Texto apresentado no seminário da UFJF sobre Rubem Barboza Filho, em especial
seu livro “Sinfonia barroca. O Brasil que o povo inventou” (Ateliê de
Humanidades, 2025)
Este, aqui e agora, é um acontecimento de
primeira ordem. O percurso iniciado com Tradição e artifício completa
sua viagem redonda, não no sentido de um retorno desenganado ao começo ou de
uma reiteração do já sabido e já traçado. Trata-se, na verdade, de mais uma
volta do parafuso que assim penetra com mais profundidade na dura madeira de
que é feita a História, se pudermos ampliar o sentido da metáfora weberiana. O
regente desta Sinfonia barroca completa, ao menos por ora, o Bildungsroman,
o romance de formação da civilização brasileira; uma sinfonia inédita por causa
dos materiais sobre os quais se assentou, tremendamente original – ou, para
usar uma palavra antiga, tremendamente dialética – por causa da forma
como amassou o barro das origens, ainda hoje, apesar de tudo, e apesar de todas
as quedas, um ponto de luz em meio ao caos.
O regente da Sinfonia, aqui ao meu lado, aproxima coisas díspares e defende com insistência o tertium datur, a solução inesperada que dissolve antagonismos aparentemente inconciliáveis e modifica toda a cena histórica. Ao ver o quadro inicial de uma vasta terra sem centro político, sem língua e sem religião comum, sem elites e sem sociedade minimamente ordenada, e no entanto capaz de se erguer a partir de baixo, como se fosse um disparatado conjunto de grupos em fusão, pensei no Barão de Münchhausen. O velho Barão, figura popular na Europa do século 18, mas não barroco, também se perdia no excesso, na simulação e no engano. Popularizou-se igualmente por mentir descaradamente. Certa vez contou que, atolado no pântano e sem nenhuma ajuda por perto, arrancou-se do aperto puxando pelos cabelos, encontrando ainda tempo para salvar o cavalo.
Pois bem, como nação somos uma espécie bem-sucedida de Barão de Münchhausen, admitindo, porém, que ainda estamos aprendendo a não mentir sobre nós mesmos e que nosso bom êxito histórico é algo por construir em muitos aspectos decisivos. Neste livro, o regente das dissonâncias barrocas, gritando o seu “viva o povo brasileiro”, não dissimula nem retoca a crueldade intrínseca à nossa História. Nela está presente, como tocquevilliana marca de nascença, tão importante quanto a infância para a vida adulta, a dizimação de boa parte dos povos originários e a infâmia da escravidão, cujas consequências nos rodeiam em cada sinal de trânsito ou em cada favela sem esgotamento. Por isso, nosso êxito como nação é uma tarefa por cumprir, e ainda observamos insuportáveis traços do nosso rosto naquele espelho invertido da Europa, que ela mesma, a Europa, confeccionou e distribuiu pelo mundo que colonizou.
O leit-motiv da Sinfonia consiste
no seguinte: não realizaremos a tarefa de escrever os novos capítulos da nossa
História-romance se apagarmos os três séculos iniciais ou se os considerarmos
como um desastre fatal, um destino de tragédia. O barroco de origem é mais do
que uma ética, uma ou várias religiosidades, uma forma de estetizar a vida, um
modo poliédrico de conhecer o mundo; ou, então, é tudo isso e mais alguma
coisa. Reunimos cacos e fragmentos de três séculos e, praticamente sem
metrópole, nos autocolonizamos – uma sugestão muito poderosa, ainda mais por
ter nascido de um grande intelectual português (Eduardo Lourenço). Um processo
lento, mas cheio de criatividade e dinamismo; e, por isso, revolucionário,
ainda que certamente segundo o diapasão das revoluções passivas ou das
“revoluções encapuzadas”, para citar um clássico, Florestan Fernandes, que não
escapa da crítica aguda, inesperada e até bem-humorada do Rubinho. E no mesmo
lance, o mesmo Rubinho não deixa de dar um piparote em Raymundo Faoro.
O Império e a República nem sempre estiveram à altura deste legado, especialmente durante repressões e ditaduras. As elites afastavam-se do poderoso magma inicial e propunham rupturas, de signo liberal ou socialista. O veio subterrâneo, no entanto, persistia, e a chave para a maturidade intelectual e a compreensão do País sempre consistiu em reviver, como catarse libertadora, a proximidade com o homem e a mulher comuns, sem demagogia nem concessões fáceis. Erguem-se como figuras paradigmáticas, neste sentido, Euclides da Cunha e Guimarães Rosa, intelectuais capazes de empatia com o sertão dos desvalidos, em Canudos, e com o sertão-língua, alegoria do vasto teatro do mundo à moda barroca. Recusar-se a este encontro e esquivar-se desta empatia é permanecer num cosmopolitismo vago, abstrato, a marca dos intelectuais bovaristas que vivem as variadas formas de “intimismo à sombra do poder”, para usar a expressão de Thomas Mann em relação à “miséria alemã”.
