sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Desabamento em igreja expõe descaso com patrimônio

O Globo

Não falta dinheiro, mas uma rotina de cuidado com as relíquias históricas e com a segurança dos turistas

O desabamento do teto da Igreja da Ordem Primeira de São Francisco, no Centro Histórico de Salvador, mostra o descaso com que o Brasil trata os turistas e o patrimônio histórico. A tragédia matou uma jovem de 26 anos, feriu cinco visitantes e destruiu uma relíquia do barroco brasileiro. Era notória a precariedade do templo, conhecido como Igreja de Ouro e considerado uma das sete maravilhas de origem portuguesa no mundo.

Dois dias antes da tragédia, o frei Pedro Júnior Freitas da Silva, guardião-diretor da igreja, alertara o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) sobre a dilatação no teto e pedira vistoria. A inspeção estava prevista para esta quinta-feira, mas o desabamento não esperou os trâmites burocráticos. A fissura no teto era só uma das muitas carências da igreja. Em 2023, reportagem do portal g1 revelou o estado do edifício. Havia pilastras sem reboco, piso desnivelado, fiação exposta e, em alguns lugares do complexo religioso, o teto estava escorado em ripas de madeira. Um dos pátios fora parcialmente interditado devido ao risco de queda de um pináculo, depois removido.

Como é costume nas tragédias nacionais, consumado o desabamento, iniciou-se um jogo de empurra sobre a responsabilidade. O Iphan informou que vistorias não acontecem todo dia, mas apenas quando é detectado um problema. Alegou que o pedido foi feito pelo protocolo normal, sem urgência. Para situações de emergência, disse o instituto, a igreja deveria ter procurado a Defesa Civil ou o Corpo de Bombeiros. A Defesa Civil de Salvador argumentou que, embora tivesse conhecimento do comprometimento de algumas partes da estrutura, não havia risco de desabamento, por isso o prédio não foi interditado. E o Corpo de Bombeiros se disse surpreso.

O acidente expõe o pouco-caso com o patrimônio nacional. Na prática, não existe rotina de cuidado com relíquias como a Igreja de Ouro, construída entre os séculos XVII e XVIII e tombada pelo Iphan desde os anos 1930. Quando acontece uma tragédia, todos se eximem de responsabilidade. A queda do teto está longe de ser caso isolado. A preservação de edifícios históricos deixa a desejar em todo o Brasil. Em 2018, um incêndio destruiu o Museu Nacional, no Rio, incinerando um acervo de valor inestimável — o museu não tinha proteção contra fogo. O patrimônio da Bahia, diz Luiz Alberto de Freire, da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (UFBA), está “seriamente comprometido” com a falta de manutenção. Ele cita como exemplo o Convento de Santa Teresa, de 1686, sede do Museu de Arte Sacra da UFBA.

Tão importante quanto investigar o desabamento e punir os responsáveis pela morte da jovem é evitar que ocorram casos semelhantes. É preciso identificar as construções que correm maior risco e recuperá-las, antes que desabem ou sejam destruídas por incêndios. Compreende-se que prédios erguidos séculos atrás acumulem problemas estruturais, mas outros países mantêm conservadas construções muito mais antigas.

Não se pode dizer que faltem recursos. No fim do ano passado, o governo reservou R$ 1,77 bilhão para emendas parlamentares de comissão (de um total de R$ 4,2 bilhões bloqueados pelo STF). O Ministério do Turismo ficou com o maior quinhão: R$ 441 milhões. Quanto dessa bolada foi destinado ao restauro ou à preservação do patrimônio?

É descabido Congresso discutir anistia para réus do 8 de Janeiro

O Globo

Parlamentares jamais serão imparciais como quer Hugo Motta. Isso é dever da Justiça ao julgar ataques à democracia

Ao tomar posse como presidente da Câmara, o deputado Hugo Motta (Republicanos-PB) foi explícito ao afirmar ser necessário lutar pela democracia e jurar obediência à Constituição. Por isso causou estranheza quando, já empossado, disse que levaria para a reunião dos líderes partidários a pauta da anistia para os criminosos condenados pelos ataques golpistas do 8 de Janeiro. Trata-se de uma questão em que não se pode colocar um pé em cada canoa: ou se defende a democracia, ou se apoia o perdão a quem invadiu a sede dos três Poderes para incentivar os militares a destituir um presidente, censurar a imprensa e inaugurar um período de tirania no Brasil.

