O Estado de S. Paulo
Trata-se de ignorância a suposição idiota de que a representação será tanto melhor quanto mais numeroso for o número de parlamentares
Anotem aí: meio quilo de farisaísmo equivale
a dois de embustes e a quatro de ignorância. O dicionário explica que o
farisaísmo se caracteriza pela observância exageradamente rigorosa das
prescrições da lei escrita, mas que, nas Escrituras, significa excessivo
formalismo e hipocrisia. Por extensão, fariseu é, pois, indivíduo que aparenta
santidade, não a tendo. É, pois, uma forma de arte que o Brasil conhece bem e
parece agora estar vivenciando com excepcional intensidade.
O farisaísmo a que me refiro é um projeto que ora vagueja pelos corredores do Congresso, que, sob a alegação de atualizar a representação dos Estados, cria 18 novas vagas na Câmara federal e aumenta, por via de consequência, o número de cadeiras nas Assembleias estaduais. E mais: assim como quem não quer nada, o projeto grampeia na mencionada atualização todo aquele séquito de regalos já “prescritos na lei escrita”: a saber, além do salário inerente à deputação, “assessores e verba indenizatória para bancar o custo do mandato, como auxílio-moradia, gasolina, passagens aéreas, hospedagem e alimentação. Tais benefícios variam conforme o Estado. É possível que seja necessária a construção de gabinetes”, segundo informa o Estadão (Efeito cascata da Câmara pode criar 30 vagas nas assembleias, 8/5, A10).
Caracterização de tudo isso como farisaísmo é
a simples constatação de uma realidade. Desde logo, não se trouxe à baila
argumento algum de caráter político, jurídico ou moral para justificar um
aumento de exatamente 18 deputados federais. Salta aos olhos que se trata
apenas do tradicional horse-trading. Escusado frisar que 18 cadeiras não
corrigem a distorção de fundo, que é a desproporcionalidade entre as bancadas
federais e as populações dos respectivos Estados. Essa questão vem sendo
discutida desde priscas eras, mas nunca nenhum parlamentar se abalançou a
tentar justificar as colossais desproporcionais federativas. Por que Roraima,
com 636.707 habitantes, elege oito deputados federais e três senadores,
enquanto São Paulo, com 44.411.238 habitantes (provenientes de todo o País)
elege 70 deputados federais e o mesmo número de senadores?
Penso que as considerações acima bastam para
esclarecer a substância farisaica do nosso momento político. Passemos, pois, ao
complexo problema da ignorância. Aqui, como os leitores hão de considerar, não
me refiro ao baixo nível de escolaridade da maioria dos brasileiros, que não
teve papel algum na gestação do nosso estado de coisas político, mas aos
próprios políticos, responsáveis diretos pelo pouco que ele tem de bom e pelas
toneladas de asnices que nele se vão eternizando.
Questionemos, de saída, por que os Estados
Unidos da América, com uma população um terço maior do que a nossa,
contentam-se com 435 deputados federais em sua Câmara Baixa, enquanto nós, com
uma população um terço menor, sustentamos 513 parlamentares? Dever-se-á tal
discrepância ao nível eventualmente mais elevado do nosso conhecimento político
ou, ao contrário, à nossa ignorância? Ou, quem sabe, havendo o Altíssimo nos
concedido a graça de sermos um país rico, dispensando-nos de reles preocupações
pecuniárias?
Essa, por certo, é uma indagação inútil.
Nenhum cidadão na plena posse de suas faculdades mentais verá tantos méritos em
nosso conhecimento político ou tanta folga nos cofres públicos ou no bolso do
homem comum. Por certo, ninguém sustentará que 10 ou 12 deputados representarão
adequadamente as necessidades legítimas da sociedade (se bem que muitos dirão
que não precisamos de nenhum). Trata-se, r e a l mente, d e ignorância, e
especificamente da suposição idiota de que a representação será tanto melhor quanto
mais numeroso for o número de parlamentares.
Por sorte, esse trabalho já foi feito por
nós, e com excepcional brilho, há mais de 200 anos. Refiro-me a Os Artigos
Federalistas, obra elaborada a seis mãos por Alexander Hamilton, James Madison
e John Jay (Editora da UNB).
Logo no início de Os Artigos Federalistas
número 55, seu autor acertadamente afirma que “nada mais pode ser mais ilusório
do que basearmos nossos cálculos políticos em regras aritméticas. Sessenta ou
setenta homens podem ser mais confiadamente investidos de determinado grau de
poder do que seis ou sete, mas não se conclua dele que seiscentos ou setecentos
seriam proporcionalmente mais dignos de confiança. E, se extrapolarmos a
hipótese para seis ou sete mil, todo o raciocínio será invertido. A verdade é
que, em qualquer caso, parece ser necessário um número mínimo para assegurar os
benefícios de uma livre troca de ideias e a proteção contra conluios com
finalidades inconfessáveis e, por outro lado, é indispensável observar-se certo
limite máximo, a fim de evitar a confusão e a intemperança das multidões. Em
todas as assembleias muito numerosas, qualquer que seja a sua finalidade, as
paixões nunca deixam de sobrepujar a razão. Mesmo que cada cidadão ateniense
fosse um Sócrates, ainda assim as assembleias de Atenas poderiam resvalar para
o tumulto”. •
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