O Estado de S. Paulo
Do ponto de vista estritamente político, é bem
menos perceptível a diminuição da interdependência entre povos e nações.
Vozes econômicas influentes informam que a
globalização, tal como a conhecemos desde o fim do bloco soviético, tem os dias
contados. O colapso financeiro de 2008, a pandemia e, por último, a invasão da
Ucrânia teriam fraturado a articulação dos mercados e causado a crise da
segunda grande onda globalizante, assim como a Guerra de 1914 teria encerrado a
primeira. A discussão econômica está em aberto, naturalmente, ainda que, do
ponto de vista estritamente político, seja bem menos perceptível a diminuição
da interdependência entre povos e nações.
Na política, tudo continua a se relacionar tanto quanto antes – ou talvez mais. O fracasso eleitoral da oposição unificada na Hungria, caso paradigmático de “democracia iliberal”, reverbera como advertência para nós, tão distantes daquele singularíssimo país. As eleições francesas colocam novamente em confronto, repetindo o cenário de 2017, o centro liberal-democrático de Macron e a extrema-direita de Le Pen. E nem é bom imaginar o efeito de eventual mudança de rumos na política francesa, que corroeria a unificação europeia e sinalizaria o revigoramento da “Internacional de nacionalismos”, um dos muitos oxímoros que nos atormentam nestes tempos confusos.
Os nacionalismos em questão articulam-se em
rede, trocam experiências, auxiliam-se mutuamente sem constrangimento. Não se
limitam a proclamar, fechados em si mesmos, que cada uma das respectivas nações
de referência deve vir “em primeiro lugar” ou “acima de tudo” – e acompanhada
por alguma versão pré-moderna de um Deus “acima de todos”.
A inter-relação tem se imposto desde os
triunfos inaugurais do moderno nacional-populismo com o Brexit e a eleição de
Donald Trump. O fluxo planejado de desinformação, possivelmente gestado ainda
na era soviética, esteve presente nestes dois acontecimentos e em muitos
outros, acirrando ressentimentos e explorando situações inéditas, como a
fragmentação das velhas classes sociais e a emergência de uma “sociedade dos
indivíduos”, na expressão de Pierre Rosanvallon. Nada faz supor que tal fluxo
se detenha em eleições futuras, inclusive na brasileira, e só este fato deveria
servir como segunda e poderosa advertência.
Nunca é muito claro o exato momento em que
uma “democracia iliberal” se despe de ornamentos e assume as feições de uma
autocracia ou, para usar linguagem mais direta, de uma ditadura. E nem sempre
lhe será possível, adequado ou conveniente apresentar-se como tal. O fato é que
os nativistas aprenderam, ao menos em parte, a lição da hegemonia, empregando
recursos que permitem dar uma orientação a amplos setores desnorteados com a
velocidade das transformações em curso.
O nacionalismo autoritário sempre provê uma
comunidade ilusória, permanentemente mobilizada contra os mais fracos e os
“diferentes”. Às vésperas do fascismo clássico, há pouco mais de cem anos,
espalhava-se a fantasia da “nação proletária” injustamente explorada pelas
demais. Enquanto lutava pela sua parte no butim colonial, tal nação devia
unir-se compactamente, calando as discrepâncias internas mediante a fruição do
trabalho dos “povos inferiores”. Hoje, o populismo recorre demagogicamente a
uma suposta defesa dos “perdedores da globalização”, investindo contra os
imigrantes e tentando herdar os eleitores da esquerda clássica. O que não muda,
em circunstâncias tão distintas, são o culto do homem providencial (Marine Le
Pen é, aqui, uma exceção) e a consequente compressão da vida democrática.
Esta compressão apresenta-se com toda a
nitidez no exemplo-limite da Rússia de Vladimir Putin, na qual o Estado aparece
quase inteiramente como pura força. O plurissecular passado despótico – seja o
dos czares, seja o do comunismo stalinista – constitui o repertório no qual se
buscam as razões últimas do poder autocrático. A bem da verdade, o bolchevismo
original é alvo da ideologia eslavófila de Putin, pois nele ainda pulsa uma
ligação com o Iluminismo e a cultura ocidental, não obstante o radicalismo
jacobino que o levaria à perdição. Internamente, por isso, o Estado de Putin se
apoia no controle repressivo da sociedade civil; externamente, na guerra, em
particular nas suas modalidades mais destrutivas, o que vemos a cada dia, com
horror, na agressão à Ucrânia.
Recorrendo à lição hegemônica ou valendo-se
da força, ou, ainda, empregando uma mistura de ambas, o nacionalismo populista
é a grande ameaça atual à comunidade das nações democráticas. A estas últimas,
também abaladas em seu interior por forças e personalidades autoritárias, não
convém ostentar nenhum tipo de húbris ou vocação missionária. Elas podem
regredir pavorosamente, bastando lembrar o assalto ao Capitólio e o mau exemplo
semeado. Como indivíduos, para seguir viagem em meio às ondas tempestuosas da
unificação do gênero humano, temos à disposição o cultivo do “instinto de
nacionalidade”, na forma de lealdade à Constituição, e o aprofundamento da
condição de cidadãos do mundo, envolvidos inexoravelmente em cada avanço e em
cada recuo das nossas sociedades.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das Obras de Gramsci no Brasil
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