Motta tentou se justificar afirmando que o tema será tratado com “imparcialidade” pela Casa. Ora, a imparcialidade no julgamento de cidadãos acusados de crimes contra o Estado Democrático de Direito é dever da Justiça, não do Parlamento. Parlamentares são parciais por definição, pois todos pertencem a algum partido político.

Ele também erra ao apresentar a questão como disputa entre campos políticos opostos: “O PL defende que se vote a anistia para os presos lá do episódio do 8 de Janeiro, e a esquerda, o PT principalmente, defende que esse assunto não seja debatido, não seja votado na Casa”. Mas não se trata de direita contra esquerda. Todo o Parlamento deveria ter interesse na punição dos responsáveis pelos atentados contra a democracia e contra o próprio Congresso.

Na opinião pública, essa divisão não existe. Pesquisa Quaest divulgada em janeiro mostrou que 85% dos eleitores de Jair Bolsonaro em 2022 desaprovam a invasão das sedes dos três Poderes, percentual idêntico ao divulgado um ano antes. Entre os eleitores de Luiz Inácio Lula da Silva, 88% desaprovam os atos de janeiro de 2023. Bolsonaristas e petistas discordam sobre quase tudo, mas, no mais essencial — a defesa da democracia — estão juntos. É assustador que a maturidade do povo brasileiro, conservador ou progressista, em tema de tamanha importância não se reflita entre os congressistas.

Faz parte do jogo político defender ideias, ouvir quem pensa diferente, buscar pontos de convergência, aceitar a vontade da maioria e manter um debate saudável. Motta faz bem ao se comprometer com o diálogo e a harmonia. Mas um princípio não pode ser negligenciado: parlamentares devem ser fiéis aos valores democráticos. Harmonia não pode ser sinônimo de rendição a quem vandalizou as sedes dos três Poderes. As últimas três palavras de seu discurso de posse foram “ainda estamos aqui”, referência ao filme de Walter Salles sobre os horrores da ditadura. Em meio às palmas, um coro gritava “Hugo, Hugo, Hugo, é anistia”. Com suas decisões, Motta tem a oportunidade de deixar claro que está do lado não da anistia, mas da defesa da democracia.

Ampliar crédito de bancos públicos é real ‘arapuca’

Valor Econômico

O presidente Lula pode estar montando outra arapuca para seu governo, diferente da que atribui fantasiosamente ao Banco Central

Não há pior época para expandir o crédito do que quando as taxas de juros estão subindo muito, mas isso pode estar nas intenções do governo Lula. O Banco Central tem tentado, sem sucesso até agora, esfriar a economia, trazendo a inflação para a meta de 3%, e já avisou que o IPCA continuará acima de 4,5%, o teto do objetivo, pelo menos nos próximos seis meses. O presidente Lula, porém, não parece estar muito preocupado com isso, mas sim com seu índice de popularidade, em baixa nos últimos meses. Ele disse que nos próximos dias vai anunciar medidas para ampliar a atuação dos bancos públicos. “O crédito está crescendo, e haverá mais medidas nos próximos dias, porque não parou por aí”, afirmou.

Lula acredita que seu indicado para a presidência do Banco Central, Gabriel Galípolo, recebeu uma herança maldita, “uma arapuca que não se pode mudar de uma hora para outra”, a saber, a indicação futura de que a Selic teria de subir mais 1% nas reuniões do Comitê de Política Monetária de janeiro e março, elevando-a para 14,25%. O IPCA fechou o ano passado em 4,83% e, pelas projeções dos analistas, atingirá 5,5% ou mais em 2025, mesmo com juros reais acima de 8%, uma anomalia até para um país acostumado a ocupar rotineiramente o ranking das maiores taxas do mundo.

