O Globo
Muito além de seu significado no calendário
cristão, a Páscoa tem um inigualável sabor de criança. Ela não só atiça ao
máximo a imperiosa curiosidade dos pequenos, como infla de impaciência a gulosa
imaginação própria àquela idade. Com ovos de Páscoa exibindo-se da quitanda à
megastore, o atropelo de dúvidas e desejos infantis costuma ser intenso. É pra
querer logo o maior de todos? Ou aquele menor e reluzente, na cor preferida?
Como adivinhar se ele é oco? Ou, no chacoalhar da sacudida, como saber qual a
surpresa que esconde? E esse outro que faz barulho maior?
Da criança bem-nascida àquela que jamais terá a ventura de segurar em mãos um chocolate para chamar de seu, imaginar que segredos escondem aquelas oferendas é parte da farra. De todo modo, é preciso paciência para abrir o caminho até chegar ao tesouro: soltar primeiro as fitas, depois o papel celofane, que está ali para proteger o papel laminado, que por sua vez protege a massa oval do chocolate. E é ela que preserva a surpresa final, o segredo mais bem guardado.
Em alguns aspectos, nada muito diferente do
que vem sendo feito com os segredos da República bolsonarista acumulados desde
2019: o intuito é mantê-los trancafiados atrás de camadas e mais camadas de
obstrução. Só que, ao contrário da celebração pascal, a obsessão central dos
protetores da republiqueta está em fazer com que a imprensa e a opinião pública
jamais tenham acesso a esses segredos. Nada de milagre da ressurreição para
atos da Administração mais do que suspeitos. Enquanto estiver no poder, Jair
Bolsonaro manterá a blindagem contra qualquer investigação capaz de expor seus
muitos fios desencapados das leis e normas democráticas.
Mais recentemente, alguns desses fios têm
suscitado curiosidade quase infantil na população civil. Difícil não querer
saber mais sobre os R$ 546 mil reservados para a compra de toxina botulínica —o
popular botox, de uso majoritariamente estético — entre 2018 e 2020, destinada
a aplicação em militares. O Hospital das Forças Armadas, subordinado ao
Ministério da Defesa então ainda ocupado pelo general da reserva Braga Netto
(cotado companheiro de chapa do capitão em 2022), ainda estimou precisar de 50
caixas com cem unidades cada para 2021.
Mesmo em testas já botocadas, várias
sobrancelhas alcançaram novas alturas ao saber que o Exército brasileiro
desembolsara R$ 3,5 milhões na compra de 60 próteses penianas infláveis de
silicone. Tudo com forte probabilidade de superfaturamento. Somado às suspeitas
de sobrepreço (143%) na aquisição de 35 mil comprimidos de Viagra, comumente
usado para tratamento de disfunção erétil, o Ministério da Defesa ainda deve
explicações e transparência por ter gastado R$ 56 milhões de dinheiro público
em filé, picanha e salmão para as Forças Armadas.
Tudo isso e mais os trocados em remédios
contra calvície têm sido destrinchados a duras penas por uma plêiade de
repórteres irrequietos do bom e velho jornalismo investigativo. Nomes como Bela
Megale, do GLOBO, ou Guilherme Amado, do Metrópoles, são apenas alguns dos que
não largam o osso quando farejam malfeitos. Sem essa tropa aliada à sociedade
civil que combate a corrupção, e a alguns parlamentares (sempre os mesmos) com
raro espírito de servidor público, a treva nacional seria funda.
Segundo dados coletados pelo Congresso em
Foco, respeitado site jornalístico dedicado ao Legislativo, a Lei de Acesso à
Informação (LAI), tão arduamente conquistada em 2011, anda chumbada. Em relação
ao governo de Dilma Rousseff, aumentaram em 663% as negativas por sigilo para
pedidos de informações específicas sobre a Presidência da República. Sobretudo
em tempos bolsonaristas, isso é devastador. Apesar de imperfeita, a LAI
brasileira é indispensável, pois estipula o dever do Estado de garantir ao
cidadão o direito à informação. Ela também prevê que os dados solicitados, se e
quando liberados, devem ser fornecidos de forma transparente, clara e em
linguagem compreensível. Contudo, como no caso de tantas outras obrigações
legais da máquina estatal, Bolsonaro radicalizou — além de não liberar nenhuma
informação nociva a sua tentativa de reeleição, dobra a aposta e impõe sigilo
máximo sobre o que quer manter lacrado.
O decreto de sigilo por cem anos da
carteira vacinal do presidente, imposto em plena pandemia global de Covid-19,
pareceu ser o que de fato era — sandice total. Já o inicial decreto de sigilo
sobre os encontros de Bolsonaro, no Palácio do Planalto, com dois pastores
picaretas chegados a uma propina, além de ligados ao Ministério da Educação,
foi de uma transparência assombrosa. Pareceu admitir: aí tem, e muito. Nada a
ver com a justificativa habitual de que as informações pedidas pelo GLOBO
poderiam colocar em risco a vida do presidente e de seus familiares. Tudo a ver
com o rombudo escândalo que parece ter contaminado a pasta. Se investigado a
fundo, pode ser decisivo. O revertério do sigilo já revelou que um dos pastores
delinquentes esteve 35 vezes no Planalto, e o outro dez. Uma CPI do MEC é o sonho
do Brasil que precisa saber logo o que tem escondido dentro do ovo. Ou é
proibido sonhar? Feliz Páscoa a todos.
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