O Globo
Usar os juros contra surtos inflacionários
é um remédio socialmente amargo. Mas, como os mais pobres não têm como se
proteger da corrosão da inflação, o resultado pode ser positivo socialmente se
o remédio for eficaz e rápido, se a desigualdade for baixa e se existir um
sistema de proteção social. Não é o caso no mundo, muito menos no Brasil.
Primeiro, surto inflacionário é
principalmente fruto de choques de oferta. Portanto o remédio pode exigir uma
profunda retração de demanda, da produção e do emprego. Segundo, nas últimas
três décadas, mesmo nos países ricos, os mecanismos de proteção social foram
dilapidados, e a iniquidade aumentou de forma assustadora. O quadro hoje é
dramático: segundo a Oxfam, os dez homens mais ricos do mundo têm hoje seis vezes
mais riqueza do que os 3,1 bilhões mais pobres. Enquanto isso, nos Estados
Unidos, a maior economia do mundo, mais de 60% da população não pode pagar suas
contas se não receber um mês de salário.
No Brasil, a situação é ainda mais grave. De acordo com o Relatório Global de Desigualdade, 10% dos mais ricos detêm 80% da riqueza total, 1% detém quase 50% (!), e 50% da população possui mero 1%. Vinte milhões passam fome diariamente. Pouquíssimos podemos poupar, e parte significativa das poupanças vai para a dívida pública. Como demonstra o próprio Tesouro Nacional no seu Relatório Mensal da Dívida Federal, cerca de 30% são propriedade de instituições financeiras, e quase 60% são intermediadas por elas. Não por outra razão, os bancos tiveram, como indicado em notícia recente, lucros recordes (R$ 81,6 bilhões) em 2021.
E a democracia com isso? É conhecida a
relação entre desigualdade, desalento e surgimento de movimentos contra as
democracias. O “fenômeno Trump” foi em grande medida resultado do empobrecimento
da classe média americana. A relação também se aplica às eleições na França,
como demonstra interessantíssima entrevista de Pedro Doria com o cientista
político Miguel Lago. Como lembra o entrevistado, num ano em que a França passa
a liderar a União Europeia, a ascensão da ultradireita ameaça a própria
estabilidade do projeto liberal do continente.
Com isso, voltamos ao Brasil. Como
indicamos, a atual inflação no país, assim como noutras partes do mundo, advém
de uma trágica coincidência de entraves da cadeia da produção mundial, causados
ainda pela pandemia, e do choque dos preços de energia e commodities, devido,
direta ou indiretamente, ao covarde ataque russo à Ucrânia. Uma elevação da
Selic para dois dígitos poderá jogar o desemprego para além dos atuais 12
milhões. Pode também restringir o consumo, num país em que quase 100 milhões
vivem o desespero da insegurança alimentar. E deverá aumentar o rendimento para
os ricos, que parecem, a olho nu, ostensivamente mais ricos. Tudo isso é um
solo fértil para políticos que vendem a rejeição da política e, em última
instância, da própria democracia como forma de solução de problemas coletivos.
Se minha análise estiver correta, a
austeridade monetária não é só um remédio amargo; é ineficaz, concentradora de
renda e politicamente irresponsável. Para os economistas que a defendem, é
tristemente uma demonstração de pouca empatia ou de nenhuma criatividade — ou
de ambos. Se nos anos 1990 foi imprescindível que pensássemos “fora da caixa”
para enfrentar a hiperinflação inercial, fazê-lo de novo poderá ser a única
forma de ajudarmos a salvar a democracia de uma morte súbita.
*Economista, é associado sênior no Centro de
Economia Política do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) e
conselheiro do Centro Brasil no Clima
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