Na ata do Copom é apontado que o mercado de crédito se manteve “pujante” e que a autoridade monetária espera, como é natural, que com um aperto das condições financeiras e a elevação dos prêmios de risco o crédito bancário declinará. É insólito que a oferta de crédito continue crescendo acima dos dois dígitos mesmo com o custo do dinheiro tão alto como agora. Um dos motivos principais para isso é o aumento dos gastos públicos, que aqueceu a economia, reduziu o desemprego, aumentou os salários e propiciou que o consumo mantivesse um fôlego incompatível com o potencial de crescimento, com a alavanca coadjuvante do crédito. Não é pouca coisa. O estoque de crédito no ano subiu 2 pontos percentuais do PIB, para 54,4%. Somado ao déficit primário de 0,4% do PIB, obtêm-se 2,5% do PIB de injeção de recursos, o que em grande parte explica um crescimento de 3,5% no ano passado.

Com limitações para ampliar gastos em decorrência de metas fiscais que ele próprio criou, e para as quais gera exceções, o governo tem no crédito uma válvula de escape que poderá usar para sustentar a economia, ainda que isso dificulte o combate à inflação. O crédito direcionado, oferecido principalmente por bancos públicos, mas não só eles, atingiu R$ 2,68 trilhões - ou 22,7% do PIB -, e cresceu mais que o crédito livre, 11,4% ante 10,6%, respectivamente, segundo estatísticas do Banco Central.

A diferença do grau de expansão entre crédito livre e direcionado é pequena, mas chama a atenção a disparidade das taxas de juros. A média dos juros cobrados no crédito livre foi de 40,8% ao ano, enquanto no direcionado foi de 10,9%, quase um quarto. Essa taxa já está abaixo da que o Tesouro paga para se financiar, cada vez mais alta à medida que a Selic sobe. A situação é muito diferente da do governo Dilma, quando a TJLP, cobrada nos empréstimos do BNDES, era altamente subsidiada, com funding alavancado por dotações do Tesouro para o banco.

O BNDES tem aumentado expressivamente seus empréstimos para pessoas jurídicas, que crescem em algumas linhas acima da expansão do mercado (10,5%), como nas de capital de giro, que avançaram 84,7% nos últimos 12 meses. O financiamento para a agroindústria avançou 45,1%, e, no carro-chefe dos empréstimos, o do financiamento a investimentos, a alta foi de 14,9%. No total, os empréstimos do BNDES para empresas subiram 20,9%. O total do crédito, para empresas e pessoas físicas, atingiu R$ 431,6 bilhões, 7,8% maiores que no período anterior.

O saldo dos empréstimos dos bancos públicos encostou no dos bancos privados, R$ 2,72 trilhões ante R$ 2,79 trilhões, respectivamente. No fim do governo Bolsonaro, a diferença, ainda pequena, colocava os bancos privados à frente. Não há nenhuma disparada do crédito estatal até agora, como ocorreu no governo de Dilma Rousseff, o que não impede que um governo acuado pelas pesquisas não tente melhorar sua posição oferecendo dinheiro barato com alguma prodigalidade. O presidente Lula, que não está convencido de que equilíbrio fiscal é essencial para o combate à inflação, pode se sentir tentado a isso.

Há pouco tempo, quando o resultado da meta fiscal estava na berlinda, Lula se empenhou em iniciativa pública para aumentar o crédito consignado para os trabalhadores do setor privado, cujo montante é uma fração ínfima daquela hoje ofertada a aposentados e servidores públicos. Agora parece se entusiasmar com a ideia de elevar a disponibilidade de recursos a empresas e consumidores em um período de juros proibitivos e ainda em elevação. O presidente pode estar montando outra arapuca para seu governo, diferente da que atribui fantasiosamente ao BC. A inflação vai demorar mais a cair se a economia for estimulada, estendendo-se pelo período eleitoral. E os juros permanecerão altos, com enorme impacto na dívida pública.

