sábado, 14 de setembro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Leniência com crimes ambientais interfere no clima

O Globo

Em vez de contribuir para capturar gases poluentes, Amazônia se transformou em fonte de emissões

Não é alarmismo de cientistas paranoicos. É fato: de acordo com dados do Copernicus, instituto de monitoramento climático mantido pela União Europeia, durante pelo menos cinco dias o sudoeste da Amazônia foi a região do planeta que mais emitiu gases de efeito estufa. Mais que áreas poluidoras da China, da Índia ou polos urbanos e industriais dos países ricos. Em vez de funcionar como o proverbial “pulmão do mundo” — chavão cunhado há décadas que não corresponde faz tempo à realidade — e de capturar gases poluentes, a Floresta Amazônica começa, ao contrário, a agravar o aquecimento global. Cientistas temem que a tendência se torne irreversível.

A causa da inversão de papéis é o desmatamento, agravado por incêndios devastadores sem precedentes. De 1º de janeiro a 9 de setembro, os 82 mil focos de fogo detectados foram o dobro dos mapeados no mesmo período do ano passado. A Amazônia chegou a tal ponto depois de muito descaso com a ocupação desordenada da região onde fica a maior floresta tropical do planeta. É fundamental cobrar do Executivo medidas de combate ao fogo e proteção da floresta. Mas a responsabilidade vai além. Precisa se estender ao Legislativo, onde ainda tramita uma “boiada” de projetos enfraquecendo a lei ambiental. E também ao Judiciário, onde são frequentes casos de leniência com crimes contra a natureza.

Um caso exemplar ilustra a situação permissiva em que os criminosos continuam a se sentir à vontade para devastar a floresta. A Justiça mato-grossense acaba de inocentar o pecuarista Claudecy Oliveira Lemes, acusado de ter destruído, para criar gado, nada menos que 3.800 hectares de vegetação nativa no Pantanal — o equivalente a mais de 5.300 campos de futebol. A alegação foi a prescrição do crime ambiental. O Ministério Público (MP) informou que recorrerá da decisão, sob o argumento de que, ao impedir a regeneração da área, ele continuou a incorrer no crime.

Claudecy é conhecido dos órgãos de vigilância ambiental. Também é acusado de ter devastado outros 81 mil hectares do Pantanal (área equivalente à de Campinas), despejando de um avião agrícola produtos químicos avaliados em R$ 25 milhões. Foi o maior caso de devastação registrado em Mato Grosso. Por duas vezes, o MP pediu sua prisão preventiva, mas a Justiça negou o último pedido em abril. Desde 2019, ele soma 15 autuações por danos ao meio ambiente. E segue solto, cumprindo apenas medidas cautelares.

Devem-se acompanhar com atenção os desdobramentos desses casos. Se a sentença que absolveu Claudecy for seguida noutros processos, poderão ficar impunes desmatadores em escala industrial. Atentados contra o meio ambiente não são crimes de baixo poder ofensivo. E não basta se mobilizar quando o pior já aconteceu. É preciso haver vontade e base jurídica para proteger as florestas. Com a Amazônia e o Pantanal em chamas, o Brasil terá dificuldades de reclamar quando for acusado em fóruns internacionais de ser conivente com a destruição do meio ambiente e de contribuir para o descontrole do clima. Deveríamos, ao contrário, transformar nossos biomas em exemplo de conservação para o planeta. Antes que seja tarde demais.

Postes com emaranhados caóticos de fios são problema urbano crescente

O Globo

Com 10 milhões deles abarrotados, Brasil somou mais de 25 mil acidentes e 660 mortes desde 2022

Emaranhados de fios fazem parte da paisagem urbana brasileira. Mas os problemas que se entrelaçam ao longo das redes elétrica e de telecomunicações vão além da indesejável poluição visual e dos enormes transtornos causados aos cidadãos durante as tempestades, quando galhos ou árvores inteiras despencam sobre os cabos, provocando interrupção dos serviços. Fios soltos, resultantes de manutenção deficiente e falta de fiscalização, têm causado acidentes graves com frequência maior do que se imagina.

