O Globo
Superior Tribunal Militar, dia 24 de junho
de 1977, o general Rodrigo Octávio Jordão Ramos fala. “Fato mais grave suscita
exame, quando alguns réus trazem aos autos acusações referentes a tortura e
sevícias das mais requintadas, inclusive provocando que uma das acusadas, Nádia
Lúcia do Nascimento, abortasse após sofrer castigos físicos no Codi-DOI.” Conta
que o aborto foi provocado por “choques elétricos no aparelho genital”. Em
seguida lê o que disse Nádia. “Deseja ainda esclarecer que estava grávida de
três meses, ao ser presa, tinha receio de perder o filho, o que veio a
acontecer no dia 7 de abril de 1974”.
As vozes desse tempo sombrio foram
resgatadas pelo historiador Carlos Fico, titular de História do Brasil da UFRJ.
— O Superior Tribunal Militar passou a gravar as sessões a partir de 1975, mesmo as secretas. Até 1985 são 10 mil horas. Em 2006, o advogado Fernando Augusto Fernandes pediu acesso. Não conseguiu. Foi ao Supremo, que mandou liberar. O STM não obedeceu. Em 2011, a ministra Cármen Lúcia determinou o acesso irrestrito aos autos. O plenário acompanhou a ministra. Em 2015, as centenas de fitas de rolo foram digitalizadas. Fernandes analisou apenas 54 sessões. Em 2017 consegui copiar a totalidade das sessões. Aprimorei o áudio e passei a ouvir — explica o professor.
O general Rodrigo Octávio continua, no
mesmo dia, a falar de torturas em grávidas. “Lícia Lúcia Duarte da Silveira
desejava acrescentar que quando esteve presa na Oban foi torturada, apesar de
grávida, física e psicologicamente, tendo que presenciar as torturas infligidas
a seu marido”.
Os ministros, nos áudios, divulgados aqui
com exclusividade, conversam sobre torturas. Alguns duvidam, outros pedem
apuração. Aceitam quando as acusações são ao Dops, mas reagem quando são às
Forças Armadas. O general Augusto Fragoso, em 9 de junho de 1978, admite.
“Quando os primeiros advogados começaram a falar no DOI-Codi, DOI-Codi,
DOI-Codi, eu, como único representante do Exército, na hora aqui presente,
experimentei um grande constrangimento em ver essas organizações tão acusadas”.
Fragoso diz que havia visto várias crises militares, “em 30, 32 e 35” mas
“nunca vi, nunca ouvi, acusações desse jaez”. Acaba pedindo que o Exército se
“recolha aos afazeres profissionais”.
No dia 19 de outubro de 1976, o almirante
Julio de Sá Bierrenbach diz que as denúncias de sevícias atingem a imagem do
Brasil no exterior. “São um verdadeiro prato para os inimigos do regime”.
Elogia a repressão, rende homenagem à Oban, mas conclui, “o que não podemos
admitir é que o homem, depois de preso, tenha a sua integridade física atingida
por indivíduos covardes”. Qualifica os torturadores como “sádicos”. E diz que
“já é hora de acabar de uma vez por todas com os métodos adotados por certos
setores policiais”.
Esse material é inédito, os áudios são
impressionantes. Mesmo quando tentam negar, os oficiais generais das três
forças e os juízes togados se espantam. O juiz Waldemar Torres da Costa, no dia
13 de outubro de 1976, diz “eu confesso que começo a acreditar”. O brigadeiro
Deoclécio Lima de Siqueira defende as “forças antissubversivas” e se diz contra
o STM receber as denúncias. O brigadeiro Faber Cintra, na sessão do dia 15 de
fevereiro de 1978, pede que os réus provem “por exame de corpo de delito ou
laudo médico particular”. Termina admitindo que as denúncias precisam ser
apuradas. Na sessão de 16 de junho de 1976, uma voz faz um aparte. Não se
registra quem seja, mas na opinião de Carlos Fico é o Almirante Sampaio Ferraz.
Ele narra que um réu disse: “ou a gente confessa ou entra no pau”. E conclui:
“eles apanham mesmo”.
Não era fácil denunciar os militares aos
próprios tribunais militares. Havia o risco concreto de represálias a quem se
atrevesse. Milhares se atreveram. Essas denúncias foram a prova das torturas
que a obra “Brasil, nunca mais” registrou para a História. Agora, as vozes são
trazidas pelo historiador Carlos Fico. Um áudio é particularmente emocionante.
No dia 20 de junho de 1977, ouve-se no plenário. “Os senhores ministros não
acreditam na tortura. É pena que não possam acompanhar os processos como um
advogado da minha categoria acompanha, para ver como essa tortura se realiza
permanentemente”. A voz fraca, e de imensa força moral, é de Sobral Pinto.
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