O Globo
Millôr Fernandes tinha uma boa frase para
ilustrar os perigos do otimismo em excesso. Para ele, o otimista era o sujeito
que se atirava do décimo andar e, ao passar pelo oitavo, comemorava: “Até aqui,
tudo bem!”. A imagem parece descrever os brasileiros que não veem ou fingem não
ver as ameaças de golpe contra a democracia.
Há duas semanas, Jair Bolsonaro deu um
ultimato: ou o Congresso ressuscita o voto impresso ou “corremos o risco de não
ter eleição no ano que vem”. A chantagem foi tratada com condescendência. Em
vez de ser processado por crime de responsabilidade, o capitão foi convidado
para um cafezinho no Supremo.
Nesta quinta, o jornal O Estado de S. Paulo
informou que o ministro da Defesa aderiu ao complô para tumultuar a sucessão
presidencial. Braga Netto mandou dizer ao presidente da Câmara, Arthur Lira,
que só haverá eleição com as regras impostas pelo governo. Usou o coturno de
general para intimidar o poder civil.
Seguiram-se negativas pouco convincentes. O
deputado Lira desconversou sobre o assunto. “A despeito do que sai ou não sai
na imprensa”, disse, vamos todos à urnas em 2022. O general bolsonarista optou
pelo cinismo. Tentou desqualificar a reportagem, mas reforçou, em papel
timbrado, a pressão indevida pelo voto impresso.
O presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Luís Roberto Barroso, limitou sua reação a um tuíte. Disse que conversou com os envolvidos, e os dois “desmentiram, enfaticamente, qualquer episódio de ameaça às eleições”. O ministro acrescentou que o país tem “instituições funcionando”. Lembrou o otimista de Millôr antes de se esborrachar na calçada.
Desde que assumiu a chefia do Executivo,
Bolsonaro submete os outros Poderes a uma rotina de intimidações e chantagens.
Até aqui, a tática tem funcionado. O Supremo impede o avanço das investigações
sobre o primeiro-filho, acusado de desviar verba de gabinete. A Câmara não toca
na pilha de pedidos de impeachment do presidente, recordista de crimes de
responsabilidade. Agora a impunidade se estende a Braga Netto, que se comporta
como chefe de guarda pretoriana.
O general é reincidente em ameaças
golpistas. Há pouco mais de duas semanas, atacou o presidente da CPI da Covid,
Omar Aziz. Queria interromper as investigações sobre corrupção na compra de
vacinas, que atingem militares aboletados no Ministério da Saúde. Em nota
assinada com os comandantes das três armas, o ministro insinuou uma quartelada
contra o Senado. Como o arreganho não foi punido, ele se sentiu à vontade para
repetir a dose.
Num país com instituições funcionando, militar não intimida o Congresso e não opina sobre o sistema eleitoral. Na hipótese mais branda, quem age dessa forma é afastado do cargo que ocupa. No Brasil de 2021, general que afronta a Constituição só corre o risco de ser promovido. E os otimistas continuam a repetir que tudo está sob controle — pelo menos até a próxima ameaça de ruptura.
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