Haddad oficializa programa fiscal frouxo neste ano

Folha de S. Paulo

Documento apresentado ao Congresso tem medidas corretas, como limitar supersalários, mas nada que detenha dívida pública

Mudanças mais profundas e de impacto mais permanente nas contas públicas não figuram entre os objetivos do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT). É o que está oficializado no plano de trabalho que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, foi autorizado a apresentar ao Congresso.

A esse respeito, em sentido estrito, não há providência fiscal nova na lista de "iniciativas para o biênio 2025 e 2026".

Além de elencar ações aprovadas no ano passado, o documento em que a Fazenda apresenta seus projetos trata apenas de "implementação e acompanhamento de medidas aprovadas e política permanente de revisão de despesas", que são ou deveriam ser atividades de rotina de qualquer governo.

É verdade que outros planos oficiais podem ter efeitos positivos no Orçamento. Por exemplo, consta das propostas a necessária limitação dos supersalários, à beira de ser inutilizada pelo Congresso e pelo lobby do Judiciário e do Ministério Público, para citar os mais poderosos.

Está lá também a reforma do regime previdenciário dos militares, também correta, urgente e politicamente difícil, mas que terá ou teria pequeno impacto imediato nas públicas.

Até mesmo o projeto de lei da conformidade tributária e aduaneira pode levar algum dinheiro para o Tesouro Nacional, se vier de fato a premiar o bom pagador e punir devedores contumazes, embora não seja esse o objetivo principal dessa iniciativa. Mas isso ocorreria a longo prazo.

Quanto às dificuldades crescentes e alarmantes com a dívida pública, mais não foi dito no documento da Fazenda. Seria uma surpresa se fosse diferente.

Lula repete com frequência que é grande e histórico defensor da responsabilidade fiscal, mas afirma que, no que depender dele, não haverá mais medidas que possam reduzir o déficit orçamentário de modo expressivo.

Assim, o governo petista reitera que sua noção de responsabilidade fiscal permite o crescimento ainda sem limite do endividamento. No máximo, talvez se possa esperar, logo no início do ano, uma contenção de despesas suficiente para o cumprimento, de modo seguro, da relaxada meta fiscal fixada para este 2025.

Note-se, porém, que mesmo a observância dos limites de gasto e de saldo primário não causa impacto maior em expectativas e condições financeiras.

As exceções na contagem de despesas, formais ou não, levam economistas independentes a desenvolver seus próprios métodos de aferição do saldo do Tesouro.

Não se pode dizer com justiça que o método atual da Fazenda lembra as artimanhas do governo Dilma Rousseff (PT), várias delas ilegais. Mas a contabilidade oficial padece de descrédito, o que contribuiu de modo importante para o salto das taxas de juros de mercado com início em maio de 2024. Apenas discursos e objetivos frouxos não vão alterar de modo decisivo tal cenário.

Debate sobre a cracolândia vai muito além do muro

Folha de S. Paulo

Obra gera recurso ao STF; mais importantes são ações interdisciplinares de médio e longo prazo baseadas em evidências

Tornou-se objeto de polêmica e disputa política a construção de um muro de concreto com 40 metros de extensão, no centro de São Paulo, em torno de uma área ocupada por usuários de drogas. A controvérsia é de difícil solução, como a própria cracolândia, mas decerto o muro encobre debates mais relevantes.

Ao longo de sucessivas administrações de diversas matizes ideológicas, o poder público da maior metrópole do país no geral buscou respostas imediatistas para lidar com o desafio do tráfico e do consumo de entorpecentes a céu aberto, que exige ações interdisciplinares de médio e longo prazo.

Com isso, a cracolândia, anteriormente restrita à Praça Princesa Isabel, nos últimos anos passou a se espalhar não somente por ruas da região central como por outras áreas da cidade, em particular nas periferias.

Moradores de bairros distintos, como Cidade Tiradentes, na zona leste, Jardim Tremembé, na zona norte, e na cidade de Diadema, localizada na região metropolitana, relataram à Folha o aumento de circulação de dependentes químicos em suas vias.

