Se o assunto é a próxima eleição
presidencial, são evidentes algumas aplicações práticas dessas afirmações
gerais, quando as relacionamos ao cenário visto neste momento eleitoral, cada
vez menos “pre”, que se vive no Brasil. O fato razoavelmente demonstrado é que
são muito pequenas as chances de se firmar candidatura competitiva alternativa
ao embate entre Bolsonaro e Lula. Esse é o principal fato, Sua Excelência, com
a qual análises realistas não podem brigar. É ele também o fato auspicioso que
políticas realistas dos dois polos do embate factual devem celebrar, conservar
e cultivar, com zelo reverencial, como têm feito os realismos simetricamente
opostos de Lula e Bolsonaro. E é ele o fato que uma política realista
adversária desses dois atuais polos, se não pode ignorar, também não pode
tratar como uma excelência. Se assim o fizer, deixará de ser política realista
por renunciar à política. Partidos vocacionados para a mediação e não para a
intensificação de conflitos ocupam um dado lugar no espaço político, seja ele
nomeado de centro democrático ou atenda a outra denominação que esses atores
adotem ou que recebam de analistas ou adversários. Eles podem, claro, dar uso
mais ou menos eficaz a esse espaço. Mas o realismo político, nesse caso, manda
que se agreguem num campo político e tratem o fato, já demonstrado, da
polarização que os exclui como uma excrescência a remover.
Creio não ser preciso detalhar aqui a excrescência apontada pelo metro do centro político. Do ponto de vista de quem nele se situa, ou de quem o valoriza, os riscos que a democracia brasileira corre hoje são excessivos, antes de mais nada, por serem desnecessários, pois existe uma preferência majoritária pela democracia, nas elites políticas e também no eleitorado. Porém, como largamente sabido, nesse último a preferência democrática é pouco intensa, instável, podendo tornar-se fluida por antigas e várias razões. No centro do problema (ou no problema do centro) estão desigualdades que levam outros temas a se mostrarem emergenciais para amplas parcelas do eleitorado, negando ao da democracia política e suas instituições a prioridade desejada pela camada democraticamente politizada desse mesmo eleitorado. Por outro lado, no plano das elites políticas e seus vários partidos, a competição eleitoral em cenário de desigualdades críticas atua no sentido de rebaixar ali também a intensidade da preferência democrática de modo a ajustar sua postura à do eleitorado que pretende representar.
Essa “moléstia” populista ataca mais, como
também sabemos, as extremidades do espectro político, já que o que se chama de
“centro” encontra na tradição liberal um antídoto razoável, embora não
infalível. Esse denominado centro não é o “centrão”, no qual o populismo
presente maneja a ferramenta da pequena política para a conciliação, não para a
polarização. Faz isso, no momento, para conciliar com Bolsonaro, a
extrema-direita antipolítica que só recentemente adquiriu uma representação
política. Esse campo está fora do tema desse artigo. Os adversários de
populismos, na atual conjuntura eleitoral, estão numa das bandas da oposição,
aquela que se autodenomina centro democrático.
Na esquerda, o populismo, como iliberalismo
atenuado, voltou a ser, como há mais de meio século, a gramática predominante,
em combinação com a democracia representativa. Combinação tensa, problemática,
que distorce o rito republicano, instrumentaliza regras democráticas formais e
prejudica a qualidade da representação, sem chegar a negá-la. Na direita a
moléstia tornou-se, em grau inédito no Brasil, extremamente maligna para a
democracia, porque as inclinações iliberais e mesmo autoritárias de
conservadores cederam protagonismo a um extremista. Por isso, a polarização
atual é, do ponto de vista do que se supõe ser “centro”, uma excrescência a
remover.
Há interesses demais, concertações de
menos; confrontos demais, tolerância de menos; aventuras demais, interações de
menos; performances pessoais demais, estratégias coletivas de menos. Portanto,
a polarização binária, da qual emana a força de gravidade que fragmenta o
centro, não é o único fato demonstrável na atual configuração da política.
