aquele dia de debate sobre o
recado do general. Isso autoriza as intervenções militares no tema que o
presidente elegeu como pretexto. Todo golpe autoritário inventa seu pretexto.
Esse é o de Bolsonaro. O de Donald Trump foram as acusações mentirosas de fraude.
Ao fim, os trumpistas invadiram o Capitólio.
O agressor da democracia brasileira
instalou cúmplices em postos estratégicos. Braga Netto é da reserva, mas a
carreira militar é usada para ele sempre falar escudado nas Forças Armadas. Os
atuais comandantes assumiram com o mandato de mostrar que os militares defendem
o projeto político de Bolsonaro. Foram escolhidos para apoiar o agressor. O
general Luiz Eduardo Ramos quando foi para o governo era da ativa e estava no
comando do II Exército. Ele fez parte do canal dessa bolsonarização dos
militares. O Almirante Flavio Rocha, da SAE, está ainda na ativa. O projeto é
deixar sempre a impressão de que as Forças Armadas vão agir para proteger
Bolsonaro.
O procurador-geral da República, Augusto
Aras, e seus auxiliares diretos agiram várias vezes de forma contrária ao papel
constitucional da PGR. O ministro André Mendonça teve atitudes e defendeu teses
que feriam a Constituição. A Polícia Federal colocou seus documentos sob sigilo
quando a publicidade tem que ser a regra numa República. Aras foi reconduzido,
Mendonça foi indicado para a corte constitucional, um delegado da Polícia
Federal é o ministro da Justiça. As agressões à democracia deixam cicatrizes.
Algumas delas podem ser permanentes.
A democracia está sendo agredida. O
agressor é o presidente da República. Ele tem ajudantes militares e civis. O
maior risco é não ver o perigo, porque, como nos casos de violência contra a
mulher, o fim pode ser a morte.
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