A construção do muro na rua General Couto de Magalhães, no centro da capital, levou parlamentares do PSOL a acionarem o Supremo Tribunal Federal com o argumento de que se trata de uma medida de exclusão social.

Em resposta à corte, a gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) disse que a obra não limita a circulação de pessoas e tem caráter preventivo e protetivo, para evitar acidentes, como atropelamentos, e facilitar o trabalho de profissionais de saúde no local.

O ministro Alexandre de Moraes, ao qual coube o caso no STF, ainda não deliberou sobre o tema —e fará bem se agir com comedimento diante de uma questão municipal complexa.

A cracolândia, ou melhor, as cracolândias demandam que os governos municipal e estadual instituam medidas transversais contínuas, baseadas em evidências, integrando os setores de saúde, habitação e segurança.

Com o aumento de furtos e roubos a impactar a vida de moradores e comerciantes que convivem com o fluxo de usuários de drogas, é preciso incrementar o policiamento ostensivo.

Deve-se investir no combate ao crime organizado e ao tráfico, por meio do uso de inteligência policial e não truculência, ao mesmo tempo em que a abordagem humanizada para tratamento individualizado a usuários tende a surtir melhores efeitos.

Com muro ou sem muro, muito ainda falta ser feito.

Câmara ‘virtual’ apequena a democracia

O Estado de S. Paulo

Hugo Motta acerta ao indicar que tramitação de projetos em regime de urgência não será mais banalizada como foi, mas erra ao manter votações remotas, em prejuízo do bom debate democrático

O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), começou bem sua gestão ao indicar que a retomada do rito legislativo ordinário será uma de suas prioridades à frente da Casa pelos próximos dois anos. Como se sabe, o antecessor de Motta no cargo, Arthur Lira (PP-AL), controlava com mão de ferro a agenda legislativa, não raro usando suas prerrogativas para dificultar, quando não interditar, o livre debate democrático sobre determinados projetos. Com o mesmo poder concentrado com que fazia avançar rapidamente matérias que lhe agradavam, por vezes moldando o Regimento Interno aos seus humores, Lira podia enterrar qualquer projeto que não se coadunasse com os interesses de ocasião de seu grupo político.

Malgrado ter sido ungido pelo próprio Lira, Motta, ao que parece, pretende caminhar na direção diametralmente oposta à de seu padrinho na eleição para a presidência da Câmara. Sob sua gestão, segundo consta, o trabalho das comissões temáticas será fortalecido, a pauta de votações será mais previsível e mais bem articulada pelo colégio de líderes e o recurso ao regime de urgência será mais parcimonioso. Tão profusas foram as votações em regime de urgência durante os quatro anos em que Lira presidiu a Câmara que a própria noção do que era ou não premente para o País acabou prejudicada.

A rigor, o regime de urgência, que dispensa algumas formalidades previstas no Regimento Interno, só deve ser adotado para projetos que tratam da defesa da sociedade democrática e das liberdades fundamentais, providências para atender a calamidade pública, declaração de guerra, Estado de Defesa, Estado de Sítio ou intervenção federal nos Estados, deliberação sobre acordos internacionais e fixação dos efetivos das Forças Armadas, entre outros casos pontuais.

O que se viu nos últimos anos, porém, foi a conversão dessa importante norma regimental – que deveria ser usada, por óbvio, com extrema cautela e aguçado senso de prioridade – em uma espécie de burla do trâmite legislativo ordinário para pôr em discussão ou votação relâmpago matérias que nem com um enorme esforço interpretativo poderiam ser consideradas “urgentes”. Exemplo gritante dessa exegese abusiva da urgência, no melhor cenário, ou maliciosa, no pior, foi a tramitação do Projeto de Lei (PL) 1.904/2024, que equipara aborto a homicídio simples. A votação da “urgência” desse PL foi pautada por Lira sem aviso prévio; a deliberação, chamemos assim, não durou mais do que 30 segundos até a aprovação. Diante do “tratoraço” e da repercussão negativa na sociedade, o PL 1.904 saiu da agenda, atestando que de urgente não tinha coisa alguma.