A palavra “cosmopolitismo”, por sinal, nos remete a um segundo tipo de problema. Retiremos agora a conotação negativa que envolve o termo. A realidade das coisas força-nos sempre a considerar “o Brasil no espelho do mundo”, um dos inumeráveis títulos de Otto Maria Carpeaux, o intelectual da Mitteleuropa que é uma das fontes da Sinfonia, ao postular o modo barroco de ser como o fundamento das civilizações americanas acima e abaixo da linha do Equador. Ouvimos a Sinfonia, deixamo-nos levar pelas ásperas dissonâncias brasileiras, mas o que neste momento vem de fora não são ruídos ocasionais. Pelo contrário, todos os sons, internos e externos, nacionais e internacionais, se entrelaçam e, para falar a verdade, agridem os ouvidos até dos menos sensíveis. Por isso mesmo, se o argumento deste livro-sinfonia é comovedoramente “nacional” – entre aspas, pois fala de um imenso território e de uma multiplicidade de gentes que só bem mais tarde comporiam o Brasil –, o horizonte só pode ser global.
O tempo é de modernidade globalizada e o mundo é pós-ocidental. Dando um passo atrás, lembremos o diagnóstico feito por Antonio Gramsci, um marxista herético, a propósito da conjuntura do primeiro pós-guerra e dos anos de crise crônica que se seguiram. Para ele, o xis da questão consistiria no choque entre uma economia já tendencialmente unificada, a exigir um cosmopolitismo de novo tipo, e uma política que se fechava nos Estados-nação, estimulando corporativismos e nacionalismos de todo tipo, inclusive os agressivos. Tal como hoje, não se pôde ou não se soube caminhar no rumo de uma institucionalidade democrática supranacional, com capacidade de dirigir um mundo economicamente interdependente. A política estava em atraso, os fatos giravam sem direção. Daí a atração exercida pela ordem unida dos regimes totalitários e a consequente perspectiva de guerras civis e conflitos entre nações.
São questões que guardam inquietante semelhança com nosso tempo e fazem temer o pior. Dani Rodrik, autor muito presente nesta Sinfonia, sintetiza num trilema o drama atual: soberania nacional, democracia política e globalização econômica estão em conflito inevitável entre si, de tal modo que só se pode ter duas entre as três pontas do trilema. Tudo isso num momento em que o futuro parece ter desaparecido, ou realmente desapareceu, e grandes massas vivem o presente como algo dado para sempre. Por sua parte, governos e demais agentes políticos ora administram este presente de modo burocrático, pouco inspirado e pouco inspirador; ora se deixam levar por utopias regressivas, nacionalismos ou ultranacionalismos em busca de um tempo perdido no passado; ora, ainda, aderem a diferentes versões de populismo, de direita ou de esquerda, à frente das quais um strongman ataca as instituições de controle do poder.
Retorno, por isso, a Gramsci, corrigindo-o, no que couber, com Adam Tooze. Segundo Gramsci, esta nossa época, tal como todas as épocas de crise dita “orgânica”, seriam marcadas pela ideia de interregno, um período difícil e de duração indeterminada no qual, como provavelmente todos sabem de cor, o velho morreu e o novo não nasceu. A previsão é que, num quadro assim, monstruosidades e teratologias abundariam, ameaçando de morte a convivência civilizada. Até aqui poderíamos dar razão ao italiano: de fato, não precisamos ir muito longe para constatar ameaças impensáveis antes desta crise epocal. Mas Adam Tooze tem ainda mais razão quando vê nesta caracterização do interregno um resquício de filosofia da história, que dá como mais ou menos certa, ou suposta, a figura e a natureza daquele “novo”, que apenas nos faz o desfavor de demorar a nascer. Não é bem assim, não vale mais o marxismo fé de carvoeiro, para o qual a História tem uma estação final já definida, um roteiro conhecido e agentes bem determinados.
Mas, afinal, o que o barroco, celebrado nesta Sinfonia, tem a ver com este absurdamente complexo conjunto de problemas? Isso remete a mais uma singularidade deste livro e à sua busca de um tertium datur, capaz de sugerir saídas para o interregno em que estamos todos metidos, especialmente o Ocidente e todas as suas diferentes declinações. O barroco como que requer um recurso moderno, o pragmatismo da virada linguística, ambos apreendidos como métodos por excelência de composição de contrastes, de formação de consensos instáveis e sempre relativos; em suma, como estratégias de persuasão típicas de uma comunidade de homens e mulheres livres. Como toda manobra audaciosa, esta aproximação não se faz sem riscos. O barroco, por exemplo, centra-se no corpo vivente, nas emoções e sentimentos que nos constituem; por isso, haverá no livro, por vezes, formulações que façam pensar neste último, o corpo, como um fundamento pré-linguístico. Trata-se de um risco análogo àquele que, do lado do pensamento pragmático, postula um sujeito desencarnado e jogos de linguagem puramente lógicos, desvinculados da cotidianidade de homens e mulheres comuns.
Será possível encontrar, no texto, afirmações isoladas que expressem um ou outro tipo de unilateralidade. É que a força irresistível da invenção e da descoberta pode arrastar o regente da Sinfonia ao drama do amoroso camoniano: “Transforma-se o amador na cousa amada/ Por virtude do muito imaginar”. A “cousa muito amada”, no caso, é o barroco, mais ainda, certamente, do que o pragmatismo linguístico. No entanto, o sentido profundo do romance filosófico que desfila, simultaneamente, diante dos nossos sentidos e da nossa reflexão é a aposta na reconstrução tendencial da unidade do sujeito, em algum futuro talvez menos dilacerante do que o presente. Uma aposta que é própria dos pensadores, o Rubinho em particular, que operam permanentemente na chave do terceiro incluído, evitando exclusões empobrecedoras e polarizações destrutivas.
*Tradutor, coeditor das Obras de Antonio Gramsci, colunista do Estadão
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