O Globo
E ‘A Primeira Missa’ e o ‘Independência ou
morte’ vão seguir como exemplos de nosso respeito pela nação
A televisão revelou, a partir de um
dispositivo fotográfico montado estrategicamente dentro da mata litorânea do
Rio de Janeiro, a sobrevivência de suçuaranas, belas onças-pardas típicas da
região, dadas como em extinção há cerca de um século.
Saudemos portanto as suçuaranas, de volta
às aventuras selvagens em nossas matas. Podemos dizer que o Brasil renasce um
pouco pelas patas desses heroicos animais, representantes do que sempre tivemos
de mais belo, raro e nosso.
Aliás, sempre acabamos por nos iludir com o país e com o que ele tem de aparentemente mais louvável. Durante o Segundo Reinado, quando tivemos o período mais longo de nossa história com um só chefe da nação, Dom Pedro II resolveu incentivar o orgulho da população e relançar o Brasil no mundo, numa operação ao mesmo tempo política, turística e de autoafirmação.
Abençoado por Deus e bonito por natureza,
como depois cantamos, o Brasil era um país em que as estonteantes belezas
naturais conviviam em harmonia com nossa indiscutível vocação para a existência,
para a alegria, para um sereno gosto por todas as formas de festas gentis e
calorosas. Por todas as formas de comedido prazer popular. O que a gente pensou
que o Brasil fosse, por influência do que de nós dizia e jurava o imperador
durante tanto tempo, começou a ruir devagar, diante de nossos olhos, no século
XX e agora no XXI.
Se não me engano, acho que já contei isso
aqui, nesta mesma coluna. Mas não custa nada repetir, reargumentar a história
para que nos entendamos melhor e melhor entendamos o que Pedro II, cheio das
melhores intenções, nos fez passar durante quase todo o século XIX. Pois o
imperador do Brasil contratou artistas brasileiros recém-saídos das melhores
escolas de pintura da Europa para que fizessem telas que cantassem nossas glórias,
atraindo o resto do mundo para tal frenesi.
A um caberia transformar em pintura épica a
Primeira Missa, um evento em que nos entendemos muito bem com os indígenas
locais, que não só teriam colaborado com a armação da cerimônia, como também
participaram dela, montados em galhos de árvores frondosas. A outro coube
reproduzir o Grito da Independência às margens do Ipiranga, onde Pedro II
sugeriu que copiasse um mestre barroco francês. Durante anos reverenciamos os
dois quadros e os dois pintores, como marcos de nossa cultura mais original de
autoconhecimento.
“A
Primeira Missa no Brasil” e o “Independência ou morte” estão aí e vão seguir
como exemplos de nosso respeito pela nação. Outras obras de arte, sem essa
condução amorosa de autoridades, bem característica do momento polarizado no
país, surgem e surgirão para nos abrir os olhos e nos mostrar onde estamos.
Não posso deixa de citar o filme de Lázaro
Ramos, “Medida Provisória”, baseado na peça de teatro que ele dirigiu em 2011,
“Namíbia, não!”, de Aldri Anunciação. Na dramaturgia, a população brasileira de
origem africana é obrigada, por uma lei de nosso governo, a voltar para a
África. A peça nos contava a história de uma diáspora compulsória dos pretos,
numa hipótese nunca formulada formalmente pelos políticos, mas que deve
corresponder a um desejo dos angustiados defensores de pureza étnica no Brasil.
Meu espaço começa a acabar, não tenho como
continuar a escrever seriamente sobre “Medida Provisória”, um dos melhores
filmes brasileiros dos últimos anos, um filme que reinaugura talvez uma nova
etapa do Cinema Novo, como já foram “Vidas Secas” ou “Deus e o diabo na terra
do Sol” ou “Os Fuzis” ou “Macunaíma” ou outros do mesmo valor. Esta semana vou
rever, mais uma vez, o extraordinário filme “Medida Provisória”. E, no próximo
domingo, volto a ele.
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