Dito isso, Hugo Motta falha miseravelmente ao persistir no erro de manter as votações remotas, realizadas por meio de aplicativo instalado no celular dos deputados. Este foi outro subterfúgio usado por seu antecessor para abastardar o debate na Câmara. Ninguém de boa-fé haverá de discordar que as votações remotas serviram muito bem ao País durante a pandemia de covid-19, pois era inconcebível a ideia de um Parlamento fechado em plena emergência sanitária. Entretanto, superada a pandemia, nada mais natural do que a retomada do trabalho presencial pelos parlamentares.

É lamentável, portanto, o regime de trabalho defendido por Motta no colégio de líderes. Segundo o presidente da Câmara, a presença dos deputados no plenário da Casa só será exigida às quartas-feiras – e apenas entre 16 e 20 horas. As sessões serão “híbridas” às terças-feiras, vale dizer, com registro de presença física, mas votação pelo celular. Já às quintas-feiras, tanto a presença como a votação serão totalmente remotas, o que é um convite para que os deputados já deixem Brasília na quarta-feira à noite.

A essência da democracia reside no livre debate entre os representantes da sociedade no locus apropriado, o Parlamento. É dessa interação real entre deputados favoráveis ou contrários a determinada matéria, por vezes acalorada por estarem uns diante dos outros no plenário, confrontando argumentos, que emergem textos mais equilibrados e ajustados às reais necessidades do País.

Lula razoavelmente perdido

O Estado de S. Paulo

Em discurso desconectado da realidade, presidente diz que inflação está ‘razoavelmente controlada’ e insinua intenção de desmontar a ‘arapuca’ que o BC armou para seu governo

A retomada do circuito radiofônico de Lula da Silva é, sem dúvida, parte da estratégia para tentar estancar a queda de popularidade. Mas as primeiras entrevistas do ano mostram o presidente perdido ao avaliar a inflação, o problema que atualmente mais aflige a população. A tática tem sido a de terceirizar responsabilidades, com argumentos que colocam o governo como vítima da alta de preços, e não como um de seus principais causadores, numa narrativa absolutamente desconectada da realidade.

Primeiro, a ouvintes de Minas Gerais, Lula buscou passar a ideia de que o governo leva “muito a sério” a inflação, que, segundo ele, “está razoavelmente controlada”. No dia seguinte, para rádios baianas, jogou a culpa do descontrole dos preços sobre o Banco Central (BC), acusando a gestão passada da instituição – sob o comando de Roberto Campos Neto – de ter armado “uma arapuca” para seu governo. Essa armadilha, segundo o petista, não pode ser desmontada “de uma hora para outra”.

Difícil convencer a audiência de que a inflação está “razoavelmente controlada” diante do avanço dos preços de alimentos. Levantamento divulgado no fim de janeiro pela Associação Brasileira de Supermercados (Abras) mostrou aumentos significativos em itens como leite longa vida (18,83%), carne (25,25%), óleo de soja (29,22%) e café torrado (39,6%). Todos esses produtos integram a cesta básica, ou seja, ao menos em teoria são imprescindíveis a todas as famílias.

Tampouco é irretorquível o discurso sobre a seriedade com que o governo Lula da Silva trata a estabilidade inflacionária. Por óbvio, efeitos climáticos extremos têm prejudicado a agricultura e a pecuária com reflexos nos preços, mas considerável parcela dessa escalada se deve, como é notório, a uma demanda que cresce acima da capacidade econômica do País. Esse sobreaquecimento, por sua vez, é causado por políticas de governo sustentadas na expansão de gastos e no incentivo desmesurado ao crédito.

Lula diz que sua preocupação maior é evitar que o preço dos alimentos “prejudique o povo” e, para que isso não aconteça, tem feito “reuniões sistemáticas com os setores”. Ora, qualquer consumidor sabe que a inflação dos alimentos é sentida mais fortemente pela população mais carente, que despende maior parcela do orçamento mensal para custear a alimentação. E não serão reuniões com varejistas ou agricultores que derrubarão preços. Afinal, não há como o governo intervir em preços livres, e o passado recente demonstrou da pior forma para o consumidor a ineficácia de congelamentos.

