sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

José de Souza Martins - Caipira não é o que se diz

Valor Econômico

A exposição da Pinacoteca de São Paulo, infelizmente, não ressalta o que de fato ela documenta: a supressão do mundo do caipira e sua sobrevivência imaginária

A exposição destes dias sobre o caipira, na Pinacoteca do Estado de São Paulo (“Caipiras: Das Derrubadas à Saudade”), sem o pretender propõe desafios a quem a visita. A abordagem impressionista trata do que é o caipira aos olhos de hoje, e não aos olhos da História.

Já no século XVI, os jesuítas criaram comunidades de nativos nos aldeamentos ao redor da Vila de São Paulo de Piratininga e estimularam o surgimento de uma cultura diversa da cultura do conquistador e da metrópole. Na verdade, uma cultura brasileira. Os próprios portugueses se mesclaram com mulheres indígenas, dando origem a uma nação de mamelucos, isto é de pardos e mestiços.

A língua indígena dominante, a língua geral, o tupi, transformou-se em língua de todos, indígenas, mestiços e brancos. No século XIX, o general Couto de Magalhães a definirá como nheengatu, língua bonita.

No português falado com sotaque nheengatu, surgirá o dialeto caipira. Difundido a partir de 1727, quando proibida a língua geral, foi na forma caipira resistência à repressão à possibilidade dos movimentos nativistas do começo do século XVIII.

Nesse dialeto, a áspera língua da mãe pátria é suavizada pela abundância de vogais em relação às consoantes. Os erres dos infinitivos dos verbos são suprimidos e se tornam: falá, dizê. As consoantes dobradas são substituídas por vogais: orêia, muié, cuié. Os índios tinham dificuldade com as consoantes e valorizavam as vogais. Sem contar a persistência de toponímicos.

As palavras nheengatu são intraduzíveis do português para o nheengatu e do nheengatu para o português. Isso fica claro numa obra-prima que é a obra de Ermanno Stradelli (“Vocabulário Português-Nheengatu/Nheengatu-Português”, Ateliê Editorial, 2014), um juiz em Lábrea, na Amazônia, nheengatu falante, que lá morreu (em 1926) num leprosário. Um milagre que seu manuscrito tenha sido salvo.

No português escrito e no português falado, somos bilíngues. Bilinguismo disfarçado na pronúncia de erres com sotaques de “éles” pronunciados pela metade. O índio do período colonial resiste na fala, na comida, na música, no imaginário brasileiro.

Os jesuítas, no século XVI, adaptaram ritos e danças indígenas aos ritos católicos. Caso da dança de Santa Cruz, dançada no átrio das igrejas dos aldeamentos dos arredores de São Paulo nos três primeiros dias de maio. Ainda persiste no antigo aldeamento de Carapicuíba.

É adaptação da dança do sapo (cururu em tupi), cuja pronúncia era parecida com “cruz’ e se tornou a dança da Santa Cruz. Em pares, atrás do violeiro, dançam em direção ao calvário e recuam, de costas em direção a ele, ritmadamente. Dança caipira.

Em 1929, Cornélio Pires, na “Moda do Bonde Camarão”, transformou a música caipira em música sertaneja e fez do caipira personagem da crítica conservadora às anomalias e irracionalidades da sociedade urbana.

Nem por isso as origens remotas, tribais e jesuíticas do enraizamento da música perdeu formas e significações indígenas. O cateretê, que foi na origem dança tribal vedada às mulheres, na cultura caipira manteve a interdição.

Na culinária, o caipira persiste no virado de feijão e na farinha de milho. Em 1920, à porta de um restaurante uma placa anunciava: “Hoje, virado à paulista”. Prato ainda hoje servido às segundas-feiras nos restaurantes populares da cidade de São Paulo.

A legitimidade da figuração do caipira em nossa pintura do final do século XIX e início do século XX depende da identificação das características estamentais de sua apresentação pessoal, principalmente andar descalço. Só a gente de qualidade, os fidalgos, andavam calçados ou montados a cavalo ou carregados em rede no lombo de servos indígenas ou negros. São frequentes gravuras e pinturas que retratam escravos solenemente vestidos de libré, porém descalços.

O caipira, que sobrevive culturalmente, não é ancestral de bandeirante, nem de fazendeiro, nem mesmo de trabalhador rural. Ele é uma categoria cultural.

A apresentação da exposição da Pinacoteca, infelizmente, não ressalta o que de fato ela documenta: a supressão do mundo do caipira e sua sobrevivência imaginária. “O Violeiro”, de Almeida Júnior, de 1899, foi comprado em exposição realizada pouco depois do seu assassinato. E doado por seu comprador à filha, Tarsila do Amaral, com escritura passada em cartório. Pendurado na parede, o caipira se tornara personagem da vida de quem não o era.

Um detalhe significativo não foi realçado. Em “Caipiras Negaceando”, que não está exposto, dois caipiras negaceiam a caça, no meio da mata. Na área posterior sombria, há uma figura. É o autorretrato de Almeida Júnior. Ele se propõe ocultamente como sujeito e objeto, como artista e caipira, direito e avesso, o brasileiro desencontrado de si mesmo

 

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