sábado, 17 de maio de 2025

Os instantes longe do mar - Eduardo Affonso

O Globo

Por que o mapa-múndi não pode ser invertido? Precisamos estar preparados para a troca do Meridiano de Greenwich pelo de Garanhuns

Num de seus poemas mais bonitos, Sophia de Mello Breyner Andresen anuncia: “Quando eu morrer voltarei para buscar/Os instantes que não vivi junto do mar”.

O mar de Sophia de cada um terá cores, correntezas, temperaturas, profundidades, salinidades distintas. Poderá se chamar felicidade, paz, saúde, cidadania. Imagino a praia onde nossos fantasmas descalços venham resgatar a vida não vivida em sua plenitude. De quanto será o cashback?

Eu voltaria para recuperar o tempo desperdiçado nas tretas em redes sociais, batendo boca com quem confunde gênero biológico e gênero gramatical ou defende a vinda de um comissário chinês para ensinar regulação de mídia — e talvez de um militante do Hamas para falar de direitos humanos, um especialista do Irã sobre como lidar com mulheres e LGBTs, um da Rússia para o workshop de técnicas no trato com a oposição. Uma gente que ainda não entendeu que muita Janja e pouco Mujica os males da nossa esquerda são. E também com os que querem manter puxado o freio de mão da História, não vendo a hora de engatar a marcha à ré rumo a 1964. Com liberais ainda não convencidos de que quem sabe faz a hora, não espera um novo FHC.

Retomarei as horas perdidas discutindo a camisa vermelha da Seleção, o mapa-múndi invertido. Se crianças dão cambalhota e plantam bananeira para ver o mundo por outro ângulo, por que o presidente do IBGE não pode fazer o mesmo? Aliás, IBGE não: EGBI – precisamos nos descolonizar dessa leitura ocidental, da esquerda para a direita, e estar preparados para a troca do Meridiano de Greenwich pelo de Garanhuns.

Voltarei para reaver as horas que passei rolando, niilisticamente, a tela do celular. As muitas horas aguardando para ser (mal) atendido no Banco do Brasil. A madrugada em claro na Avenida das Américas, até que os policiais desistissem de receber propina e lavrassem a multa por eu ter provocado um acidente. O tempo parado no trânsito porque outros motoristas fecharam o cruzamento ou atazanado pelo buzinaço dos que vêm atrás daqueles que insistem em deixar o cruzamento livre. Os intermináveis minutos, toda manhã, esperando que os motoristas captem o significado da faixa de pedestre na Avenida Sernambetiba.

Virei reconquistar o tempo em que a vida parou, tomada por pensamentos mórbidos, após o diagnóstico equivocado e irresponsável de Alzheimer precoce, ali por volta dos 50 anos. Os momentos Mad Max de pessoas se engalfinhando nos supermercados por um frasco de álcool em gel. Os momentos Hannibal Lecter em que o presidente arremedava os brasileiros asfixiados. Aquele 16 de março de 1990, quando quase todo o dinheiro foi confiscado. O 21 de abril de 1985 em que a Nova República morreu antes de nascer.

Os anos sem a companhia de um cachorro. Os meses tentando assimilar a regra do hífen, em dúvida se a pronúncia certa é /obêso/ ou /obéso/. As semanas bloqueando números de telefone para escapar de golpes. Apagando spam (Unimed, MedSenior, Unesp, Porto Seguro, imunes a qualquer barreira cibernética). Matutando se o bebê reborn é uma moda inofensiva, como o brinco de pena e a samambaia de plástico, ou um surto que virará curiosidade antropológica, feito a epidemia de dança de 1518 em Estrasburgo ou a de topetes na Curitiba dos anos 1990.

Algo me diz que haverá algumas décadas a resgatar.

 

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