Também é fato que da exaustão decorre a necessidade difusa e “orgânica” de
continuidade de um mundo em comum, o que exige remover o que sobra e
providenciar o que falta para se ter expectativa de vida democrática, uma vida,
como sempre, nada fácil. Esta é a razão para uma política realista, adversária
dos polos, propor mudança no andar da carruagem.
Nada disso é jabuticaba brasileira. Com a
recíproca consideração de particularidades nacionais, eis que vemos, também na
França, por exemplo, as duas faces da nova moeda política que tem circulado nas
democracias. A extrema direita, com Le Pen, tenta se vender menos extrema ao
incorporar ao seu eleitorado o dos conservadores de tradição republicana; e a
esquerda neonacionalista de Mélenchon conserva pontes com o da centro-esquerda
clássica como quem faz uma incorporação de espólio. Nesse ponto cardeal, nem um
voto em Le Pen - e vice-versa. Mas em ambos os pontos o mesmo propósito, com
diversidade de métodos, de derrotar pensamento e instituições globalistas e
liberal-democráticas. No Brasil, como na França, o globalismo
liberal-democrático tem sotaque político de centro-direita, justamente porque é
da extrema-direita que vem o maior perigo para a ordem mundial que esse centro
defende. É preciso disputar eleitorado com ela. Ao contrário do que pensa o
provincianismo atávico de liberais brasileiros, de novo não há jabuticaba a
oferecer. Contraste político, nesse ponto, entre Brasil e França, é que lá
adversários dos pontos cardeais governam. É centro cardeal, enquanto aqui é
marginal.
No Brasil é óbvia a urgência de uma
candidatura que possa dividir o eleitorado conservador e tirá-lo, ao menos em
parte, do colo do chefe protofascista. O pessimismo da razão já mostra um sinal
laranja, indo
para vermelho, confirmador do apocalipse
que o mito das motociatas quis anunciar na sexta santa. Da trincheira do PT e
de Lula não sairá, neste momento, ao que parece, um coelhinho de Páscoa. Quem quiser
buscar um Aleluia terá que ser em outro lugar, mesmo que seja uma mal traçada
linha que possa abrir, adiante, conversa com a autarquia petista para o segundo
turno.
Tebet ou nada: o realismo da política do
centro e seu feixe de problemas miúdos
Derradeiras doses de vontade política
autônoma que restam aos partidos do chamado centro democrático precisam ser
aplicadas já, para que a razão não lhes sirva de autoflagelo. No limite de suas
hoje modestas possibilidades, o inesperado que ainda pode fazer surpresa
chama-se Simone Tebet. Há gente nada delirante no seu partido querendo bancar
essa candidatura, se houver parceiros.
A aglutinação da chamada terceira via, sem
a qual não haverá frente alguma em 2022, não pode se dar com uma candidatura
com discurso rigorosamente “de centro”. Como assinalou Antônio Lavareda, terá
que focar no eleitorado de direita para tirá-lo de Bolsonaro ou para impedir
que volte a ele. A crítica forte aos governos do PT e ao atual discurso sem
nuances de Lula - que resgata o passado de modo a não se distinguir sequer do
que era a pauta de Dilma Rousseff - é imprescindível para aqueles partidos. O
subtexto da campanha, se ela houver, terá que ser "sou melhor que
Bolsonaro para derrotar Lula".
Isso não impede elevar o nível do debate
centrista. De fato, permite realizá-lo. Essa possível candidatura só ganhará
corpo se cobrir o vácuo decorrente da incapacidade de hegemonia do PT fora da
esquerda, onde só tem diálogo no plano da política miúda. Na medida em que uma
candidatura com esse perfil de centro-direita ganhe musculatura eleitoral e
programática razoável é que os partidos do centro podem pensar em obter alguma
inflexão no discurso do próprio Lula. Então, polemizar com Lula hoje, sobre
política econômica, política social, política externa e ambiental, entre outros
temas, não é descartar Lula como aliado no segundo turno, mas precisamente o
contrário. O êxito dessa candidatura, por maior ou mais relativo que seja, não
tende a resolver o problema de quem hoje admite votar em Lula, ou mesmo em Ciro
Gomes. Isso poderá ocorrer ou não e se ocorrer entregará mais que a encomenda.