Levantamento do Instituto de Defesa de Consumidores (Idec) feito com exclusividade para O GLOBO mostrou que, desde 2009, foram registradas cerca de 36 mil ocorrências, com 4 mil mortes, envolvendo fiações elétricas e de telecomunicações. Apenas de 2022 a agosto deste ano, 25.127 pessoas se acidentaram e 660 morreram em situações desse tipo. Os dados constam de informações enviadas pelas distribuidoras à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), responsável pela gestão compartilhada dos postes com as empresas de telecomunicações.

É verdade que os registros têm ficado mais precisos nos últimos anos, devido a imposições legais. Em 2022, depois de determinação da Aneel para que os casos fossem classificados em 12 tipos de causas (como batida em poste, cabo energizado, choque, poda de árvore ou linhas de pipa em contato com os fios), o total de acidentes cresceu 16 vezes em relação ao ano anterior.

Estima-se que, dos 50 milhões de postes existentes no país, 10 milhões estejam abarrotados de fios, em muitos casos com ligações clandestinas. Não é exatamente por falta de regras que os problemas se acumulam. Em 2023, os ministérios das Comunicações e de Minas e Energia instituíram a Política Nacional de Compartilhamento de Postes. Em junho deste ano, decreto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva determinou que as distribuidoras contratassem empresas terceirizadas para ordenar os fios. Os “posteiros” cuidariam do compartilhamento e da fiscalização. Mas o decreto desagradou às distribuidoras. Elas defendem que a norma seja facultativa. Uma solução se torna ainda mais difícil devido às diferentes visões das agências de energia e de telecomunicações sobre o assunto.

Não basta baixar normas que não são seguidas. O problema existe e está à vista de todos. É preciso que os setores elétrico e de telecomunicações, agências reguladoras e governo cheguem a um entendimento. O ideal é que esses cabos sejam instalados no subsolo, reduzindo a poluição visual e os transtornos de apagões durante os temporais. Mas, uma vez que a realidade não é essa na maior parte do país, o jeito é ordenar a instalação dos fios, combater as ligações clandestinas e cuidar da manutenção adequada. Não se pode expor o cidadão ao risco de acidentes graves devido à incúria daqueles que deveriam cuidar das redes.

Governo acorda tarde para risco energético

Folha de S. Paulo

Seca no próximo ano pode levar à situação de 2021, que beirou o racionamento; horário de verão volta a ser relevante

A seca recorde, o aumento do consumo de energia e o pequeno crescimento recente da oferta de eletricidade de usinas hidrelétricas e térmicas provocaram algum sentimento de emergência no Ministério de Minas e Energia.

Não há, por ora, perspectiva de faltar luz ou de ameaças para o abastecimento, mesmo em horários de pico. Especialistas dizem que o problema não será agudo até o ano que vem.

No entanto os riscos aumentaram. As folgas do sistema são cada vez menores. O agravamento da crise climática torna mais incertos os cenários de chuvas e consumo, para dizer o menos. Desde 2014, o país tem enfrentado secas e reduções grandes, de ano para outro, no nível dos reservatórios das usinas hidrelétricas. Também há mais restrições para operá-las. Além do mais, o governo está atrasado.

Nesta semana, a pasta de Minas e Energia solicitou ao Operador Nacional do Sistema (ONS) um plano para lidar com os riscos de 2024 a 2026. O calor dos incêndios que se espalham pelo país, ao que tudo indica, ligou alertas.

O ministro Alexandre Silveira anunciou que avalia a volta do horário de verão, abandonado sob Jair Bolsonaro (PL) —a economia obtida com o expediente de fato deixara de ser relevante.

O governo afirma também, para certa descrença de estudiosos e executivos do setor, que ainda neste ano haverá um leilão de compra de energia de reserva. Silveira chegou a dizer que divulgará em setembro seu projeto de reforma do setor elétrico.

