sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

A resilência da frágil democracia brasileira - César Felício

Valor Econômico

A incapacidade de qualquer grupo político ser hegemônico no Brasil protege e preserva a democracia no País. Esta é a explicação que a cientista política chilena Marta Lagos, diretora da Corporação Latinobarometro, encontra para explicar a resiliência da democracia brasileira, que completa 40 anos em março.

Momentos de perigo não faltaram: morte de um presidente que não chegou a tomar posse, dois processos de impeachment, uma hiperinflação, um ex-presidente condenado por corrupção, e, para arrematar, um complô para um golpe de Estado tramado dentro da sede do governo. O apreço à democracia entre os brasileiros oscila, mas está entre os mais baixos do Continente. A violência perpassa todo o tecido social. Está nas ruas, está no Estado, está dentro das casas. O Brasil, contudo, está longe de ser o país latino-americano com a maior ameaça ao sistema.

A Latinobarometro realiza desde 1995 estudos comparativos anuais sobre a solidez democrática na América Latina. por meio de pesquisas quantitativas. Foram 20 mil entrevistas em 17 países no ano passado. O estudo mostrou a democracia ganhando força no conjunto de países como um todo, mas Marta Lagos considera certo que o novo presidente americano, Donald Trump, irá impulsionar a extrema-direita não somente no subcontinente mais em todo o mundo.

Marta Lagos vê riscos na Argentina, em função da volatilidade política; Peru, Guatemala e Bolívia, pela instabilidade; e no Paraguai, pelo conservadorismo social. No Brasil, para ela, o risco é menor. “O Brasil demonstrou que tem mais capacidade de ter contrapesos, porque é tremendamente heterogêneo”, comentou. Ela se refere à existência de campos eleitorais bastante definidos que impediram, por exemplo, o livre curso de um pretendente a autocrata circunstancialmente no poder, como foi o caso de Jair Bolsonaro. Não teve ele lastro nem no Judiciário, nem no Congresso e nem no eleitorado para uma conversão do País ao autoritarismo.

O Estudo mostra um quadro pouco alentador no Brasil, contudo. Ao longo dos 30 anos cobertos pelas pesquisas, a maior satisfação com a democracia foi registrada em 2009, no primeiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e não passou de 48%.

A taxa de apoio à democracia, indicador menos sujeito às circunstâncias de avaliação de governo, teve seu recorde também este ano, de 55%.

De lá para cá caiu dez pontos percentuais. Na relação de 17 países pesquisados, o Brasil está em 12° lugar.

Dos 139 presidentes eleitos na América Latina desde a primeira redemocratização, a do Equador, em 1979, 27 não terminaram o mandato. Destes, dois do Brasil ( Fernando Collor em 1992 e Dilma Rousseff em 2016). os campeões de instabilidade são Peru, Bolívia e Equador, com cinco quedas cada um.

A confiança dos brasileiros nas instituições é baixa, exceto em relação a Igrejas. Entre os seis maiores países latino-americanos pesquisados, apenas na Venezuela a credibilidade institucional é consistentemente menor. É grande o percentual de brasileiros que confiam nas Forças Armadas (47%), mas este indicador caiu de forma importante em relação ao levantamento de 2021 (57%), o que mostra o dano reputacional provocado pelo governo Bolsonaro na imagem militar. O resultado sugere que o brasileiro não vê no governo ou no Congresso soluções para seus problemas.

Um dado revelador do levantamento, que corrobora a percepção de Marta Lagos, é o resultado comparado do Brasil em relação a outros países em resposta à questão “Quem tem mais poder?”.

Na Venezuela o conjunto de respostas é bastante claro: o governo obtém 82% das menções e os militares, 64% (era possível fazer até três escolhas). O resto mal é citado. A Venezuela é uma democracia que se converteu em ditadura, ainda que o regime permita competição eleitoral, mesmo sem respeitar os resultados. O Chile é um país em que a população vê o poder econômico como o dominante, com 68% das menções para “as empresas”.Sindicatos só são mencionados com destaque na Argentina (34%), sinal da herança peronista.

No Brasil ganha destaque o Congresso , que recebeu 48% das menções. É o mais alto índice registrado entre os 17 países pesquisados. A média do subcontinente é 32%. O brasileiro percebe, e percebe corretamente, o Poder Legislativo como determinante. Chama a atenção ainda o Brasil liderar em percepção das redes sociais como fonte de poder (24%).

Existem fraturas na base da sociedade brasileira que dificultam a convivência democrática. Violência contra a mulher foi o tipo de agressão apontado como o mais comum por 40%, o maior percentual entre os 17 países pesquisados. A violência policial é a segunda mais alta, atrás da Bolívia. A parcela da população que disse ter sido vítima de alguma agressão ou assalto no último ano ficou em 32%, superior a do México, Colômbia e Venezuela, abaixo da Argentina.

Mas o dado mais chocante é que, de certo forma, os pesquisados chegam à conclusão que o pior do Brasil é o brasileiro. O nível de confiança interpessoal, ou seja, o percentual dos que dizem que se pode confiar na maioria das pessoas que conhece, é de apenas 5%, o menor de toda a pesquisa. Na Argentina é quase cinco vezes maior.

Um dos propósitos da democracia é o de solução pacífica de controvérsias. Se essa não é a realidade que o cidadão vive em seu cotidiano, mais difícil será apostar no mecanismo como solução para o País.

 

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