Ao governo Lula da Silva cabe, principalmente, o respeito à responsabilidade fiscal, que parece se distanciar do Planalto na proporção inversa à proximidade das eleições de 2026. O presidente fala em “compensação” caso o reajuste dos combustíveis – que também têm preços livres e deveriam ser ditados por critérios de mercado – tenha impacto sobre os preços de transporte e alimentos. Vende um discurso vazio, como se tivesse o poder de evitar o repasse do aumento de gasolina e diesel aos transportes e às cargas conduzidas por caminhões.

O maior problema é que Lula enxerga o que quer enxergar e parece acreditar no dom de fazer com que o eleitorado veja o cenário sob a mesma ótica. “A economia está bem, o emprego está crescendo, massa salarial crescendo, coisas estão crescendo”, afirmou. O resultado imediato da política expansionista foi, de fato, o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) e do emprego, mas indicadores recentes começam a apontar para a perda de fôlego, tanto que o temor de retração da economia já entrou no radar para 2025 e 2026.

Ajuda humanitária sob risco

O Estado de S. Paulo

Ameaças à Usaid, importante ferramenta de ‘soft power’ dos Estados Unidos, podem ter efeitos deletérios

A discussão em torno do eventual fechamento da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid, na sigla em inglês) demonstra como o populismo de viés autoritário do presidente Donald Trump ameaça uma importante organização de ajuda humanitária e, ademais, um instrumento de soft power da maior potência bélica e econômica do mundo.

Criada em 1961, no governo de John F. Kennedy, a Usaid gerenciou, em 2023, mais de US$ 40 bilhões (menos de 1% do orçamento federal dos EUA). Esses recursos têm sido empregados em programas que beneficiam países como a Ucrânia, invadida pela Rússia, e a conflagrada República Democrática do Congo, entre outros. Na América Latina, o país que mais recebe recursos da agência é a Colômbia, aliada histórica dos EUA na região.

Políticos democratas alertam que a ideia de acabar com a Usaid – encampada ferrenhamente pelo bilionário Elon Musk, alçado por Trump à chefia do chamado Departamento de Eficiência Governamental – coloca em sério risco a segurança nacional dos EUA.

Na Síria, por exemplo, a vigilância de prisioneiros do Estado Islâmico pelos curdos, que também são aliados de longa data dos norte-americanos, ficará seriamente comprometida caso a Usaid, de fato, seja fechada. Ao fim e ao cabo, a estratégia de Musk de dar fim à agência, que ele chamou de “organização criminosa”, pode fortalecer os verdadeiros criminosos, como os membros do Estado Islâmico, inimigos mortais dos EUA. Do ponto de vista estratégico, portanto, o fechamento da Usaid seria um erro grosseiro, sobretudo vindo de alguém que chefia um departamento que, em tese, busca a eficiência governamental.

Por ora, apesar de aterrorizar os cerca de 10 mil funcionários da Usaid, Musk, ao que parece, não conseguirá fechá-la. O secretário de Estado Marco Rubio foi nomeado administrador interino da agência. Rubio é crítico da Usaid, que, segundo ele, se afastou de sua missão original. Porém, o secretário de Estado defende que a agência ofereça ajuda externa de acordo com os interesses dos EUA. E até mesmo Trump, que, segundo Musk, havia concordado com o fim do órgão, afirmou que a Usaid tem um “bom conceito”, malgrado o presidente afirmar que a agência seja administrada por um “bando de radicais lunáticos”. Em que pese não ter sido formalmente extinta, a incerteza quanto ao futuro da Usaid já se faz sentir.

A página da agência na internet, após dias fora do ar, retornou com uma única informação: a de que os funcionários, com poucas exceções, se encontram em licença administrativa; aqueles que estão no exterior serão repatriados. Contratos com parceiros em diversos países foram cancelados.

