O Estado de S. Paulo
Para seus amigos e confrades, como para os
seus leitores, é um consolo lembrar o que dizia Cícero no ‘De amicitia’.
A presença de Lygia tinha o sopro de uma
aura. Conjugava-se com sua beleza, que perdurou no correr dos muitos anos de
sua vida. O seu olhar tinha características próprias que transpareciam no
contato pessoal. Era um olhar pluriantenado de sensibilidade que agudizava a
sua percepção das coisas, das pessoas e do mundo. Traduziu-se numa obra
literária de primeira grandeza que, no romance e no conto, possui a limpidez
adequada a uma visão que penetra e revela, como observou Antonio Candido.
Filia-se no seu escrever à linhagem de Machado de Assis. Na sua obra, para
evocar Octavio Paz em Blanco,
na transcriação de Haroldo de Campos, “a irrealidade do que é visto / dá
realidade à visão”.
A recente publicação (2018) de um volume que reúne os seus contos vem acompanhada de um brilhante posfácio de Walnice Nogueira Galvão. Nele Walnice destaca que, na diversidade das estruturas e das matérias de seus contos, o fio condutor da limpidez de sua linguagem é a criatividade literária de uma imagem pregnante. Esta é “um concentrado ou condensado de sentido, uma síntese extremada de tudo o que o conto insinua”. A multiplicidade destas “imagens pregnantes” – o isqueiro, a cor verde, o colar de âmbar ou de pérolas, as mãos dadas, o espartilho, o vestido bordado –, como indica Walnice na análise dos seus contos, traz “consigo um senso de revelação, iluminando como um rastilho toda a narrativa”.
O mundo de Lygia é o mundo contemporâneo,
com seus desvãos e as imperfeições dos seres humanos que o habitam, desvendados
com agudeza crítica e fôlego inspirador. Daí a universalidade de sua obra, que
foi traduzida em muitos idiomas.
No trato deste mundo e, especialmente, o
brasileiro, a persona pública de Lygia foi corajosa na sua postura em relação
às injustiças, ao arbítrio e à censura. Não padeceu “do enxofre da
subserviência / do purgatório da indiferença / do exílio da ingratidão / da
asfixia de rótulos e de amarras / da gangrena de toda a covardia / ou do deserto
do desamor”, para evocar o poema Prece,
do seu querido amigo e confrade Paulo Bomfim.
São Paulo, urbana e metropolitana na qual
viveu, com remissão ao interiorano de sua vivência familiar, foi terreno dos
estímulos de sua criação literária. Na Federação das nossas Letras, Lygia é uma
grande expressão do abrangente talento de nossa querência paulista. Por isso,
integrou em convergente complementaridade a Academia Paulista de Letras e a
Academia Brasileira de Letras, e o Prêmio Camões que lhe foi outorgado
assinalou o reconhecimento de seu papel na ampliação do repertório expressivo
da Língua Portuguesa, da qual era uma devota apaixonada.
Lygia enfrentou os desafios da condição
feminina com a perseverança bem-sucedida da sua maneira de ser. Gostava de citar,
especialmente em conversas comigo, uma lição de Bobbio: a grande revolução do
século 20, como uma mudança radical não precedida de um movimento
revolucionário, foi a revolução feminina que transformou os costumes e foi
corroendo os valores das sociedades patriarcais.
Lygia também gostava de citar a frase de
Santo Agostinho: a sede da alma reside na memória. Na sede da sua alma,
desempenhou um grande papel a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco,
onde estudou e se formou, exercitou a experiência da cidadania e com a qual
manteve laços de afeto e de vínculos durante toda a sua vida. Laços de afeto e
de vinculação que foram correspondidos por gerações e gerações de alunos e
professores, que nela identificaram uma grande expressão da tradição literária
da São Francisco, iniciada pelos poetas românticos que ela conhecia e
apreciava, em especial Álvares de Azevedo. Alunos e professores a velaram,
antes da sua partida, no saguão da Academia Paulista de Letras.
Em 2016, a antiga aluna foi a áurea patrona
da turma 184 dos formandos da faculdade. A sede da Academia de Letras dos
alunos da faculdade, acolhida no prédio da nossa Casa do Largo São Francisco,
recebeu em 2017, com a sua presença, o seu nome tutelar.
Foi na faculdade que nos meus tempos de
estudante conheci Lygia e desde aquela época, precedida pela leitura no
colegial de seu livro de 1958, Histórias
de Desencontro, a ela dediquei admiração e amizade que, no correr
dos anos, se estreitaram e aprofundaram. Com a boa vontade que tinha com os
estudantes, aceitou colaborar com a Revista do XI de Agosto, da qual fui o
redator literário. Foi assim que a revista de 1961 publicou uma primeira versão
de seu conto A
Medalha, que subsequentemente retrabalhou e que agora está inserido
no volume de 2018 que acima mencionei. Neste conto, a medalha é um exemplo de
“imagem pregnante” apontada por Walnice.
Para os amigos e confrades de Lygia, assim
como, penso eu, para os seus leitores que na sua obra sentem o sutil impacto da
presença de sua obra, é um consolo lembrar o que dizia Cícero no De amicitia: “Graças à amizade, o
que é difícil dizer, os mortos vivem: vivem na honra, na memória e na dor dos
amigos.”
*Professor Emérito da Faculdade de Direito da USP, é membro da Academia Brasileira de Letras e da academia paulista de letras
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