Os leilões de compra de energia, nova ou de reserva, estão atrasados. A possibilidade de adotar o horário de verão já deveria estar em estudo faz tempo, pois o comportamento do consumidor e a oferta de eletricidade têm mudado com frequência

A economia e a redução de riscos propiciadas pelo adiantamento dos relógios no centro-sul voltaram a merecer atenção.

O Brasil hoje conta com mais energia solar, 16,8% da capacidade instalada em 2023, que obviamente não atende às necessidades do pico de consumo do início da noite. Conta com mais energia eólica, 14,4% da capacidade, fonte que, entretanto, é sujeita a variações fora de controle.

O início da noite voltou a ter picos de consumo —são necessárias a energia de hidrelétricas e térmicas ou outras soluções.

Dadas as mudanças, afora as incertezas climáticas, deve sempre haver planos de contingência ou revisões de rota que possibilitem a redução rápida de riscos.

Em vez de pedir estudos, o ministério já poderia apresentar medidas possíveis. Uma nova seca em 2025 é capaz de levar o país à situação de 2021, quando se esteve à beira do racionamento.

A situação de perigo renovado indica que falta planejamento de longo prazo para uma época de crise do clima e mudança tecnológica. O Brasil está longe de ter um plano integrado para energia, desmatamento, uso da água e mitigação de desastres climáticos.

A improvável equação de Macron

Folha de S. Paulo

Nomeação de conservador como primeiro-ministro queima pontes com a esquerda e não garante a contenção da ultradireita

As mais recentes decisões do presidente da FrançaEmmanuel Macron, sinalizam um esforço para conter a ascensão da ultradireita, frear a polarização e preservar sua governabilidade. Espanta, de todo modo, a sucessão de reviravoltas promovidas por seu gabinete.

A recente indicação do conservador Michel Barnier como primeiro-ministro segue um cálculo intrincado para formar um governo de coabitação com a oposição. A medida provocou ebulição nas três coalizões que dominam a Assembleia Nacional —nenhuma delas majoritária nem afeita ao diálogo.

Por suas primeiras declarações, está clara a rejeição de Barnier a qualquer composição com a Reunião Nacional, força de extrema-direita de Marine Le Pen.

É improvável, ainda, que atraia simpatia da Nova Frente Popular (NFP), coalizão de esquerda —que inclui radicais e moderados e detém a maior bancada no Parlamento— comandada por Jean-Luc Mélenchon, deputado de opiniões controversas e adepto de um ideário estatista obsoleto.

Macron queimou as pontes com a NFP ao descumprir a tradição de designar, como chefe de um governo de coabitação, um expoente do bloco mais bem votado pelos franceses.

Preferiu um hábil negociador de centro-direita cujo partido, o Republicanos, saiu em quarto lugar nas eleições. Montar um gabinete capaz de amalgamar as forças de centro a moderados dos dois espectros políticos não será nada fácil. Mesmo que seja consolidado, sua longevidade dependerá de concessões aos extremos.

O primeiro-ministro já sinalizou sua intenção de flexibilizar a reforma da Previdência, insensatamente criticada pela esquerda, que levou milhões de franceses às ruas em 2023. Em contrapartida, também manifestou-se a favor de controles sobre a imigração, demanda cara à direita.

Mas há dúvidas sobre a capacidade de interlocução de Barnier com Macron. Em seu primeiro discurso, prometeu um governo de "ruptura" e de "mais ação do que conversa" —o presidente certamente não teria aceitado tais termos quando surfava em popularidade e apoio parlamentar.

Fato é que Macron embarcou em escolhas arriscadas, como a antecipação das eleições para a Assembleia Nacional, ao constatar o avanço da ultradireita francesa no Parlamento Europeu.

Não há manual para combater extremismos que ameaçam uma das mais sólidas democracias do mundo. Guinadas do governo tensionam o Legislativo e trazem mais incertezas para as eleições presidenciais de 2027.