Caso estivesse realmente interessado em promover a eficiência, o governo Trump corrigiria os eventuais erros que possa haver na gestão da Usaid, mas não acabaria com a agência nem reduziria a ajuda externa, que sustenta pontes estratégicas para os EUA. Ao jogar a Usaid em um limbo, Trump, inadvertidamente ou não, fortalece Rússia e China, além de fomentar o ressentimento de nações pobres e radicalizadas contra os EUA. Politicamente, é o famoso barato que sai caro.

Entre as “coisas que estão crescendo” Lula poderia incluir a dívida pública federal, que no ano passado chegou a R$ 7,3 trilhões, aumento de 12,2% em relação ao fim de 2023, sem contar a correção da inflação. O esforço para conter a inflação ficou por conta apenas do Banco Central, alvo de críticas do presidente por elevar juros com o único intuito de conter a inflação – esta sim uma arapuca capaz de minar a popularidade de qualquer governo.

Mais atenção às doenças crônicas

Correio Braziliense

A rede pública engatinha no que tange ao atendimento a esses pacientes crônicos. Em alguns casos, solicitar determinados exames ainda não é uma prática comum dos médicos

Pacientes diagnosticados com doenças crônicas exigem atenção especializada para ter um mínimo de qualidade de vida. De acordo com o Ministério da Saúde, pelo menos 1,2 milhão de pessoas em todo o Brasil têm uma ou mais patologias crônicas e, aqui, incluem-se diabetes, obesidade, Alzheimer, doença renal crônica, lúpus e fibromialgia - somente para listar as mais frequentes. 

Embora sejam condições complexas e bastante diversas tanto na forma de diagnóstico quanto na abordagem terapêutica, em comum, as doenças crônicas — como o próprio nome diz — duram um longo período de tempo ou até mesmo tornam-se perenes, sem cura definitiva. Grande parte dos pacientes nessas condições lida com alguma incapacitação, o que não significa que não possa ter uma vida longeva.

Em 2024, houve aumento de 8% nos diagnósticos precoces de doenças autoimunes e neurodegenerativas em comparação ao ano anterior. No entanto, a rede pública engatinha no que tange ao atendimento a esses pacientes crônicos. Em alguns casos, solicitar determinados exames ainda não é uma prática comum dos médicos durante o checape de rotina, o que, se fosse feito, evitaria, em parte, os diagnósticos tardios, contendo, assim, a evolução da doença para estágios mais graves. 

Vale destacar que, além das enfermidades crônicas, em se tratando de doenças raras de natureza metabólica, genética ou infecciosa, as iniciativas ainda são muito escassas no que se refere ao Sistema Único de Saúde (SUS). E não estamos falando, aqui, de doenças diagnosticadas no fim da vida, mas de patologias que poderiam ser detectadas nos primeiros dias de vida do bebê. É o caso do teste do pezinho, oferecido na rede pública.

Embora a Lei nº 14.154/21 esteja em vigor desde 2023 — estendendo para mais de 50 o número de doenças que poderão ser rastreadas pelo teste do pezinho feito pelo SUS —, a ampliação será de forma escalonada, dividida em cinco etapas. Por enquanto, a etapa 1 envolve apenas sete doenças, entre as quais: fenilcetonúria, doença falciforme, fibrose cística, entre outras deficiências. O Distrito Federal desponta como um dos poucos a oferecer o teste para 62 doenças. Minas Gerais avançou na questão, anunciando, em dezembro último, a ampliação de 23 para 60 doenças triadas pelo Programa de Triagem Neonatal (PTN-MG), mas há estados, como é o caso do Piauí, em que a cobertura não chega a 70% e para um espectro de apenas seis doenças. 

Fato é que a receita continua muito parecida quando o assunto é saúde da população, só falta ser colocada em prática: investimento em saúde pública, prioridade às políticas que incentivem o diagnóstico precoce, interação entre sociedade civil, entidades de saúde e poder público, ampliação do acesso a tratamentos que favoreçam a autonomia de pacientes que já sofrem com essas doenças. Só assim estaremos atuando na prevenção, minimizando os números e dando mais qualidade de vida a essas pessoas. 

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