O Globo
Por que o mapa-múndi não pode ser invertido?
Precisamos estar preparados para a troca do Meridiano de Greenwich pelo de
Garanhuns
Num de seus poemas mais bonitos, Sophia de
Mello Breyner Andresen anuncia: “Quando eu morrer voltarei para buscar/Os
instantes que não vivi junto do mar”.
O mar de Sophia de cada um terá cores,
correntezas, temperaturas, profundidades, salinidades distintas. Poderá se
chamar felicidade, paz, saúde, cidadania. Imagino a praia onde nossos fantasmas
descalços venham resgatar a vida não vivida em sua plenitude. De quanto será o
cashback?
Eu voltaria para recuperar o tempo desperdiçado nas tretas em redes sociais, batendo boca com quem confunde gênero biológico e gênero gramatical ou defende a vinda de um comissário chinês para ensinar regulação de mídia — e talvez de um militante do Hamas para falar de direitos humanos, um especialista do Irã sobre como lidar com mulheres e LGBTs, um da Rússia para o workshop de técnicas no trato com a oposição. Uma gente que ainda não entendeu que muita Janja e pouco Mujica os males da nossa esquerda são. E também com os que querem manter puxado o freio de mão da História, não vendo a hora de engatar a marcha à ré rumo a 1964. Com liberais ainda não convencidos de que quem sabe faz a hora, não espera um novo FHC.
Retomarei as horas perdidas discutindo a
camisa vermelha da Seleção, o mapa-múndi invertido. Se crianças dão cambalhota
e plantam bananeira para ver o mundo por outro ângulo, por que o presidente do
IBGE não pode fazer o mesmo? Aliás, IBGE não: EGBI – precisamos nos
descolonizar dessa leitura ocidental, da esquerda para a direita, e estar
preparados para a troca do Meridiano de Greenwich pelo de Garanhuns.
Voltarei para reaver as horas que passei
rolando, niilisticamente, a tela do celular. As muitas horas aguardando para
ser (mal) atendido no Banco do Brasil. A madrugada em claro na Avenida das
Américas, até que os policiais desistissem de receber propina e lavrassem a
multa por eu ter provocado um acidente. O tempo parado no trânsito porque
outros motoristas fecharam o cruzamento ou atazanado pelo buzinaço dos que vêm
atrás daqueles que insistem em deixar o cruzamento livre. Os intermináveis
minutos, toda manhã, esperando que os motoristas captem o significado da faixa
de pedestre na Avenida Sernambetiba.
Virei reconquistar o tempo em que a vida
parou, tomada por pensamentos mórbidos, após o diagnóstico equivocado e
irresponsável de Alzheimer precoce, ali por volta dos 50 anos. Os momentos Mad
Max de pessoas se engalfinhando nos supermercados por um frasco de álcool em
gel. Os momentos Hannibal Lecter em que o presidente arremedava os brasileiros
asfixiados. Aquele 16 de março de 1990, quando quase todo o dinheiro foi
confiscado. O 21 de abril de 1985 em que a Nova República morreu antes de
nascer.
Os anos sem a companhia de um cachorro. Os
meses tentando assimilar a regra do hífen, em dúvida se a pronúncia certa é
/obêso/ ou /obéso/. As semanas bloqueando números de telefone para escapar de
golpes. Apagando spam (Unimed, MedSenior, Unesp, Porto Seguro, imunes a
qualquer barreira cibernética). Matutando se o bebê reborn é uma moda
inofensiva, como o brinco de pena e a samambaia de plástico, ou um surto que
virará curiosidade antropológica, feito a epidemia de dança de 1518 em
Estrasburgo ou a de topetes na Curitiba dos anos 1990.
Algo me diz que haverá algumas décadas a
resgatar.
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