A impunidade ganha um nome

O Estado de S. Paulo

Um ano após anular as provas obtidas no acordo de leniência da Odebrecht, Dias Toffoli batiza uma corrida de delatores em busca dos mesmos benefícios processuais dados a Lula da Silva

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli deve estar orgulhoso de seu revisionismo histórico da Operação Lava Jato, sua magnum opus como juiz. Um ano depois de anular todas as provas obtidas por meio do acordo de leniência da Odebrecht, hoje Novonor, seu nome batiza um movimento de dezenas de delatores, alguns criminosos condenados, que têm acorrido aos tribunais para obter os mesmos benefícios processuais concedidos pelo ministro ao presidente Lula da Silva, autor do pedido de anulação. É o “Efeito Toffoli”, algo que, sem qualquer prejuízo semântico, também pode ser chamado de festim da impunidade.

Em 6 de setembro de 2023, vale lembrar, Toffoli usou um despacho monocrático em uma Reclamação (RCL 43007) interposta pela defesa de Lula, na véspera do feriadão da Independência, para submeter a sociedade brasileira à sua visão muito peculiar sobre o que foi a maior operação de combate à corrupção de que o País já teve notícia. Com uma canetada, Toffoli declarou “imprestáveis” as provas obtidas a partir dos sistemas Drousys e My Web Day, dois instrumentos que fizeram rodar com eficiência germânica o notório “departamento de propina” da então Odebrecht, o centro nervoso do esquema do petrolão nos governos lulopetistas.

Segundo esse realismo fantástico toffoliano, a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba teria se valido de “tortura psicológica”, algo que ele havia chamado de “um pau de arara do século 21″, para obter provas contra pessoas “inocentes”. De acordo com o ministro em sua decisão, a prisão de Lula teria sido “um dos maiores erros judiciários da história do País”, “uma armação fruto de um projeto de poder de determinados agentes públicos em seu objetivo de conquista do Estado”. Rasgando a toga para se lançar como analista político, Toffoli ainda avaliou que a prisão do petista seria fruto de “uma verdadeira conspiração com o objetivo de colocar um inocente como tendo cometido crimes jamais por ele praticados”, ação esta que representaria “o verdadeiro ovo da serpente dos ataques à democracia e às instituições” a partir da ascensão de Jair Bolsonaro.

Sabe-se que, entre idas e vindas, o STF entendeu que a 13.ª Vara Federal de Curitiba não era o foro competente para julgar Lula da Silva. A Corte entendeu ainda que o princípio da presunção de inocência não autoriza o cumprimento da pena antes do trânsito em julgado da decisão penal condenatória. Mas escapou ao ministro Dias Toffoli, por razões que não cabe a este jornal perscrutar, que as provas que o levaram a anular o acordo de leniência da Odebrecht e deram a largada para essa corrida pela impunidade foram obtidas por meios flagrantemente ilegais, o que ficou evidente no âmbito da Operação Spoofing.

Toffoli também parece ignorar que os delatores que agora pedem a anulação de seus acordos de colaboração premiada – e a devolução de milhões de reais pagos a título de multa – confessaram seus crimes e concordaram em devolver milhões de reais cada um à Petrobras e/ou ao erário. Ademais, todos esses acordos que teriam sido assinados “sob tortura psicológica”, um rematado disparate, foram considerados hígidos pelo próprio STF, que os homologou.

Essa esquizofrenia jurídica, chamemos assim, somada ao voluntarismo, à criatividade e às intenções pessoais de Dias Toffoli – que não esconde de ninguém sua genuflexão de penitência diante de Lula da Silva –, é o que tem levado uma plêiade de ex-executivos da Odebrecht e de outras empresas à Justiça para pedir a anulação de seus acordos com o Ministério Público Federal, entre outros órgãos de controle, e a devolução de multas milionárias que foram pagas como contrapartida da não persecução criminal em casos de desvios de recursos públicos confessados com espantosos níveis de detalhe.

Por piores que sejam as decisões do ministro Dias Toffoli sobre a Operação Lava Jato nesse ano que passou – decisões que, é bom enfatizar, até hoje não foram submetidas ao crivo do plenário do STF –, mais aviltante é o desrespeito da Corte à inteligência e à memória dos cidadãos e ao próprio Poder Judiciário como um todo, pois a ninguém interessa, como já sublinhamos, um STF voluntarista, instável e politizado.

