Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
O sucesso delas vincula-se cada vez mais à
sua combinação com outras, e não à sua atuação isolada
Entre os especialistas, não há dúvida: o
governo Bolsonaro destruiu as políticas públicas brasileiras. A PEC da
Transição pode ter um papel importante para recompor gastos em saúde, educação,
meio ambiente e outras áreas essenciais, mas a reconstrução vai muito além da
ampliação das despesas. São muitos os desafios de governança e gestão, e
pretendo tratar de alguns deles numa série de dois artigos. Neste primeiro, o
tema é a necessidade de articular as políticas públicas, pois nenhuma sozinha
resolve problemas complexos. Aproveitando o clima de Copa do Mundo, o exemplo
que finaliza o texto é o da articulação da política educacional com o esporte.
As lógicas setoriais têm uma função central
na provisão de bens e serviços à sociedade. Por isso, os ciclos do sistema de
ensino são fundamentais para definir o público-alvo e a forma de desenvolvê-lo
no campo da educação, do mesmo modo que os níveis de complexidade na saúde
racionalizam o atendimento dos indivíduos. Sem uma boa organização interna de
cada área governamental, é impossível garantir os direitos dos cidadãos. Só que
a resolução de questões coletivas depende cada vez mais de formas de
articulação entre as políticas, como revelam os estudos e as experiências
internacionais e nacionais bem-sucedidas.
Três motivos gerais explicam a necessidade de articulação entre as políticas públicas. A primeira diz respeito à melhoria da eficiência do gasto público. É preciso cada vez mais otimizar os recursos públicos, fazendo mais com menos, visto que o orçamento sempre crescerá menos do que as demandas sociais. O exemplo da PEC da Transição ilustra bem isso, uma vez que se é fundamental garantir verbas estáveis para combater a pobreza, ela não será combatida apenas com mais dinheiro. O governo Bolsonaro ampliou os gastos com transferências de rendas, mesmo que inicialmente à revelia e depois por cálculos eleitorais, mas o contingente de pessoas que passam fome aumentou. Muitos vão dizer que faltou foco, o que é verdade, mas também faltou diálogo entre as políticas públicas.
A segunda razão está em situações em que a
articulação é imprescindível para resolver determinados problemas. Não é
possível equacionar a violência urbana sem interligar ações de segurança
pública com outras políticas sociais. Da mesma maneira, desastres naturais
devem ser tratados por medidas preventivas urbanísticas com medidas planejadas
de defesa civil. Cada vez mais há situações como essas, chamadas de “wicked
problems” (problemas cabeludos), por lidarem com questões complexas que exigem
forte coordenação entre setores e atores sociais. A maneira como o Brasil lidou
com a covid-19 revelou baixa integração entre políticas e ações governamentais,
com resultados negativos sobejamente documentados.
Além de aumentar a qualidade do gasto e ser
imprescindível em determinadas ocasiões, a articulação entre as políticas
públicas pode potencializar o desempenho delas. O sucesso das políticas
vincula-se cada vez mais à sua combinação com outras, e não à sua atuação
isolada. A mortalidade infantil não é reduzida apenas com ações da área de
saúde, mas também com a melhoria da qualidade da água e o aumento da
escolaridade das mães. A escola consegue combater melhor a evasão escolar da
juventude se houver políticas de transferência de renda aos estudantes (mensais
e poupança para o futuro) e interligação com equipamentos de esporte e cultura.
Há mais de um modo de articulação entre as
políticas públicas. Alguns assuntos são transversais e, desse modo, devem estar
presentes na engrenagem de várias áreas. A questão ambiental, por exemplo, não
é apenas um campo em si. Ela deve ser um dos norteadores dos investimentos em
infraestrutura ou na gestão de recursos hídricos. O tema da diversidade também
segue uma lógica transversal, uma vez que outros setores precisam utilizá-la
como um dos parâmetros de sua gestão.
Um grau mais forte de articulação é exigido
pela intersetorialidade. Neste caso, existe um problema mais geral que precisa
da ação de mais de uma política pública para resolvê-lo. Um exemplo clássico
refere-se às políticas de primeira infância. Essa faixa etária tornou-se um
tema prioritário em todo o mundo, dado que o investimento nas crianças dessa
idade (até 5 anos) tem efeitos positivos diversos para os indivíduos, como
melhoria do desempenho em toda a trajetória escolar, aumento da resiliência,
menor propensão à criminalidade, maiores cuidados com a saúde ao longo da vida,
entre os principais.
