CartaCapital
O plano de Mario Draghi e a inspiração chinesa
O Financial Times exibiu uma
extensa matéria que cuidou do projeto encomendado pela União Europeia a Mario Draghi,
ex-presidente do Banco Central Europeu. Draghi sugeriu uma “nova estratégia
industrial para a Europa”. Na visão do ex-presidente do BCE, o enfrentamento do
“atraso europeu” vai exigir investimentos de 800 bilhões de euros ao ano.
Esse elevado valor anual é destinado a financiar uma reforma radical e rápida para impedir que a UE fique atrás dos EUA e da China. Draghi propõe uma revisão geral da forma como a UE angaria fundos para investimentos. Trata-se de formular uma estratégia de novos financiamentos para o conjunto dos países que formam a União Europeia. Isso envolve a criação e desenvolvimento de “ativos comuns”.
O Financial Times diz que “o
aguardado relatório do antigo primeiro-ministro italiano, encomendado pela UE,
apela a Bruxelas para impulsionar uma reorientação significativa da política
econômica. As principais recomendações incluem o relaxamento das regras de
concorrência para permitir a consolidação do mercado em setores como
telecomunicações; integração dos mercados de capitais por meio da centralização
da supervisão do mercado; maior uso de compras conjuntas no setor de defesa; e
uma nova agenda comercial para aumentar a independência econômica da UE”.
Draghi lança um lamento: “Nunca no passado a
escala dos nossos países pareceu tão pequena e inadequada em relação ao tamanho
dos desafios”.
Leio na imprensa brasileira artigos
instigantes, alguns intrigantes, a respeito de políticas industriais, de
comércio exterior e de competitividade, sobretudo as que envolvem a presença
coordenadora do Estado. Há quem se habilite a invocar abstratamente as virtudes
dos ganhos de produtividade e de competitividade, sem investigar com rigor as
formas de organização, de financiamento e os padrões de cooperação entre as
esferas públicas e do setor privado nos sistemas nacionais de Pesquisa &
Desenvolvimento.
Vou sugerir a leitura do Entrepreneurial
State, de Mariana Mazzucato. O livro de Mazzucato seria bem acompanhado pelo
trabalho de Usha Haley e George Haley. O título é sugestivo: Subsidies to
Chinese Industry: Capitalism, Business Strategy and Trade Policy. Os Haley
tratam das relações entre as empresas e as políticas governamentais na China recorrendo a
uma exaustiva investigação empírica, sem apelar para o blablablá ideológico e,
não raro, hipócrita, da falsa oposição entre Estado e Mercado, leia-se, entre
concorrência e planejamento de longo prazo na experiência mais fascinante do capitalismo
contemporâneo.
Os estudos de Mazzucato e dos Haley cuidaram
de sublinhar as relações peculiares entre os Estados nacionais, os sistemas
empresariais, os programas de inovação tecnológica e a “inserção
internacional”. Procuraram chamar a atenção para a centralidade da “organização
capitalista” em que prevalecem nexos, digamos, “cooperativos” nas relações
entre as empresas e as burocracias civis, militares e de segurança encarregadas
de fomentar e administrar o sistema de avanço tecnológico (P&D).
Ao examinar essas relações nos Estados
Unidos, Mariana Mazzucato desmascara o mito dos “gênios da garagem” e reduz a
pó as lendas marqueteiras que celebram o papel do venture capital. Mazzucato
descreve minuciosamente o roteiro para o sucesso da Apple de Steve Jobs e seus
iPads e iPods. A ação do Estado não só garantiu o abastecimento do capital
paciente e capaz de encarar o risco da inovação, mas também ajudou a coordenar
as relações entre a grande empresa integradora e seus fornecedores.
No caso chinês, investigado por Haley &
Haley, tem sido crucial a presença dos bancos públicos no provimento de crédito
para permitir a apropriação da tecnologia, mediante a utilização das empresas
estatais para a formação de joint ventures com o capital estrangeiro e
promover a “administração estratégica” do comércio exterior. Essa arquitetura
institucional não só assegurou excepcionais taxas de investimento e de
acumulação de capital, como também ensejou programas de “graduação” tecnológica.
A ação estatal cuidou, ademais, dos
investimentos em infraestrutura e utilizou as empresas públicas como
plataformas destinadas a apoiar a constituição de grandes conglomerados
industriais preparados para a batalha da concorrência global. Não é difícil perceber
que as estratégias chinesas de expansão acelerada, impulso exportador, rápida
incorporação do progresso técnico e forte coordenação do Estado foram
inspiradas no sucesso anterior de seus vizinhos, sócios e competidores.
Apenas uma reforma radical e rápida impedirá
a UE de ficar atrás dos EUA e da China
Os sistemas financeiros que ajudaram a erguer
os países asiáticos eram especializados no abastecimento de crédito subsidiado
e barato às empresas e aos setores “escolhidos” como prioritários pelas
políticas industriais. O circuito virtuoso ia do financiamento para o
investimento, do investimento para a produtividade, da produtividade para as
exportações, daí para os lucros e dos lucros para a liquidação da dívida. A
produtividade desceu do éter onde sobrevivem as abstrações dos macroeconomistas
para baixar à terra dos homens de carne e osso.
O livro China versus West, de Ivan Tselichtchev,
dá a dimensão da transformação ocorrida na economia do Império do Meio. Nos
anos 1980 a economia chinesa detinha os mesmos 1% do Brasil de participação no
comércio mundial, em 2010 sua participação saltou para 10,4%, contra 8,4% dos
EUA, 8,3% da Alemanha. Durante a primeira década do novo milênio a taxa de
crescimento média anual da economia chinesa foi de 10,5%, contra 1,7% dos EUA e
0,9% da Alemanha. Ao final da década a China respondia por 42% da produção
mundial de televisores em cores, 67% dos produtos de vídeo, 53% dos telefones
móveis, 97% dos PCs, e 62% das câmeras digitais.
São frequentes as digressões dos
macroeconomistas conservadores a respeito do desempenho da economia chinesa.
Para essa turma, as elevadas taxas de investimento e crescimento da China foram
impulsionadas pelo perfil “poupador” de seu povo. Trata-se da falácia que
balbucia repetidamente o dogma “primeiro a poupança depois o investimento”.
Já foi dito acima, mas há que repetir: o
sistema financeiro chinês abasteceu crédito em condições adequadas de prazo e
custo às empresas e aos setores “escolhidos” como prioritários pelas políticas
industriais. O circuito virtuoso vai do financiamento para o investimento, do
investimento para a produtividade, da produtividade para as exportações, daí
para os lucros das empresas e dos lucros para a “poupança”. •
Publicado na edição n° 1328 de CartaCapital,
em 18 de setembro de 2024.
Um comentário:
Brilhante! Enquanto isto, os colunistas mercadófilos balbuciam previsões sobre a "necessidade" de aumento da taxa Selic de juros no Brasil pelo Banco Central, mesmo que tenhamos uma das maiores taxas reais de juros do mundo e uma inflação das mais controladas.
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