Rede social nunca foi terra sem lei

O Estado de S. Paulo

STJ diz que rede social pode derrubar, sem ordem judicial, postagem que viola termos de uso, mostrando que o Marco Civil equilibra bem os direitos dos usuários, de terceiros e das redes

Num momento em que o Brasil e o mundo discutem os limites da liberdade de expressão e quais deveriam ser os direitos e deveres das redes sociais, uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) é particularmente elucidativa a propósito de quais são efetivamente esses direitos e deveres no ordenamento jurídico nacional. Foi a primeira vez que a Corte julgou a legalidade da moderação ativa por parte de uma plataforma, ou seja, a remoção de um conteúdo por iniciativa própria, independentemente de notificação judicial ou extrajudicial.

Em 2021, o médico Paulo Porto Melo divulgou em seu canal no YouTube vídeos incentivando o uso de cloroquina para o tratamento da covid-19. Os moderadores da plataforma removeram o conteúdo. Melo requereu à Justiça o seu restabelecimento e a condenação do Google, dono do YouTube, alegando cerceamento à liberdade de expressão, dado que não teria cometido nenhum ato ilegal. Segundo ele, o Marco Civil da Internet proíbe a remoção de conteúdos sem ordem judicial. Alegou ainda que seria vítima de shadowbanning (literalmente “banimento às sombras”), ou seja, a manipulação dos algoritmos para reduzir a visibilidade de um usuário. As três instâncias negaram provimento.

A decisão da Justiça é exemplar e dissipa muita confusão sobre a responsabilidade das redes. Elas não são como as mídias tradicionais editorializadas, que controlam seu conteúdo e respondem totalmente por ele, nem são canais de comunicação totalmente isentos, como redes de telefonia ou correios, mas têm uma responsabilidade intermediária.

O art. 19 do Marco Civil determina que a responsabilidade por danos causados por conteúdos veiculados nas redes é do seu produtor, e a rede só se torna corresponsável se mantiver o conteúdo após ter sido notificada pela Justiça de sua ilegalidade. O art. 21 estabelece a exceção a essa regra. A rede será também corresponsável, mesmo sem ordem judicial, se negligenciar a notificação de alguma pessoa que teve sua privacidade violada pelo produtor do conteúdo.

Isso não significa que as redes não possam remover conteúdos, mesmo sem serem notificadas e mesmo que esses conteúdos não sejam ilegais. Esse direito é de ordem contratual, estabelecido pelos termos de uso pactuados com os usuários. No caso, a questão não é se é ou não ilegal promover o uso de cloroquina, mas se a promoção viola os termos de uso do YouTube. E viola: a “política de informações” da plataforma veda expressamente essa promoção.

Assim como o contrato determina os limites do usuário, ele também impõe limites ao arbítrio da rede. Se um usuário tem conteúdos removidos, for prejudicado por isso e provar que essa remoção viola os termos da própria rede, ele pode ser ressarcido. A regra se aplica ao shadowbanning. As redes não podem reduzir artificialmente o alcance orgânico de algum perfil. Em outras palavras, elas têm um dever de neutralidade para com todos os usuários. Os termos de moderação de qualquer rede podem ser quão restritivos ela queira, muito além das restrições legais à liberdade de expressão, desde que sejam aplicados com isonomia.

A decisão do STJ é particularmente relevante no momento em que os legisladores debatem novas regulações das redes e em que corre no Supremo Tribunal Federal uma ação questionando a constitucionalidade do art. 19 do Marco Civil. As redes sociais no Brasil não são, como diz o chavão, terra sem lei. O Brasil criou, através de um processo longo, democrático e diligente, um arcabouço para o meio digital que busca um equilíbrio entre todos os interesses envolvidos: a liberdade de expressão dos usuários, os direitos de cidadãos ofendidos por ela e as condições de responsabilização das redes, sem terceirizar a elas o poder de censura do Estado nem impedi-las de moderar seus conteúdos, desde que o façam conforme os padrões pactuados com seus usuários, aplicados de maneira igual a todos. É legítimo advogar alterações no Marco Civil, mas elas deveriam ser promovidas com a mesma prudência que pautou a sua construção, harmonizando ainda mais esse equilíbrio, e não o rompendo.