A política de primeira infância envolve a
articulação de atividades de saúde, assistência social e educação. No caso das
ações sanitárias, elas já começam na gravidez da mãe, porque a qualidade da
gestação tem efeitos sobre os bebês e sua vida futura, e continuam com todo o
processo de acompanhamento da saúde infantil, com destaque para o ciclo
vacinal. Em relação às medidas assistenciais, é preciso lembrar que as
condições de vida da família são essenciais, pois neste momento as
possibilidades dos pais e das mães impactam decisivamente no desenvolvimento
das crianças. E quanto mais cedo houver o contato com creches orientadas por
uma política pedagógica, mais haverá evolução cognitiva e socioemocional dos
indivíduos. O fato é que não é possível ter uma política de primeira infância
sem intersetorialidade.
Existe ainda outra forma de articulação que
envolve o imbricamento de dois setores numa só política. Um exemplo instigante
é o uso do esporte e das atividades físicas no universo escolar. Recentemente,
coordenei um estudo para o Instituto Península (“O lugar da Educação Física na
Educação: visão conceitual e lições internacionais para a experiência
brasileira”) que mostra o potencial dessa interligação, algo que tem mudado o
destino de muitos jovens no mundo e poderia fazer o mesmo por aqui.
Nos últimos anos, vários países têm usado a
prática desportiva e de atividades físicas como um dos elementos centrais do
processo educacional. Em primeiro lugar, porque o tema diz respeito a como
lidar melhor com a saúde e com o desenvolvimento psicológico das crianças e
jovens. O esporte é capaz de gerar maior autoconhecimento do corpo, aumentar a
autoestima e fazer com que os indivíduos, em atividades individuais ou
coletivas, aprendam a conviver com os erros e com as perdas. Sem esses
aprendizados, reduz-se a capacidade de evolução cognitiva e socioemocional.
As atividades físicas pedagogicamente
estruturadas, ademais, são fundamentais como elemento motivacional e de criação
de cultura escolar. Avalia-se muito o desempenho das crianças em provas, mas
pouco se sabe quais são as condições e os instrumentos que as fazem gostar da
escola e da busca pelo conhecimento. Já há bastante literatura realçando como o
lado lúdico do esporte, em especial a sua interação coletiva e os desafios que
colocam de aperfeiçoamento para cada um, é uma força motriz para querer
aproveitar ao máximo o ambiente de ensino, algo que potencializa todo o
restante do processo educacional.
É preciso considerar que o processo
educacional envolve o desenvolvimento de múltiplas inteligências, que não devem
ser vistas de forma isolada. Em estudo sobre as melhores “high schools”, ou
escolas de ensino médio, americanas (“In Search of Deeper Learning”), Jal Mehta
e Sarah Fine mostraram como atividades para além do básico curricular, como
educação física e artes, são centrais para o aprendizado de todos os conteúdos.
No fundo, os esportes desenvolvem competências e habilidades fundamentais não
só para tirar melhores notas, mas sobretudo para construir uma autonomia mais
forte dos indivíduos, e esse deve ser o grande objetivo da educação.
Essa combinação entre as políticas também
tem servido no plano internacional para desenvolver atletas e profissionais
para o esporte, que é um tipo de setor econômico com muitas ramificações.
Grande parte da economia do século XXI está em atividades de entretenimento,
que já estão gerando muita riqueza e empregos. O Brasil ainda não captou essas
tendências. Aqui continua valendo a ideia de que o caminho mais efetivo para
formar esportistas encontra-se em clubes desportivos, concentrando-se apenas no
atleta, e não no múltiplo entorno dele. Se juntássemos educação e esporte desde
cedo seríamos praticamente invencíveis na Copa do Mundo, teríamos mais medalhas
nas Olimpíadas e, sobretudo, produziríamos muito mais capital humano interno e
exportável em diversas modalidades. Ressalte-se: isso é uma forma de desenvolvimento
e combate às desigualdades.
Para lidar com a destruição bolsonarista, o
terceiro mandato do presidente Lula precisa reconstruir as políticas públicas
levando em conta as lógicas da transversalidade, da intersetorialidade e do
imbricamento entre políticas. Ampliar os ministérios não será um problema se
essas formas de coordenação guiarem a lógica do governo. Por esse caminho, será
possível construir políticas públicas interligadas em prol de uma sociedade
melhor, formando indivíduos com horizontes mais amplos, como mostra o exemplo
dos efeitos da junção entre esporte e educação ao longo da trajetória
estudantil. Eis aqui um bom ponto para o MEC reiniciar seu trabalho depois de
quatro anos praticamente fechado. Toda nação almeja hoje ter grandes atletas,
mas tão bom ou melhor do que isso é tornar as atividades esportivas a grande
porta para uma cidadania mais plena.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
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