A campanha pode ser tão liberal ou conservadora que não mude esses votos. Mas
estará tudo certo se cumprir o seu papel de não deixar Bolsonaro ser a única
opção do eleitorado antipetista, que é enorme e, em parte, coloca essa rejeição
acima da fidelidade à democracia. Precisaremos desse eleitorado se quisermos
impedir a reeleição. Ele jamais votará em Lula no primeiro turno e muito
dificilmente votará em Ciro. E é preciso, antes de tudo, criar uma ponte com
esse eleitorado para que ele não respalde Bolsonaro no questionamento do
resultado. Essa ponte, a essa altura, será Simone Tebet ou será nenhuma.
O MDB está mostrando entender isso, assim
como mostra entender, de modo realista, que não tem mais chances de disputar
protagonismo no Congresso com os vitaminados partidos do centrão. Se quiser
influir terá que buscar algum capital político na campanha presidencial. Essa
percepção realista do seu partido permitiu a Tebet desativar com serenidade, na
semana passada, um artefato de efeito moral que dois ex-caciques - hoje quase
completamente restritos a seus cercados estaduais – jogaram, em jogo combinado
com Lula, contra a candidatura da senadora. Tolerantemente refratados por ela e
pela cúpula nacional do partido que gerencia o fundo partidário, agregando
outros cercados estaduais maiores, esses pretéritos mandachuvas migram de
virtuais obstáculos para operadores paralelos, sem que se descarte virem a ser
pais pródigos de volta, a depender do andamento da campanha.
Fortalecida partidariamente no limite do
possível, também dentro desse limite Simone Tebet, tendo ao lado Baleia Rossi e
Michel Temer, movimenta-se, ao que interpreto, para oferecer-se ao PSDB como
saída honrosa da enrascada adicional em que esse partido se meteu pelo
contencioso interno resultante de prévias mal vencidas e mal assimiladas pelo
perdedor. Parece fazê-lo pelo caminho institucionalmente mais reto de entender
que não haverá saída honrosa para o partido-parceiro se quem se candidata a
liderar o bloco não esperar que a primeira saída honrosa seja oferecida ao
pré-candidato vencedor das prévias e aceita por ele, a quem deve caber, contra
todos os prognósticos, o gesto largo de fazer o acordo. Dória é o oficial com
quem o MDB e sua candidata devem se entender a sério, sendo seu rival um
soldado da frente, nas palavras da própria Tebet. Com essas palavras tenta
dissipar um problema do vizinho, antes que o problema se torne uma interdição,
até pela judicialização. Nada do que aqui cogito é certo, sequer provável. Mas
é um modo de preservar um dos diferenciais que contam a favor de Simone: a de
ser até aqui o único nome do que se chamou de terceira via que flui sem maiores
embaraços nas suas diversas pistas. É racional que se conduza de modo assertivo
e prudente.
Na contramão dessa possível conduta, há
várias aparências de condutas alopradas. Ainda mais gasolina entrou no tanque
afogueado dos tucanos depois da conversa do presidente do partido com
empresários, em que se portou como incinerador e não coordenador da campanha de
Dória. Tenha sido flagrante ou vazamento voluntário, já teve o óbvio
desdobramento com sua substituição no posto de coordenador. Há quem aposte que
isso levará a maior isolamento de Dória e provavelmente estará certo. Daí a
deduzir que Leite ganha força vai grande distância. O que parece mais certo é,
em primeiro lugar, que o PSDB precisa chegar a um acordo interno para que, além
de perder o governo de São Paulo, não seja dizimado nas eleições parlamentares.