À espera de um milagre

O Estado de S. Paulo

Governo mantém a aposta em medidas arrecadatórias improváveis e empurra o problema fiscal com a barriga

A arrecadação com a qual o governo contava para entregar o déficit zero não tem se confirmado, ampliando o enorme desafio do Executivo para cumprir a meta fiscal. Como esperado, o pacote de recuperação de receitas do ministro Fernando Haddad tem frustrado expectativas que sempre pareceram otimistas demais para ser verdade.

Faltando quatro meses para o fim do ano, a retomada do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) rendeu R$ 83,4 milhões para a União, ante uma expectativa de R$ 54,7 bilhões. Já as transações tributárias com a Receita Federal somaram R$ 1,961 bilhão, bem menos que a previsão inicial, de R$ 31 bilhões. Ambas as informações foram obtidas pelo Estadão por meio da Lei de Acesso à Informação.

O montante esperado com as transações tributárias com a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) era de R$ 12,2 bilhões, mas o governo não divulgou os resultados. O pouco que se sabe é o que a Petrobras, já sob o comando de Magda Chambriard, contribuiu – e muito – para reforçar o caixa do governo.

Para encerrar uma disputa de R$ 19,8 bilhões a respeito da tributação incidente sobre contratos de afretamento de embarcações, a Petrobras aceitou pagar R$ 6,65 bilhões em depósitos judiciais, R$ 1,29 bilhão em créditos de prejuízos fiscais de subsidiárias e R$ 11,85 bilhões em dinheiro, por meio de parcelas a serem quitadas ainda neste ano, segundo fato relevante publicado em junho.

Custou caro, ao governo, a aprovação desse conjunto de medidas pelo Congresso no ano passado, sobretudo a retomada do voto de qualidade – um desempate a favor do Fisco nos julgamentos do Carf. A dura realidade dos números não fez o Executivo cair na real, mas reaproveitar essas projeções no Orçamento de 2025. Ainda que mais modestas, elas continuam pouco factíveis. Não se trata de um ato de fé, mas de uma maneira de empurrar vários problemas com a barriga.

Se admitisse que essas receitas não vão se confirmar, a equipe econômica, neste ano, teria de contingenciar bem mais que os R$ 3,8 bilhões que congelou em julho, causando a fúria do Palácio do Planalto e da bancada do PT no Legislativo. E, se reconhecesse a improbabilidade de obtê-las também no ano que vem, teria de propor outras medidas arrecadatórias em seu lugar, abrindo uma nova frente de batalha com um Congresso avesso a essa agenda.

Com toda a razão, técnicos do Tribunal de Contas da União (TCU) estão reticentes em relação às projeções de receitas do governo e ao cumprimento da meta fiscal para este ano e o próximo. Mas o secretário executivo do Ministério da Fazenda, Dario Durigan, sustenta que algumas das maiores empresas do País estão muito interessadas em fechar transações tributárias com a União.

O correto seria atestar o caráter ficcional do Orçamento e rever receitas e despesas com lupa e responsabilidade, mas o governo prefere aguardar algo próximo de um milagre na expectativa de que os contribuintes abram mão de suas teses, desistam de levar conflitos tributários com a União ao Judiciário e aceitem encerrá-los no âmbito administrativo. Quem viver verá.

