Folha de S. Paulo
Ignorando-se os limites da realidade, não
se consegue nem tomar um Chicabon
Lula reinaugura
a política em Brasília. Até agora tem sabido, para ficar na metafísica
influente destes dias, como tocar e lançar a bola, a despeito da rabugice
"Duzmercáduz" e de setores consideráveis da imprensa, que odeiam
justamente a... política. "Rabugem", a propósito, é sinônimo de
sarna. O rabugento está sempre se coçando, numa inquietude viciosa.
Jair
Bolsonaro se queda em silêncio porque moralmente derrotado,
incapaz de se apresentar a suas milícias com a conhecida altivez burra e
truculenta. Faz soar, na sua quietude, o apito de cachorro para manter
mobilizados os zumbis do golpismo, enquanto Eduardo, o
filhote, vai à farra no Qatar levando consigo supostos "pen
drives" sobre "a atual situação do Brasil"...
Mas há mais do que o peso da derrota.
Aquele que, para todos os efeitos, ainda preside o país nada diz porque se vê cercado, de súbito, por um ambiente que lhe é absolutamente estranho e ao qual sempre se mostrou hostil: a negociação. Quando chegou à Presidência, tinha uma carreira de quase 30 anos como deputado federal, trilha profissional seguida pelos filhos. O clã havia encontrado um meio de ganhar a vida e de acumular um formidável patrimônio —parte em dinheiro vivo—, mas se dedicava a que causa pública mesmo?
O líder petista indicou vários nomes para
se acercar da herança do "imbrochável" amuado, mas é evidente que é
ele, não um preposto enfatuado e arrogante, a negociar, por exemplo, a PEC da
Transição. O eleito já se encontrou duas vezes com Arthur Lira (PP-AL)
e Rodrigo
Pacheco (PSD-MG), presidentes, respectivamente, da Câmara e
do Senado.
Não sei se Lula consegue a aprovação da PEC
pelo pico, com um valor de R$ 198 bilhões, excepcionalizando-se por quatro anos
os R$ 175 bilhões do Bolsa Família.
Seria o melhor, mas é provável que não leve tudo: alguns falam em favor de dois
anos, tempo para se arranjar outra âncora fiscal. Frise-se: essa eventual nova
amarra —teto de dívida, por exemplo— é só métrica diversa. O dinheiro é um só.
O que se busca é um critério confiável para conter gastos, mas que tenha um
efeito virtuoso na economia, em vez de conduzir ao sucateamento de bens e de
serviços públicos, com superávit primário chinfrim e insustentável em meio ao
caos.
A negociação virou instrumento para a
formação da futura base de apoio e para a eleição das respectivas Mesas da
Câmara e do Senado. O PT apoiará a recondução de Pacheco, como o esperado, e de
Lira, o que constrange alguns bons. É do jogo. Ignorando-se os limites da
realidade, não se consegue nem tomar um Chicabon, para ecoar Nelson Rodrigues.
"Ah, mas e a permanência do orçamento
secreto"? Como existe, é uma excrescência e não vai se tornar virtuoso
porque Lula será o presidente. Parece-me, no entanto, que, por ora, já é
grandeza demais dotar o país de uma peça orçamentária realista; reconstruir a
governança destroçada em qualquer área que se analise; reinserir o Brasil na
economia verde; enfrentar —e isto ainda reserva sortilégios futuros, podem
apostar— um processo de normalização do golpismo, que contamina até setores da
imprensa, e reinstaurar o espaço da divergência que não pressuponha a
eliminação do outro. O "bolsofascismo" veio para ficar. O desafio consiste
em circunscrevê-lo, aprisionando-o nos nichos da delinquência política.
Antes de escrever essa coluna, voltei ao
noticiário do início de dezembro de 2018. Bolsonaro, presidente eleito,
dedicava-se a atacar a legislação ambiental, e Guedes explicava
como aprovaria medidas salvacionistas apelando às "bancadas
temáticas", não aos partidos. Deu tudo errado. No dia 26 de maio de 2019,
o Planalto já patrocinava o primeiro ato golpista contra o STF e o Congresso.
Um dos alvos era Rodrigo Maia, então presidente da Câmara, que conduzia a
reforma na Previdência e teria, no ano seguinte, papel central na PEC de Guerra
contra a Covid. Nem por isso parou de apanhar.
Eram os primeiros passos do desastre.
"Uzmercáduz" reagiam com menos estridência do que a uma simples
entrevista de Lula afirmando que a responsabilidade fiscal não pode levar à
irresponsabilidade social. Estão desatualizados. Precisam redescobrir o
capitalismo e a política.
Um comentário:
Ele voltou...
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