Segundo, que a candidatura de Simone Tebet promete ser um dos pilares para
qualquer acordo e que ela trabalha nessa direção. Falta, obviamente,
entender-se bem com Aécio Neves, que é a escada em que a opção por Eduardo
Leite ainda se sustenta. Muitas deduções são feitas sobre aquele, desde que
renunciou prodigamente à imagem de centro-esquerda que construiu no segundo
turno das eleições de 2014 e desde que a Lava-Jato o alvejou, pouco importando
a reviravolta processual recente. Se Tebet se orientar por esse senso comum
perderá a viagem ao PSDB; se Aécio não entender que a hora é de Tebet ou nada,
perderá o chão partidário que ainda possui.
Capítulo à parte é o fator Bivar, no União
Brasil. Problema relevante a resolver para que os partidos do centro encontrem
um vice de melhor qualidade e ao mesmo tempo capaz de ajudar Simone a flutuar
também sobre o eleitorado de centro-esquerda. Conseguir que o PSDB entre em
acordo e escolha um nome que represente esse acordo é conseguir um bom
argumento de composição de chapa e não faltará no União Brasil quem esteja
disposto a aceitar esse argumento para que o partido possa empregar todos os
seus esforços e recursos na conquista de governos estaduais e no aumento de sua
bancada na Câmara. Dos 4 partidos envolvidos é o único capaz de fazer cócegas
nos do Centrão, no futuro Congresso, o que pode se converter em importante
fator de estabilidade de um virtual governo Lula se Sua Excelência, o fato da
polarização atual se confirmar e se revelar auspicioso para ele. União Brasil e
PSD são as boias alternativas que se insinuam. É questão de tempo o PSD quebrar
seu atual silêncio que sucedeu a recentes insucessos de suas táticas
pré-eleitorais. Suponho que o radar de Tebet está ligado.
Deixei de falar do Cidadania por ele não se
mostrar um problema entre os muitos que se apresentam à concretização da mais
que possível candidatura de Tebet. Deixa de ser problema não por sua menor
relevância eleitoral, mas pela relevância do papel político que sua liderança
pode cumprir nessa frente. Nessa direção, Roberto Freire tem cumprido um papel
animador positivo. Ele é o presidente de partido que mais está apostando nessa
frente para valer. Os demais estão muito pressionados por problemas internos e,
cada qual à sua maneira própria, não têm demonstrado possuir, simultaneamente,
descortínio político, capacidade de liderança e confiabilidade suficientes.
Precisarão ser pressionados também por um movimento de fora para dentro desses
partidos. A sociedade civil tem uma parte a cumprir na concretização dessa
alternativa política, não só a parte dela que se identifica com as posições “de
centro”, como toda ela, na medida em que compreenda a importância dessa
alterativa para esvaziar o reservatório de votos em Bolsonaro, a mais perigosa sombra
que se levanta hoje sobre a democracia brasileira. Essa sombra e a do golpismo
bolsonarista, fazem essa não ser uma eleição trivial.
Ninguém pode ser dispensado, nem
superestimado. Essa é a senha da energia possível à política do autodenominado
centro democrático, a senha da política miúda que precisa trabalhar agora, a
toque de caixa, para correr contra o prejuízo do tempo perdido e antecipar o
mais possível o acesso de Simone Tebet ao ambiente onde guerreiam hoje Lula e
Bolsonaro. Se puder ser antes de 18 de maio melhor para aquele campo político
em vias de se constituir de fato. E talvez seja possível, se houver noção do
que é principal. Dissipa essas energias iluminar demais os bastidores. Ali,
manobras e bolas fora nunca faltarão para bloquear a picada estreita que
restou. Considerá-las é uma compreensível homenagem ao realismo analítico. Mas
é de realismo político, coisa distinta, o que de mais o centro necessita agora.
*Cientista político e professor da UFBa
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