Feminicídio é a ponta de um iceberg

Correio Braziliense

Trata-se de um crime de ódio. O conceito surgiu na década de 1970 com objetivo de reconhecer e dar visibilidade a discriminação, opressão, desigualdade e violência sistemática contra as mulheres, cuja escalada culmina na morte

A Câmara dos Deputados aprovou na quarta-feira (11) um projeto de lei que aumenta a pena para feminicídio e para crimes cometidos contra a mulher. Condenados por assassinato contra mulheres motivado por violência doméstica ou discriminação de gênero terão pena mínima de 20 anos, e máxima de 40 anos. Atualmente, a lei prevê que o feminicídio deve ser punido com prisão de 12 a 30 anos. O projeto segue para sanção presidencial.

As penas serão aumentadas em 1/3 caso a vítima esteja grávida ou nos três meses após o parto, quando as vítimas forem menores de 14 anos ou maiores de 60 e/ou o crime tenha sido cometido na presença de filhos ou pais da vítima. Em vez de cumprir 50% da pena no regime fechado para passar ao semiaberto, será necessário cumprir 55%, porém, não haverá liberdade condicional.

No mesmo dia, quarta-feira (11), o Supremo Tribunal Federal (STF)) decidiu que condenados por júri popular devem ser presos imediatamente. O Tribunal do Júri julga autores de crimes dolosos contra a vida, como homicídio, latrocínios e feminicídio. Na estrutura do Judiciário, ele corresponde à primeira instância. Portanto, mesmo preso, o condenado ainda pode recorrer da sentença à segunda instância e a tribunais superiores.

O assassinato de mulheres em contextos discriminatórios recebeu a designação de feminicídio para dar mais visibilidade à violência contra a mulher. Na última década (2012-2022), ao menos 48.289 mulheres foram assassinadas no Brasil. Somente em 2022, foram 3.806 vítimas, o que representa uma taxa de 3,5 casos para cada grupo de 100 mil mulheres. Ainda assim, o enfrentamento dessa violência extrema não está no centro do debate público com a intensidade e profundidade necessárias diante da escala do problema.

Trata-se de um crime de ódio. O conceito surgiu na década de 1970 com objetivo de reconhecer e dar visibilidade a discriminação, opressão, desigualdade e violência sistemática contra as mulheres, cuja escalada culmina na morte. Essa forma de assassinato não constitui um evento isolado, repentino e/ou inesperado; faz parte de um processo contínuo de violências, cujas raízes são misóginas. Inclui uma vasta gama de abusos, desde verbais, físicos e sexuais, como o estupro, e diversas formas de mutilação e de barbárie.

A partir da Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/2015), os casos de feminicídio passaram a ser monitorados oficialmente.  Entretanto, para que essa lei tenha pleno efeito é preciso arrancar as raízes discriminatórias da invisibilidade e coibir a impunidade. A morte de mulheres em conflitos de trânsito, por exemplo, não é considerada feminicídio. É tratada como homicídio comum, embora seja evidente que o crime está associado à misoginia.

É importante ressaltar a responsabilidade do Estado, principalmente das autoridades policiais e do Judiciário, nesse cenário de violência contra a mulher. Muitas vezes o Estado, por ação ou omissão, é conivente com a persistência da violência contra as mulheres, inclusive quando chega ao extremo da letalidade. O feminicídio é a ponta de um iceberg. O endurecimento das penas por feminicídio não resolve a complexidade do problema.

Outras violências se desdobram numa escalada até o assassinato. Quando o feminicídio acontece, outras medidas falham. A discriminação começa com a atribuição de qualidades e traços de temperamento diferentes a homens e mulheres, que delimitam seus espaços existenciais e são considerados "inato", com o qual se nasce, algo supostamente "natural", decorrente das distinções corporais entre homens e mulheres, em especial daquelas associadas às suas diferentes capacidades reprodutivas. A desigual distribuição de poder entre homens e mulheres seria resultado dessas diferenças, é "naturalizada".

O feminicídio é a expressão fatal das diversas violências que podem atingir as mulheres em sociedades marcadas pela desigualdade entre os gêneros masculino e feminino, por razões históricas, culturais, econômicas, políticas e sociais discriminatórias.


 

 

 

Um comentário:

Mais um amador disse...

Ótimos editoriais, especialmente os que tratam da questão amazônica e das decisões do juiz revisionista do STF.